Geração pós-apartheid
De um lado do passeio, na baixa da Cidade do Cabo, uma jovem loira que parece saída directamente do último desfile de Karl Lagerfeld. Do outro lado, um jovem negro pede uns trocos. A luta política contra o apartheid terminou há muito, mas ainda existe um importante caminho a percorrer para que a sociedade sul-africana consiga reflectir igualdade de direitos e oportunidades.
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De um lado do passeio, na baixa da Cidade do Cabo, uma jovem loira que parece saída directamente do último desfile de Karl Lagerfeld. Do outro lado, um jovem negro pede uns trocos. A luta política contra o apartheid terminou há muito, mas ainda existe um importante caminho a percorrer para que a sociedade sul-africana consiga reflectir igualdade de direitos e oportunidades.
A cidade ainda é algo esquizofrénica. Com marcas cosmopolitas, um traçado urbano por vezes aliciante e ofertas culturais e de entretenimento que fariam inveja a muitas capitais europeias. É uma mistura encardida de Londres, Amesterdão, Miami e mais qualquer coisa de indefinível. Mas, como todas as urbes em transformação, oscila entre o controle e o caos, e as assimetrias entre ricos e pobres transformam o espaço numa zona fortificada.
Na Cidade do Cabo, como nas restantes cidades do país, a luta ainda é política. Mas é também cultural, cada vez mais. Há uma nova geração, pós-apartheid, na música, nas artes plásticas, no cinema ou na moda que começa a ser conhecida no Ocidente, projectando os desvios, as contradições e as sobreposições de um país que personifica a mudança e o movimento, mostrando-nos novos horizontes.
A maior parte desses criadores poderá não ter o profissionalismo de Nova Iorque ou de Londres. Mas o improviso, o arriscar de novas mesclas, a ausência de uma noção sagrada da História e o sentido de urgência devolvem-nos qualquer coisa de novo e intenso. Não espanta que o Ocidente, em crise de ideias, olhe para eles com fascínio. É isso que tem acontecido nos últimos meses, enquanto o país se prepara para receber o Campeonato do Mundo de futebol, com os Die Antwoord, praticantes de rap-rave.
O zef
Foi em Fevereiro. Os vídeos "Enter the ninja" e "Zef side" foram colocados na Internet e, do dia para a noite, transformaram os desconhecidos Die Antwoord, da Cidade do Cabo, num dos fenómenos mais surpreendentes dos últimos tempos. A sua caixa de email entupiu e nas semanas seguintes, num ápice, cinco milhões de pessoas viram os vídeos no YouTube, antes de qualquer contrato discográfico.
Em "Enter the ninja" tomamos contacto com uma sonoridade que tanto remete para o rap como para referências "rave" do início dos anos 90 ou para sons de videojogos. Identificamos os elementos mas o todo revela-se electrizante. No monólogo introdutório, as primeiras palavras debitadas em afrikaans (o idioma oriundo da colonização holandesa) por MC Ninja, 35 anos, branco, magricela, alto, tatuado, penteado terrível, dentes dourados, transportam-nos para a mescla da África do Sul. "I represent the South African culture. In this place, you get a lot of different things: blacks, whites, coloured, english, afrikaans, xhosa, zulu, watookal. I'm like all these different things, all these different people - fucked into one person", debita.
Pelo meio, surge a pequena Yo-Landi, de idade indefinida, cantando, ameninada, uma letra tão caricata quanto pegadiça: "Ai, ai, ai, i am your butterfly. I need your protection, be my samurai."
Quem também anda por lá é Leon Botha, artista plástico, nascido com doença genética, responsável pelas artes visuais do videoclip - com algo de pós-Keith Haring - que podem ser exploradas na secção "secret chamber" do soberbo site do grupo.
O videoclip de "Zef side" é ainda mais desconcertante. Imagens dos subúrbios brancos da Cidade do Cabo, bêbados cambaleando, motas de grande cilindrada, vulgaridade incorporada, quase como um documentário. Celebração da cultura zef da população afrikaner, de tudo o que é trivial. Frases sem sentido ditas por Ninja, trajando uma t-shirt de Vanilla Ice e uns boxers com a capa do álbum "Dark Side Of The Moon" dos Pink Floyd.
Por cima, um ritmo electrónico que tanto parece nostálgico como futurista, lançado pelo terceiro membro do projecto, DJ Hi-Tech, responsável pelas "next-level beats", como lhes chama Ninja, no sentido de "passagem à próxima fase", como nos videojogos. Por vezes parece que estamos a ver "Rize", o documentário de David LaChapelle - que se viu envolvido em polémica pela dimensão estetizante dada ao krumping, a dança urbana dos subúrbios de Los Angeles.
De imediato, em blogues e redes sociais, começou a discutir-se o fenómeno. Uns juravam que eram a coisa mais genuína que alguma vez tinham ouvido. Outros afiançavam que era apenas uma paródia à suburbana cultura zef sul-africana. Completamente autênticos ou totalmente falsificados, nunca mais pararam de ser comentados. Pela música, pela imagem, pela atitude e pelos debates, tendo no centro teses de classe, identidade, raça ou autenticidade.
É natural. O zef é uma variante rap que foi adoptada pelas classes trabalhadoras brancas dos subúrbios. Personifica as vidas solitárias que se decidem à volta de jogos de computador. A letargia de domingo em frente à TV. Os lugares de fast-food. Os barbecues da classe média junto de piscinas de água esverdeada. Um hedonismo sem grande alegria de gente contrariada sem perceber porquê. De rebeldes sem posicionamento político, pouco articulados quando falam, mas muito expressivos quando utilizam linguagem vernacular. Não exactamente os excluídos em que nos habituámos a pensar quando imaginamos a África do Sul, mas sendo-o também, no contexto da população branca afrikaner.
Os Die Antwoord devolvem-nos isso, de forma hiper-realista, através de uma música ascética para voz e ritmo, mas com letras excessivas que retratam essa realidade urbana, com qualquer coisa de divertido mas também de cruel. Entre o senso comum e o sentido de humor. Entre a crónica social e o puro entretenimento.
A África do Sul natal divide-se quanto ao acontecimento. Os afrikaners mais velhos vêem-nos como embaraço nacional, pela linguagem suja, enquanto os mais novos os adoram. A mesma relação têm com a música do "rapper" branco Jack Parow, que participa no álbum dos Die Antwoord, ou com a banda rock Fakofpolisiekar. Fazem parte de uma nova geração que já não tem vergonha de ser afrikaner. Possuem uma visão crítica sobre o papel dos pais no processo do apartheid, mas essencialmente procuram novas formas de auto-expressão.
Fora de portas, nunca a cultura pop sul-africana tinha sido tão badalada. As mais influentes publicações americanas e europeias têm-lhes dedicado espaço, reflectindo surpresa pelo acontecimento. Até há pouco, o álbum de estreia, "$O$", estava disponível no site para descarregamento gratuito. Mas entretanto, no Facebook, angariaram quase 80 mil seguidores. O penteado da loira Yo-Landi, rapado dos lados, tornou-se num modelo a seguir em Paris ou Londres. Os Die Antwoord encontraram-se com o realizador Neill Blomkamp ("District 9") e combinaram uma colaboração. Em Abril, os principais agentes da indústria presentes em Los Angeles, para o festival Coachella, viram-nos em palco.
Conclusão? A gigante Interscope (de Eminem, Black Eyed Peas ou Lady GaGa) contratou-os, preparando-se para relançar o álbum de estreia. Depois de firmado o acordo, Ninja tratou de mostrar ao mundo o que pensava num vídeo provocador, surgindo com uma tatuagem representado dólares, ao lado do símbolo ying-yang. Pelo meio, a Live nation, a maior companhia de eventos do mundo (a tal que assinou um contrato com Madonna), quer assinar com eles. E já este mês iniciam uma digressão pelos Estados Unidos, a Europa e o Japão, com algumas dessas datas a serem partilhadas com a agora cúmplice de editora, M.I.A.
Salada de frutas
Há semanas, no Festival Spot da Dinamarca, num seminário com agentes da indústria de todo o mundo, eram apontados como um exemplo feliz de como uma ideia muito específica, com características localizadas, é capaz de ser apreendida globalmente. Como aconteceu com M.I.A., Buraka Som Sistema ou Major Lazer, que resgataram linguagens desqualificadas, trazendo-as para o centro dos acontecimentos da cultura pop globalizada.
O facto de tocarem vários estereótipos sociais contribuiu para que estoirassem de forma tão rápida. Movem-se numa linha ténue, entre a farsa e a arte performativa. São afrikaners, mas não atribuem nenhum significado particular a esse facto. "Não é qualquer coisa em que pensemos", reflecte Yo-Landi. "Na África do Sul imensa gente fala afrikaans. É apenas a nossa linguagem, a que usamos para comunicar. Tem charme e as pessoas riem-se."
E o que têm a dizer os próprios sobre as ambivalências onde são colocados? Às vezes não se levam a sério. "As pessoas pensam muito. Não matutamos sobre o que fazemos, é apenas divertimento", diz Ninja. "O país é governado por negros e diferentes tipos de pessoas habitam aqui - é uma salada de frutas cultural. Mas ainda não somos um arco-íris. O racismo é coisa antiga, mas em países como os EUA não sei se não será bem pior. É qualquer coisa de escondido. Ao menos, aqui, é declarado."
Outras vezes levam-se a sério: "Sou sério acerca de tudo" afirma Ninja. "Até sobre o meu penteado. Somos arte pop em fusão com arte erudita. Gostamos tanto de actuar ao vivo como de filmes. Somos sérios acerca do que fazemos, mas também temos sentido de humor. Algumas pessoas não percebem o nosso estilo e acham que é tudo diversão. Não é verdade. Mas a nossa música não é intelectual - fazemos música para o homem comum."
Watkin Tudor Jones, o nome que se esconde por detrás de Ninja, não é tonto, sabendo-se mover naquele plano inclinado onde não se percebe onde começa a farsa e acaba a sinceridade. Como ele diz: "Ninja não é uma personagem, é uma extensão, uma versão exagerada de mim próprio." E está longe de ser um novato também, tendo liderado projectos como os Evergreen, Constructus Corporaton ou Max Normal. Os Die Antwoord (que em afrikaans significa "a resposta") são vistos pelo próprio como a última oportunidade para triunfar no mundo da música.
A ideia para o projecto veio-lhe da audição da música difundida pelos táxis na Cidade do Cabo. "Os táxis, aqui, tocam muito alto aquele tipo de som rave. É fácil de ouvir, do outro lado da cidade, o som 'dum, dum, dum' a dar, a dar, a dar, como se os táxis fossem discotecas ambulantes. Todo o disco foi concebido a pensar nesses táxis, naquela parada energética sem comparação."
No meio da excitação que têm criado, até pode acontecer que se transformem apenas, como outros, numa nota de rodapé do YouTube e da Internet, mas também pode suceder que venham a ser o maior colectivo para fomentar festa desbragada por esse mundo fora. Até podem ser a próxima Lady GaGa, como ironizou o "Los Angeles Times", por causa da estética bizarra e da atitude algo provocadora. É impossível prenunciar o que se seguirá. Por agora é certo que, onde quer que actuem, vão provocar sorrisos, expressões de espanto ou momentos de dança descontrolada. Já ninguém consegue ser neutral em relação aos Die Antwoord. Talvez nem Cristiano Ronaldo, Messi ou Káká.
Citações retiradas das publicações "Vice", "Dazed & Confused" e "New York Magazine"