Presença da "presença"

Publicado há vários meses mas tardiamente distribuído, "Indícios de Oiro" assinala os oitenta anos de Eugénio Lisboa, que correspondem a décadas de intervenção crítica. Autor de obras ensaísticas importantes, como "Crónica dos Anos da Peste" (1973-1975), Lisboa andou na órbita "presencista", tendo estudado em especial a obra de José Régio, de quem foi amigo.

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Publicado há vários meses mas tardiamente distribuído, "Indícios de Oiro" assinala os oitenta anos de Eugénio Lisboa, que correspondem a décadas de intervenção crítica. Autor de obras ensaísticas importantes, como "Crónica dos Anos da Peste" (1973-1975), Lisboa andou na órbita "presencista", tendo estudado em especial a obra de José Régio, de quem foi amigo.

Os dois grossos volumes de "Indícios de Oiro", que reúnem textos dispersos, também são, de algum modo, crítica presencista. Não porque se ocupam apenas dos escritores ligados à revista coimbrã, mas porque os ensaios partem de pressupostos críticos afins aos de Régio e seus colegas. O próprio título é, além da homenagem poética óbvia, um sinal: Lisboa procura "indícios", ou seja, intuições críticas, do "oiro", que corresponde ao que Régio chamava "um caso". Interessa-lhe encontrar intuitivamente os grandes casos da literatura, nomeadamente da portuguesa. Embora tenha sido professor universitário, Eugénio Lisboa tem uma mentalidade ostensivamente não-académica, e a sua tendência polémica tem como alvo frequente a universidade portuguesa, e o cânone que esta terá estabelecido.

Lisboa rejeita algumas ideias dominantes. O domínio do significante sobre o significado, a tendência hermética, e aquilo a que chama o "vocabulário ingramável" e a "sintaxe teratológica". Por mais equívoca que sejam essas palavras, defende no essencial uma literatura de realismo e claridade. Um realismo plural, aberto ao social e ao metafísico. E uma claridade de simplicidades aparentes, com zonas de sombra. Ocupando-me nesta recensão apenas do primeiro volume (sobre autores portugueses), direi que é notória a valorização de autores que estão do lado de uma certa "legibilidade", como Namora ou Eugénio. No que ao romance diz respeito, a bíblia de Lisboa é o Forster de "Aspects of the Novel" (1927). O ensaísta faz justiça aos contistas portugueses, em textos lúcidos sobre Domingos Monteiro, Branquinho da Fonseca e Maria Judite de Carvalho, que apontam diferentes caminhos realistas, do comezinho ao inquietante: " (...) nas narrativas de Domingos Monteiro, nada é só o que parece: o real não é só real e sugere ou coabita com ou promove o sobrenatural, as pessoas são mais do que à primeira vista nos é transmitido, as histórias despretensiosamente contadas são mais do que histórias bem contadas, a vida aparentemente mais banal transmuta-se em destino, o banal quotidiano enche-se inesperadamente de conteúdo mítico ou simbólico (...)" (pág. 210).

O ensaísta também não aceita certos "diktats" intelectuais, como aquele que menospreza o biografismo. Ao contrário, acha úteis as biografias bem feitas, e na recensão a uma vida de Júlio Dinis (paradigma da legibilidade) mostra como se criam falsas imagens dos escritores, no caso de um romancista que, segundo Eça, "viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve", resumo que Eugénio Lisboa considera escandaloso. Lisboa recupera igualmente autores ignorados por causa da sua discrição, enaltecendo o regionalismo vernáculo de João de Araújo Correia ou o minimalismo ensimesmado de Saul Dias. O negregado "psicologismo" também é resgatado, e Lisboa diz que o que serve para Proust também há-de servir para a pátria. E há ainda um perceptivo ensaio que demonstra que David Mourão-Ferreira não é, como se julga, um poeta totalmente luminoso.

Às vezes aparecem juízos bastante discutíveis. Será verdade que Urbano Tavares Rodrigues nunca é toldado pela cegueira partidária, como aqui se diz? Que Sílvio Lima foi o nosso maior ensaísta? Que o instinto sexual é decisivo em Torga? Pontos que ficam por provar. Em contrapartida, o autor tem intuições e deduções excelentes, como as páginas sobre um Rodrigues Miguéis americano que nunca saiu de facto de Lisboa, ou sobre a correspondência de Jorge de Sena que rasura a interioridade. E também há belos textos de literatura comparada: a aproximação de "A Selva" a "Heart of Darkness" ou a noção de exílio em Pessoa e Cavafis. Nem todos os ensaios são elogios: o autor é severo com a obsessão Nobel de Vergílio, e ajusta velha contas presencistas com Casais Monteiro. Se Eugénio Lisboa abusa das citações, é verdade que também regista os factos, alguns menos conhecidos, para que possamos formar o nosso juízo.

O volume I de "Indícios de Oiro" acaba menos bem, com um punhado de textos sobre alguns autores dispensáveis que deslustram um pouco o critério exigente de Eugénio Lisboa. Mas começa muito bem, com evocações em que a literatura não se distingue da vida. É o caso de um Camões visto do Índico (o autor nasceu em Moçambique), ou dos tocantes textos sobre Camilo como autor que nos faz companhia (com o pai em fundo). É também na "vida" (e não apenas nos "textos") que encontramos o oiro e os indícios.