Toshiki Okada e a geração perdida
16 de Maio de 2007 foi um dia de intensa chuva em Bruxelas. A noite foi toda uma outra coisa: parou de chover e um encenador japonês cujo nome ninguém tinha ouvido e que, exactamente por isso, ainda nenhum programador tinha arriscado apresentar apresentou-se pela primeira vez na Europa com "Five Days in March". O director do Kunsten Festival, Christophe Slagmuylder, tinha visto Toshiki Okada no Japão, e assim começou a aventura de um encenador de 35 anos (mas com ar de ter menos dez) que, mesmo sem falar inglês, passou a fazer o pleno dos festivais europeus até chegar, finalmente, ao Alkantara, onde se apresenta este fim-de-semana, no Teatro Nacional D. Maria II, com "Hot Pepper, Air Conditioner and the Farewell Speech".
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16 de Maio de 2007 foi um dia de intensa chuva em Bruxelas. A noite foi toda uma outra coisa: parou de chover e um encenador japonês cujo nome ninguém tinha ouvido e que, exactamente por isso, ainda nenhum programador tinha arriscado apresentar apresentou-se pela primeira vez na Europa com "Five Days in March". O director do Kunsten Festival, Christophe Slagmuylder, tinha visto Toshiki Okada no Japão, e assim começou a aventura de um encenador de 35 anos (mas com ar de ter menos dez) que, mesmo sem falar inglês, passou a fazer o pleno dos festivais europeus até chegar, finalmente, ao Alkantara, onde se apresenta este fim-de-semana, no Teatro Nacional D. Maria II, com "Hot Pepper, Air Conditioner and the Farewell Speech".
São sete da tarde no Japão quando ligamos a Toshiki Okada, ainda a manhã começa em Lisboa. Está prestes a entrar num ensaio, no mesmo dia em que saiu de cena, em Nova Iorque, a versão norte-americana de "Five Days in March", tomada agora de assalto por um grupo local interessado nas analogias possíveis com a vida dos jovens adultos japoneses de Yokohama, grande cidade industrial na cintura de Tóquio, durante os dias que mediaram o anúncio da invasão do Afeganistão e a entrada das tropas naquele território do (sic) "Eixo do Mal". A vida daquelas pessoas, iguais a tantas outras em outros tantos lugares do mundo, não ficou necessariamente marcada por esses acontecimentos concretos, mas eles dão o enquadramento necessário a uma "certa infantilização dos jovens adultos japoneses em sofrimento com o sistema", escreveu Jean-Louis Perrier na revista francesa "Mouvement", em 2008.
Okada lembra-se mal dessa noite em Bruxelas. Mas ainda sabe o que esperava encontrar: "Não sei se há diferença entre os jovens adultos japoneses e os europeus. Nunca tinha estado na Europa. Sabia que aquilo que estava a fazer dizia respeito à realidade que conhecia. Se há uma identificação, isso deve-se a factores externos, como a expectativa em relação às obras, e ao poder do teatro, no geral". O seu teatro, nessa peça como na que apresenta amanhã e depois em Lisboa, estreada em 2009, revela uma geração perdida, presa entre o que deveria ser "e o que já não é", diz-nos. Lembramo-nos das notícias dos adolescentes japoneses que se fecham nos quartos e cortam laços com a família durante dias, "ou meses e anos", alerta o encenador. "Estamos a falar para essas pessoas ou dessas pessoas?"
No Japão como na Europa, a geração apresentada pelo encenador (que é, aliás, a sua própria geração, da qual nunca se demarca) está "perdida" na "encruzilhada de dois mundos (família/tribo, trabalho/desemprego, passado/futuro, Oriente/Ocidente)", sublinha ainda Perrier. Os jovens adultos do teatro de Toshiki Okada são "os arautos incertos de um Japão incapaz de acelerar a mudança. Revelam as falhas de uma sociedade arquitectada nas suas convenções, na sua rigidez, nas suas hierarquias, na sua história e na sua aparência. Eles desesperam e divertem-se, não sem escândalo, na medida em que aceitam perder docemente a face, exibindo relaxadamente os seus traços em público, como se se encontrassem sozinhos perante a privacidade do espelho."
O que mais impressiona nas peças de Okada é o modo como desmonta um certo exotismo que possamos ainda sentir em relação ao Oriente, e em particular à eficácia da máquina social japonesa, e releva uma agrura social que imaginávamos mas não sabíamos tão presente, e tão premente, numa sociedade hiper-mediatizada que acontece ser japonesa, mas podia ser norte-americana ou da Europa no eixo Paris-Bruxelas-Londres-Berlim.
O teatro da normalidade
"Hot Pepper, Air Conditioner, and the Farewell Speech", a peça que Okada traz ao Alkantara, estreou em 2009 em Berlim como resultado de uma extensão de "Air Conditioner", pequena encruzilhada estilística e súmula do pensamento de um encenador que considera "necessário trabalhar o que está entre o corpo e a imagem" ("Se o movimento do corpo segue o sentido da palavra, isso não tem nenhum interesse", resume). Quando escreve, diz-nos Okada, pensa "no corpo dos actores": "As palavras, as expressões surgem quando já tenho uma ideia genérica da história. É a linguagem que se impõe à escrita. A linguagem está em mim. Não sou nem tradutor nem reprodutor, mas produtor", clarifica.
Toshiki Okada entende o teatro, ou "a tradução fictícia da realidade", como um espaço de pesquisa sobre o real poder de intervenção na sociedade. "Hot Pepper, Air Conditioner and the Farewell Speech" apresenta corpos sem relação directa com o texto, numa lógica de diálogo ampliador. "São duas coisas que não se separam e, no entanto, um corpo em palco, feito por um actor que está só a representar, diz mais coisas do que aquelas que o actor sabe". O teatro, disse à "Mouvement", está melhor colocado do que a dança para representar a dimensão social da vida porque há esta relação entre corpo e linguagem.
As suas personagens são, concorda, figuras "normais", em vidas "normais", a fazerem coisas "normais". "Há algo de mais teatral do que a normalidade?", pergunta. Essa normalidade, em Okada entendida como veículo para entrar a fundo nos sonhos traídos de uma geração sem rumo, é apresentada através de um modelo expositivo, que em nada parece impor uma ordem, e muito menos uma solução. Diz-nos em conversa que "não acredita que o teatro possa ser um veículo moralizador e muito menos capaz de apresentar um modelo convincente para entender o mundo".
Será, eventualmente por isso que, nas suas peças, é através do corpo, muitas vezes mudo, que sentimos a velocidade do tempo a passar. São situações do quotidiano: em "Five Days in March", o pano de fundo era a espera pela guerra, mas as conversas das pessoas eram sobre outra coisa, sobre nada, e isso dizia tudo sobre a impossibilidade de falar de outra coisa; em "Hot Pepper...", os corpos falam de ar condicionado, de espaços para festa, de uma hipótese de sociabilização que nunca vai existir, de uma ideia de mundo falsa, consciente dessa falsidade mas ainda assim a tentar sobreviver. São corpos de uma geração que "em tudo gostaria de se assemelhar a algo inacabado, sem antecedentes conhecido (...), girando sem cessar num vazio que os aspirasse se não se obstinassem em vivê-lo", escreveu Jean-Louis Perrier. "São pessoas que pertencem a quê?", pergunta-nos Okada.
É isso que quer dos seus actores. Que perguntem e expliquem mesmo aquilo que não sabem. "Talvez esteja aí a solução", diz. Okada pede-lhes "para se afastarem do texto, como contrapeso a uma consciência demasiado presente durante o discurso. Texto e movimento devem neutralizar-se para darem lugar a um impulso mais 'puro'".
É uma estratégia de procura (e, para nós, de descoberta): Okada a expor a cultura contemporânea japonesa "com as suas experiências severamente introvertidas", escreveu Lieve Dierckx no jornal flamengo "Rekto:Verso", depois dessa estreia mítica, depois de um dia de chuva intensa, em 2007.
TBC