Fora e dentro de campo
No texto que Isabel Carlos assina no catálogo de "Mais Que a Vida", o trabalho com referências do cinema e a dimensão psicológico-psiquiátrica são apontados como motivos que explicam o encontro das obras de Vasco Araújo (Lisboa, 1975) e do artista venezuelano Javier Téllez (1969) na Fundação Calouste Gulbenkian. Depois de vista a exposição, poderíamos acrescentar mais dois: a apresentação de realidades em que o "ser sujeito" (ou o ser "humano") é objecto de um discurso, e a produção de histórias, situações, narrativas.
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No texto que Isabel Carlos assina no catálogo de "Mais Que a Vida", o trabalho com referências do cinema e a dimensão psicológico-psiquiátrica são apontados como motivos que explicam o encontro das obras de Vasco Araújo (Lisboa, 1975) e do artista venezuelano Javier Téllez (1969) na Fundação Calouste Gulbenkian. Depois de vista a exposição, poderíamos acrescentar mais dois: a apresentação de realidades em que o "ser sujeito" (ou o ser "humano") é objecto de um discurso, e a produção de histórias, situações, narrativas.
"Mais Que a Vida" é, fundamentalmente, uma exposição de narrativas: melodramáticas, como as vidas sentimentais de várias mulheres (quais Gloria de "Que Fiz Eu para Merecer Isto?, de Pedro Almodóvar) em "Mulheres de Apolo" (2010), de Vasco Araújo; ou inusitadas como a viagem de um rinoceronte embalsamado pelo Pavilhão de Segurança do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, em "O Rinoceronte de Dürer", de Javier Téllez. É nessa componente narrativa (do documentário à ficção, da citação e da apropriação do cinema à alegoria e ao registo de um performance musical) que se concretiza o confronto, inevitável, entre as propostas dos dois artistas.
Os filmes e as instalações de Javier Téllez entrecruzam, tematicamente, a loucura, a doença e o cinema enquanto mecanismo que regista e projecta imagens em movimento. Pretendem "curar a lucidez do são" - sugeriu o próprio, numa entrevista à publicação americana "Bomb Magazine" - através de uma renovação do acto de ver e olhar. Dessa vontade são exemplares "Caligari and the Sleepwalker" (2008), onde a hipnose é, ao mesmo tempo, um efeito da experiência do cinema e um meio da psiquiatria, ou "La Passion de Jeanne d´Arc (Rozelle Hospital Sydney)", uma dupla projecção composta pelo filme original de Carl Dreyer, com as legendas reescritas por doentes de um hospital psiquiátrico, e um documentário com os testemunhos de 12 pacientes. Esta é a peça mais complexa e interessante de Téllez: ao escreverem as legendas, num quadro a giz, as doentes introduzem a sua voz na ficção de Dreyer.
Nem todos os trabalhos possuem tal engenho formal. Por vezes a forma não resiste ao conteúdo, ao "tema". Veja-se, a propósito, "Letter on the Blind for the Use of Those Who See", que documenta as experiências tácteis de um grupo de cegos sobre a pele de um elefante, ou "O Rinoceronte de Dürer". Nos dois, o conceito não acompanha ou acompanha demasiado depressa a representação.
Desse ponto de vista, as obras de Vasco Araújo logram outra harmonia entre suporte e significado, texto e voz, conceito e imagem em movimento. Sobretudo "Far de Donna" (2005), o seu melhor trabalho na exposição, e "Mulheres d'Apolo" (2010), o mais recente. No primeiro, uma mulher conta, através da linguagem gestual, uma história de ressonâncias edipianas: perdeu a voz no dia em que o filho descobriu ter qualidades vocais de "castrato". A narração é acompanhada de um ensaio do intérprete masculino, entrecortado pela gestualidade da personagem feminina que descreve, de modo expressivo (quase dramático), a morte (e o renascimento) da sua voz. É uma peça forte e curta, com uma tensão emocional organizada pela música e pelas legendas.
Algo semelhante acontece em "Mulheres d'Apolo", mas com menos gravidade. Mulheres de meia-idade dançam num salão de baile. Algumas fazem-no sozinhas, saem e entram no plano, na dança. E pelas roupas parecem ser as que depois ouvimos a falar, em "voice-over", sobre a felicidade, a espera, o papel passivo da mulher. Parecem, pois os seus rostos durante esses testemunhos nunca nos são mostrados. Ficam fora de campo e podem estar - ou estiveram sempre - noutro corpo, noutro sujeito.