Estamos encantados, sr. Apichatpong Weerasethakul
Não nos podem censurar por esperar que Tim Burton, presidente do júri da competição de Cannes, se tenha deixado encantar pelos monstrinhos de "Uncle Boonmee, who Can Recall His past Lives..." como aquele filho que um pai encontra, muitos anos depois, saído da selva, peludo como um macaco negro e de olhos de luz vermelha. Se isso for ganho, o resto não será problema, estará lá outro membro do júri, o espanhol Victor Erice, para ajudar a levar o novo filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul ao Palmarés.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Não nos podem censurar por esperar que Tim Burton, presidente do júri da competição de Cannes, se tenha deixado encantar pelos monstrinhos de "Uncle Boonmee, who Can Recall His past Lives..." como aquele filho que um pai encontra, muitos anos depois, saído da selva, peludo como um macaco negro e de olhos de luz vermelha. Se isso for ganho, o resto não será problema, estará lá outro membro do júri, o espanhol Victor Erice, para ajudar a levar o novo filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul ao Palmarés.
Por nós, estamos encantados, sr. Weerasethakul. Mesmo que não saibamos bem o que os nossos olhos viram. Ninguém sabe, de resto. A não ser que foi uma experiência de estados alterados, uma reserva de sensações, energias e de imaginação que o espectador descobre existir, ou que o filme nele vai apurando.
Ver um filme de Apichatpong Weerasethakul, cineasta de 40 anos, é ficar sujeito à inesperada convivência com outra(s) natureza(s). Tal como Uncle Boonmee, que está a morrer com uma doença de fígado e lhe vê aparecer o fantasma da mulher já morta e o filho desaparecido que se tornou um animal a partir do momento em que acasalou com uma macaca - isto antes de mergulharem na selva, onde animais, plantas, humanos e fantasmas são a mesma espécie, e onde irrompem as outras vidas de Uncle Boonmee, que foi búfalo ou princesa que acasalou com um peixe.
Ah, um filme, uma câmara de filmar, a natureza, os animais... podem permitir esta sensação de estar, como espectador, sujeito à permanente transformação. O máximo da candura, a maior simplicidade de meios, além do mais, resulta aqui no mais desopilante dos filmes - uma homenagem do realizador à cultura da terra onde nasceu, no Nordeste da Tailândia, que, diz ele, tem sido normalizada e destruída por anos de nacionalismo e golpes militares. Não há outro cinema assim, para isso servem as Palmas de Ouro.
Pelo contrário, tudo em "Hors la Loi", de Rachid Bouchareb (Argélia), já foi feito em outros filmes. E sem a sensação de reconstituição de época a evidenciar falsidade por todos os lados. Não fosse a polémica à volta da suposta revisão da História de que sectores conservadores franceses acusam Bouchareb - pela forma como um episódio da luta pela independência argelina, o massacre de Setif, em 1945, é reconstituído -, acordando fantasmas não resolvidos, levando até à marcação de manifestações da França nostálgica contra o filme (e levando o festival a pôr água na fervura e a dedicar o dia de ontem às vítimas da guerra da Argélia), e "Hors la Loi" seria uma nota de rodapé no festival. Segue a vida de três irmãos argelinos e da sua mãe ao longo de três décadas, dos anos 30 à independência de Argel, em 1962. Quis fazer um "Era Uma Vez na América", assumiu o realizador. Ilusões... O filme alinha sequência atrás de sequência, legenda atrás de legenda para sinalizar espaço e época diferentes, mas é um exemplo de impotência para criar personagens e sopro épico.