Elizabeth Hawley: ninguém engana esta mulher

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Elizabeth Hawley na sua casa em Katmand Eric Schlegel/Corbis

Como é que esta venerável avozinha aparece na história? Bom, a pergunta quase não se aplica porque, na verdade, Elizabeth Hawley é, ela própria, parte da história. Torna-se impossível falar da luta pela conquista dos picos mais altos do planeta sem trazer para a ribalta a figura da norte-americana nascida no Midwest que um dia se estabeleceu em Katmandu e começou a fazer um registo minucioso de todas as expedições que se aventuravam no tecto do mundo.

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Como é que esta venerável avozinha aparece na história? Bom, a pergunta quase não se aplica porque, na verdade, Elizabeth Hawley é, ela própria, parte da história. Torna-se impossível falar da luta pela conquista dos picos mais altos do planeta sem trazer para a ribalta a figura da norte-americana nascida no Midwest que um dia se estabeleceu em Katmandu e começou a fazer um registo minucioso de todas as expedições que se aventuravam no tecto do mundo.

Hoje, quase meio século depois, "Miss Hawley", como é conhecida no meio, continua o seu trabalho de registo e compilação de dados, mas, questionada pela Pública via email sobre a recente polémica feminina, deixa uma indicação clara de que não vai assumir a responsabilidade de dizer a última palavra sobre este tema sensível. "Não sou um árbitro ou um juiz das escaladas nos Himalaias do Nepal", assegura.

"Se um cume é contestado por alguém que pode ter informações sobre o assunto, limito-me a ouvir as duas partes. Classifica-se a montanha como "contestada" na Himalayan Database [a base de dados da organização de Elizabeth Hawley], mas continua a ser dado o crédito a quem a reclama; portanto, a reivindicação de Miss Oh de ter escalado o Kangchenjunga no ano passado está marcada como "contestada", mas ela mantém-se na lista como tendo pisado o cume."

A partir daqui, só mesmo uma prova concludente a apresentar por alguma das partes poderá "desempatar" a questão. Mas nem sempre é assim tão complicado. Às vezes, a argúcia e a memória implacável de Miss Hawley desfazem imediatamente as dúvidas. Apesar de estar convencida de que "muito poucos mentem de forma consciente", a verdade é que não é raro perceber-se que, por má-fé ou confusão, alguém reclama ter pisado cumes onde não chegou a estar.

Uma boa parte da explicação para estas confusões está na própria realidade que se vive acima dos 7000/8000m. O ar que se respira é rarefeito (embora a maioria dos alpinistas que arriscam a vida nestas altitudes o faça respirando com máscara e garrafas de oxigénio), as condições do terreno são complicadas, a meteorologia caprichosa. Cansados, desidratados, às vezes confusos, os alpinistas movem-se em câmara lenta numa paisagem que pode mudar a qualquer momento e onde os pontos de referência muitas vezes não são óbvios.

Ou seja, podem baralhar-se. Com bom tempo, ou em cumes onde vários alpinistas chegam ao topo ao mesmo tempo, o simples cruzamento de testemunhos legitima ou desmente as reivindicações. Mas há casos bem mais complicados, especialmente nas montanhas de 8000 metros, onde acontece com frequência um alpinista não ter provas materiais nem ninguém que corrobore a sua versão dos factos. E aqui entra o insidioso factor que está a matar a aura romântica do alpinismo: a força do dinheiro.

Batoteiros e mentirosos

Dantes não passava pela cabeça de ninguém que um alpinista reclamasse um cume se não estivesse, genuinamente, convencido de o ter atingido. Mas hoje, a guerra pelos patrocínios e pela notoriedade fomenta o apetite pelos atalhos no capítulo da ética. É verdade que há casos notáveis de dignidade que continuam a fazer-se notar - o espanhol Jorge Egocheaga foi dado no ano passado como o único a fazer cume no K2 (8611m), a segunda montanha mais alta do mundo, mas esclareceu no regresso que tinha ficado a 12 metros do ponto mais alto devido às más condições do terreno. Mas os maus exemplos ganham terreno.

O site Explorersweb compilou as dúvidas e polémicas da época de 2009 e foi mesmo ao ponto de declarar o vencedor entre os batoteiros. O "prémio" foi para a Suécia: Annelie Pompe e Johanna Ohrn fabricaram uma história de sucesso no Shishapangma (8013m, no Tibete). Reclamaram ter chegado ao cume principal (esta montanha tem um cume secundário, chamado "cume central", onde se chega no final da escalada vertical, mas depois há que fazer mais de um quilómetro praticamente na horizontal por uma lâmina de gelo arrepiante até se pisar o ponto mais alto) e mostraram fotos da sua proeza.

Annelie e Joahanna, bem como o belga Edmund Spoden e o sherpa Tashi Sherpa, foram aclamados pela sua coragem e perícia, mas logo a seguir uma veterana destas coisas, Janne Corax, fez alguma pesquisa. E encontrou algo que chocou a comunidade alpinista mundial: as fotos da expedição sueca de 2009 eram, afinal, imagens retocadas de originais divulgados por outras expedições em anos anteriores. Numa delas foi apagado um alpinista, outras foram reenquadradas e ampliadas.

Tivesse esta escalada decorrido no Nepal e Miss Hawley não teria grandes dificuldades em desmascarar a farsa. "Ela faz imensas perguntas. Pode ter a idade que tem, mas a memória é de elefante. Vai anotando os pormenores, recolhendo depoimentos e comparando com o passado." O relato é de Aurélio Faria, o jornalista da SIC que acompanhou o português João Garcia nas suas mais recentes expedições. "Com o seu ar de avozinha, onde quer que vá toda a gente faz vénias. Mas os alpinistas têm-lhe muito respeito. Alguns até se vê que não estão muito à vontade..."

Talvez seja a consciência de que se "apanha mais depressa um mentiroso do que um coxo", como assume João Garcia. O veterano alpinista, que este ano se tornou no 10.º homem da história a escalar todos os "8000" sem oxigénio artificial, já perdeu a conta às vezes que teve de contar as suas histórias a Elizabeth Hawley. "Não falha: à chegada damos conta dos nossos objectivos; antes de partirmos reportamos o que aconteceu."

Com pormenores e sem hesitações. Aurélio Faria: "No regresso do Annapurna, ela perguntou ao João: "Como é que sabias que estavas no cume?" E ele falou que via umas bossas, como se fosse o dorso de um camelo. Comentário dela: "Foi isso mesmo que disse a Edurne [a espanhola chegou ao cume no mesmo dia]." Miss Hawley está sempre a comparar e a procurar os pormenores que legitimam os relatos de cume."

Não admira, por isso, que alguns alpinistas se sintam intimidados. Talvez, à partida, porque estão na presença de uma lenda viva. "É como estar com o Dalai Lama...", compara Rui Rosado, que se encontrou com a americana em 2006. Nessa sua experiência, aliás, o alpinista português teve uma boa noção de como funciona a máquina montada por Elizabeth Hawley: "Ainda estávamos a pousar as malas no lobby do hotel quando o telefone tocou na recepção. "Miss Hawley para o sr. Joao Garcia", anunciou o empregado..." Parece incrível, mas "isto acontece muitas vezes", confirma João Garcia. "Às vezes até adivinhamos logo que é ela..."

Memória de elefante

Omnipresente e omnisciente? Sim. "Há, na comunidade montanhista, uma velha máxima: "Tal como acontece com Deus, a Elizabeth Hawley podes mentir, mas não enganar"", revela Aurélio Faria. Como é que uma velhota de aspecto frágil e óculos na ponta do nariz consegue esta performance quase divina?

Para começar, porque estabeleceu uma enorme rede de contactos e não há alpinista que chegue a Katmandu, ou parta, sem ela saber. Depois, conta com dois colaboradores a tempo inteiro, um nepalês e uma alemã, com quem divide a tarefa de entrevistar os líderes das expedições - "Este Outono, uma americana vai juntar-se a nós", anuncia no contacto por email. E, finalmente, há a base de dados, com uma impressionante memória acoplada. "Ela conta muitas histórias, algumas de quando eu ainda nem era nascido...", relata João Garcia.

O português tem 42 anos e nasceu em 1967. Miss Hawley está em Katmandu desde 1960, onde chegou depois de uma grande viagem à volta do mundo que interrompeu 11 anos de carreira como jornalista. Reatou-a no Nepal, primeiro relatando as vicissitudes políticas do reino, depois centrando a sua atenção no mundo do alpinismo. A primeira expedição que acompanhou foi a que colocou os primeiros norte-americanos no cume do Evereste, em 1963. Ainda hoje escreve para uma série de publicações internacionais.

A presença, conspícua, do seu VW carocha azul tornou-se lendária nas ruas da capital nepalesa. E ainda se mantém, embora a octogenária já não se sente atrás do volante. "Continuo a ter o meu VW de 1963, mas já não o conduzo. Tenho um motorista que enfrenta o tráfego sem lei desta cidade... E não faço quaisquer planos de mudar para um carro novo."

Em 50 anos de actividade jornalística, criam-se muitos contactos. E sobram muitas histórias. Aurélio Faria e Rui Rosado lembram os rumores de que Miss Hawley terá espiado para a CIA durante a Guerra Fria - "Até se conta que, nas entrevistas aos soviéticos, fingia não entender russo, mas os mais velhos garantem que ela percebia tudo o que diziam uns aos outros...", adianta o jornalista da SIC.

Seja como for, é na comunidade alpinista que ela tem agora o seu feudo. "É como um ritual: chega, arranjam-lhe uma cadeira porque ela não gosta de se enterrar num sofá, o assistente passa-lhe uma caneta, ela faz perguntas, conta histórias, entrega ou recolhe os questionários, no final sai por entre vénias e atira-se para o banco de trás do Carocha. Estou sempre com medo que ela bata com a cabeça, mas nunca aconteceu", conta João Garcia. "Comigo foi sempre muito amistosa, mas imagino quando ela quiser ser mazinha... é implacável!"

Em Abril, no regresso do Annapurna, Elizabeth Hawley felicitou "calorosamente" o português, que considera, "claramente, um alpinista muito forte e rápido". E foi quase maternal: "Disse-lhe para se deixar de coisas mediáticas", lembra Aurélio Faria. Mas não o aconselhou a ficar no remanso do lar, embora ela própria seja uma confessa adepta das mordomias da vida "civilizada". Nunca se meteu a subir montanhas, nem sequer em passeios. "Gosto demasiado de dormir na minha cama e de comer a minha comidinha", confessou por diversas vezes. Ainda assim, é uma personagem incontornável na história do alpinismo mundial e até há uma montanha com o seu nome, o Pico Hawley (6182m).

Com a época da Primavera já adiantada, Miss Hawley há-de por agora estar ocupada a ler as fotocópias do seu inefável (e incontornável) inquérito, que entrega a todos os alpinistas que chegam ao Nepal e recolhe no momento da partida. "É escrito à máquina, não em computador", salienta Aurélio Faria, mas essa não é a característica mais notável deste documento "quase anacrónico em pleno século XX".

É que o questionário de Miss Hawley não deixa nada em branco. Ela massacra os montanhistas com perguntas e não admite respostas evasivas. "Não podemos escrever na profissão que somos professores, por exemplo. Ela ataca logo: "Professor de quê?"", explica João Garcia. E depois há aquelas coisas... Um grupo de perguntas versa o estado civil: casado(a), divorciado(a), solteiro(a), a viver com um(a) amigo(a)?

Já houve quem respondesse sim a todas estas questões. Confusos? Não. O italiano Reinhold Messner, o primeiro homem a escalar todos os "8000" e considerado o maior alpinista de todos os tempos, justificou assim as suas quatro afirmativas: "sim" era casado e divorciado porque, tendo-se separado da mulher, a Itália não reconhecia o divórcio. "Sim", vivia com uma amiga. Mas "sim", sentia-se muito sozinho por esses dias... Por uma vez, Miss Hawley cedeu.