O nome dos mortos é Pippo Delbono
Turim, 5 de Dezembro de 2007. Um incêndio irrompe nas instalações da multinacional metalúrgica ThyssenKrupp. No rescaldo, encontram-se os corpos de oito trabalhadores que não conseguiram fugir às chamas. Os seus nomes acabarão esquecidos: as notícias dos jornais dão sobretudo conta da capacidade de reacção da administração da empresa, muito rápida a restabelecer o funcionamento normal da fábrica.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Turim, 5 de Dezembro de 2007. Um incêndio irrompe nas instalações da multinacional metalúrgica ThyssenKrupp. No rescaldo, encontram-se os corpos de oito trabalhadores que não conseguiram fugir às chamas. Os seus nomes acabarão esquecidos: as notícias dos jornais dão sobretudo conta da capacidade de reacção da administração da empresa, muito rápida a restabelecer o funcionamento normal da fábrica.
Quase um ano depois, a 21 de Outubro de 2008, no Teatro Stabile, em Turim, esses mortos passam a ter de novo um corpo, uma voz, e um nome, numa peça chamada "La Menzogna" (em português, "A Mentira"). Chamam-se, todos e cada um, Pippo Delbono.
A fábrica, alegoricamente recriada em palco, continua negra, perturbadora. Os actores, essa trupe de gente que incomoda o olhar pela deficiência, uma anormalidade que não é nem cénica nem ficcional, vão entrando, um a um. "Chegaram os actores", pensa-se, tal como em "Hamlet". Chegaram para mostrar o que não podia ter acontecido. Para reagir. E, assim, fazer-nos reagir. As cenas sucedem-se, há gritos, há vídeos moralistas, há a televisão italiana a entrar em cena relevando um país sem rumo, há cães que ladram e fazem lembrar as imagens das torturas em Guantánamo, há actores que se despem e se deitam no chão para nunca mais se levantarem, há espelhos postos à frente da cara dos espectadores, há disparos de máquinas fotográficas, e há violência psicológica, exercida sobre actores com deficiências mentais e físicas que nunca saberemos se chegam a compreender o que estão a representar. Em Turim disseram-lhe que era ele, Pippo Delbono, "quem tinha um problema", que não compreendiam o que estava a fazer, que aquilo "não [era] teatro". Em Paris, onde "há uma arrogância no olhar", mandaram-no "levar no cu". É a nossa vez, agora: "La Menzogna" chega hoje ao Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Nova visita de um velho conhecido: em Portugal, Pippo Delbono já mostrou "Il Silenzio", "Guerra" e "La Rabbia" (CCB, 2004), "Êxodo" (CCB, 2006), "Barboni" (Festival Imaginarius, Santa Maria da Feira, 2007) e "O Tempo dos Assassinos" (Serralves, 2007).
"La Menzogna" é um espectáculo feito a quente por um encenador que nos habituou a uma visceralidade dramatúrgica que não ameniza a relação entre a acção, se há acção, e o espectador, aqui entendido como um soldado a necessitar de instrução acerca das suas funções no combate. O combate que Pippo Delbono trava, "porque o público escolhe ir ver uma das suas peças", é contra nós mesmos e a facilidade com que "ficamos surdos e cegos ao que nos rodeia". É nessa altura, sublinha, "que começamos a morrer". Antes que essa altura chegue, a raiva, essa raiva que incomoda e que ultrapassa a ficção, funcionando como trampolim para "uma história prenunciadora do mal que nos cerca", avisa.
O que aí vem é um mundo soturno que transporta o insustentável peso da responsabilidade de intervir - mas, também, a consciência de que, provavelmente, "La Menzogna" será visto e digerido apenas como uma história. É mais do que isso: o espectáculo em que Delbono regista o modo como a emoção se converte em ficção, a voragem mediática que as tragédias atraem, a especulação retórica do capital e a volatilidade do ser humano. Uma obra negra e radical em que os códigos do teatro fazem pouco pelo mais precavido espectador.
Ao dar voz aos que morreram, Delbono coloca o dedo na ferida e expõe, arriscando, a falência do teatro como hipótese de perdão da História. No fim os mortos levantam-se: não porque no teatro ninguém morra realmente, mas porque, se não permanecerem à nossa frente, serão esquecidos. Foi mais ou menos isto que sentimos quando vimos o espectáculo em Avignon, no Verão passado.
Auto-ficção
Quem é este homem que se expõe assim? "Pippo Delbono sou eu", diz ele, "que não [chorou] com a morte do pai, mas [chora] pelos mortos que não têm quem chore por eles". A dada altura do espectáculo, lança, amplificado pelo microfone que nunca larga: "Desculpem-me se não chego a sentir a dor pelos longínquos mortos anónimos, mas somente a piedade. Por eles, por mim, pelas suas mortes, pela minha morte, pelo desconhecido. Nem mesmo quando o coração do meu pai, jovem, parou, eu senti qualquer dor".
É ele, Pippo Delbono, o mestre de cerimónias, o "condutor de uma viagem" que, "felizmente, se tornou maior do que [ele]". Pippo Delbono, disse ele que se chamavam aqueles mortos, um por um.
Encenador, actor, autor, resistente, autor fora de moda (os temas, aqueles temas, tornaram-se demasiado marginais), mas também da moda (causa frisson, Delbono, em gente com vontade de refundar o mundo a partir de uma ideia de ruptura, levada pela "loucura que a falsidade do teatro permite"). O processo de construção de "La Menzogna" deixou-o "perdido". "Descobri zonas em mim que não me deixam voltar atrás. Coisas difíceis de fechar que não sei onde me levam. Quando um espectador me insulta, isso ajuda a que me coloque no meu lugar", diz. É "oriental na vida, não no palco": "A criação de um espectáculo é um processo muito doloroso. Um espectáculo não é violento para ser violento. É violento porque a sensação de segurança faz medo. Quando deixamos de ver o que está à nossa volta, começamos a morrer". A ideologia vem depois: "A ideologia é uma prisão, um risco, se achamos que em nome dela podemos fazer tudo. E é preciso correr riscos".
Há no teatro de Pippo Delbono uma raiva que se transforma em denúncia, mesmo se a palavra denúncia tem, para o encenador, "uma carga ideológica limitadora". "O mal chega por vagas", alerta. "É preciso, como em Shakespeare, falar desse mal, dessa rede de mentiras que nos cerca, e denunciar a escuridão que se esconde por trás da normalidade. Da mesma forma que se pode, quando se fala da guerra, tentar encontrar a luminosidade que resiste".
Esta raiva não é só ficção, é a sério. "La Menzogna" é um teatro em carne viva, como se a protecção dada pelo palco, e pelos mecanismos de distanciação que a cena impõe, fosse cúmplice da tragédia, da miséria humana e da ignorância. O escândalo passa a ser a palavra de ordem. "O teatro deve tornar-se um laboratório de escândalos", disse Brecht, frase recordada por Bruno Tackels no volume da série "Écrivains de Plateau" dedicado a Pippo Delbono (Éditions Les Solitaires Intempestifs, 2009) para defender que ele "pertence ao grupo de (raros) artistas para os quais o escândalo é uma realidade para ser levada a sério, e em particular numa época que fez de tudo para o erradicar".
"É preciso desmascarar os mascarados", diz-nos Delbono. "É preciso questionar o sentido de representação do teatro e voltar a dar à arte o seu lado político, filosófico, social". Mais do que contra o efeito, o encenador diz que é preciso lutar "contra o risco de aceitar tudo". "O teatro é um acto de amor, não é um acto de raiva. Mais do que raiva, sinto impotência por não poder mudar a estupidez em que vivemos".
O escândalo é uma arma
"Pippo Delbono procura o escândalo porque ele sabe que é uma arma irredutível para denunciar a injustiça, o inaceitável, o incompreensível, mesmo o indizível (...). A provocação não ambiciona o poder, a lei ou a classe dominante; ela pretende, sobretudo, desmontar as injustiças engendradas pelo poder, pela lei ou pela classe dominante", escreve Tackels. Teatro de alerta, portanto?
"Teatro sobre o teatro", desarma-nos Delbono, adepto da "auto-ficção teatral". Um teatro "que quer regressar ao teatro", explica-nos. "O que ele fez em palco não é, de maneira alguma, a sua vida real, mas mais uma energia subterrânea que arranca de si mesmo e que se metamorfoseia em luminosidade cénica", escreveu Bruno Tackels. Fá-lo porque quer falar de identidade. "O que há num nome?", pergunta, recordando novamente Shakespeare, agora em "Romeu e Julieta" ("Uma rosa perde o seu cheiro se não a chamarmos rosa?"): "Um corpo sem nome é menos um corpo?".
A "simplicidade poética" de que Delbono anda à procura está nesses corpos fora da norma, que mais se aproximam de um teatro "directo e brutal" em que "todo o acto iníquo, toda a decisão arbitrária e toda a situação que transporta a marca da injustiça podem encontrar a contestação e a denúncia", continua Tackels. Um teatro feito de corpos humanos, e para corpos humanos. "Nos corpos que escolho (e que sabem sempre o que estão a fazer), há uma verdade mais profunda do que a palavra. A presença deles carrega uma beleza, uma brutalidade, uma fraqueza e uma força que dão mais conta da alma do ser humano que ali está do que do corpo que a enforma. A beleza está na alma, não está na estética", argumenta. "A televisão fixou os parâmetros da estética e amenizou a nossa relação com a dor, pela distancia", reforça. "Se deixarmos de ver a luz que passa através dos olhos, deixamos de ver o que importa".
O que importa, aqui, são os nomes dos mortos. "La Menzogna" será, eventualmente, uma peça de denúncia se, por causa dela, chegarmos algum dia a sabê-los de cor.