O fado é que instrói?
Muita curiosidade girava à volta da estreia de "A Religiosa Portuguesa" de Eugène Green, talvez devido à atávica mania lusitana de que os nossos mitos e paisagens interiores ganham novas dimensões quando percepcionadas de fora. Foi assim com "A Cidade Branca" de Alain Tanner, com "Lisbon Story" de Wim Wenders, com os romances de António Tabucchi (e respectivas adaptações cinematográficas), para nomear apenas uns poucos exemplos.
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Muita curiosidade girava à volta da estreia de "A Religiosa Portuguesa" de Eugène Green, talvez devido à atávica mania lusitana de que os nossos mitos e paisagens interiores ganham novas dimensões quando percepcionadas de fora. Foi assim com "A Cidade Branca" de Alain Tanner, com "Lisbon Story" de Wim Wenders, com os romances de António Tabucchi (e respectivas adaptações cinematográficas), para nomear apenas uns poucos exemplos.
Ora, desta vez a montanha pariu um minúsculo rato: uma sequência descontrolada de bilhetes-postais ilustrados de Lisboa, sem tom nem som, presos a um fascínio aleatório da imagem, mas esvaziados de formas, jogados como estereótipos para cima da tela.A estratégia de um cinema auto-reflexivo, embora pareça acrescentar mais-valias, possui riscos graves, capazes de desencadear um perverso mecanismo de distanciamento destrutivo: a ideia de transpor a história da suposta freira de Beja, Sóror Mariana Alcoforado, ficcionada por um exotismo francês do século XVII, para um processo de filmagens na Lisboa moderna, com actores que macaqueiam os estados de alma (e os seus próprios problemas metafísicos e outros de relevância contemporânea) das personagens, revela-se de uma inutilidade confrangedora e encaixa num patético sonambulismo que pouco acrescenta seja ao que for. Uma actriz luso-francesa, como convém (Mónica Baldaque, em registo de zombie, como se quisesse citar Oliveira e o mundo oliveiriano se reduzisse àquele olhar oco para a câmara), chega à Albergaria da Senhora do Monte, visivelmente escolhida para iniciar um catálogo de miradouros sobre a cidade, debita sem convicção nem tom, de olhos esbugalhados, os mais inacreditáveis diálogos de que nos recordamos e prepara-se para rodar, sob a batuta de um realizador internacional (Eugène Green, ele próprio), uma versão congelada dos amores descabelados da religiosa do título.
Por aqui, não viria grande mal ao mundo, nem pelo facto de Lisboa não funcionar como o lugar histórico ideal, nem pelo travesti descontextualizado de um barroco de pacotilha, uma vez que o texto original se reveste de características obviamente mistificadoras. O caldo começa a entornar-se quando as ideias feitas de uma Lisboa turística, composta de luzinhas tremeluzentes e da acumulação de monumentos a granel (das ruínas do convento do Carmo à Torre de Belém, da Alfama das escadinhas de Santo Estêvão à ermida da Senhora do Monte) descamba para a fancaria de um imaginário possidónio de guia para deslumbrado visitante francês (ou de qualquer outra origem, tanto faz), deambulando sem Norte (nem Sul) por painéis de azulejos (por acaso quase todos do século XVIII), que servem de fundo a telediscos de Fados - o fado podia lá faltar nesta concepção de um Portugal folclórico - cantados por Camané e Aldina Duarte, o melhor do filme, embora com função decorativa.
Não contente com tal disparate acumulativo, "A Religiosa Portuguesa" não resiste a inscrever na ficção dentro da ficção (dentro da ficção) um Duque (ou é Conde?) de Viseu, suicidário, entregue a Diogo Dória (irónico ou a levar-se a sério?) que se diz originário de um romance russo (dá para acreditar?), pretexto para invocar os fantasmas do 25 de Abril (claro que o 25 de Abril não podia faltar), de olho em alvo e habitando um palácio, também ele fantasmático à luz de velas. Mas, se julgam que os amorosos romances reflectores da actriz-freira se ficam por aqui, desenganem-se, pois o melhor está para vir: envolve-se, como também é de cartilha, com o actor francês com quem contracena, feliz no casamento mas a precisar de estímulos sexuais, e descobre numa discoteca um jovem de impecável cachecol branco que toma pela reencarnação de D. Sebastião (claro que faltava o D. Sebastião!), "tornado heterossexual" por séculos de espera, voltando a encontrá-lo por acaso em Alfama, quando faz as "démarches" para adoptar o rapazinho órfão que encontrara num dos primeiros planos do filme. Este episódio proletário serve ainda para expor uma das maiores actrizes do cinema português, Beatriz Batarda, brilhante como sempre, numa rábula inconsequente, e para mostrar os azulejos da interior da casa, caricatura (haverá alguma coisa no filme que não funcione em registo de caricatura?) dos azulejos barrocos das capelas e das sequências fadistas, numa das quais desfila a equipa de produção, como convém à auto-reflexividade dominante.
Mas não é tudo: no interior da capela, passa as noites uma misteriosa freira (pobre Ana Moreira, outra das remissões para o cinema português que se pretende "homenagear"?), uma espécie de duplo da protagonista, com a qual ela troca mais alguns dos imperdíveis diálogos de recorte metafísico, não escapando nem sequer referências aos êxtases místicos de Santa Teresa de Ávila e às várias componentes do amor.
Para o final, fica o mais inacreditável dos planos do filme, aquele em que ondulam ao vento as bandeiras do Benfica e do Sporting e não resistimos a lembrar a frase feita, apropriada a um filme todo feito de clichés: "O vinho é que induca, o fado é que instrói e quem não é do Benfica (ou do Sporting, para o caso) não é bom chefe de família".
E fica-nos a dúvida ingente: trata-se de uma comédia voluntária, um irrisório, "chunga", quase insultuoso, olhar sobre a portugalidade, ou comédia involuntária, a força de tanto se querer homenagear o cinema português?