A revolução faz-se aos sessenta anos

Foto

É uma casa portuguesa com certeza, a de Filomena Marona Beja. Uma pequena moradia nos arredores de Lisboa, com couvinha e dois limoeiros a reluzir no quintal delimitado por um gradeamento "para que os cães não estraguem tudo".

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

É uma casa portuguesa com certeza, a de Filomena Marona Beja. Uma pequena moradia nos arredores de Lisboa, com couvinha e dois limoeiros a reluzir no quintal delimitado por um gradeamento "para que os cães não estraguem tudo".

Uma trepadeira enrola-se pela grade como o passado, o presente e o futuro se enrolam em "Bute Daí, Zé!", o primeiro romance da autora desde que venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, com "A Cova do Lagarto", em 2007.

Autora de uma muito escassa obra, começou a editar tarde "por causa dos miúdos", dos filhos. "Escrever sempre escrevi, mas escrever a sério, editar, para isso era preciso que a miudagem fosse à sua vida", diz-nos, com o seu humor cheio de bonomia, na sala em que nos recebe.

Há um móvel pesado na parede oposta à da entrada, ladeado por dois aparadores em madeira antiga, envidraçados, com fechaduras trabalhadas. Lá dentro estão os copos e as loiças mais requintadas. A encimar o aparador mais baixo há uma terrina.

Ela serve-nos um café que pousa na mesa ao centro, com uma toalha de renda a cair dos lados e dois pratos de prata com fruta. É uma casa portuguesa com certeza, como também Marona Beja é portuguesa com certeza e das antigas. Por exemplo, diz "lingüeta" em vez de "lingueta". Para ela ainda existem tremas, o passado ainda não acabou e os seus romances também são assim (e portugueses com certeza).

Mas se a simples menção de "português" e "passado" vos levar a pensar em nostalgias de um tempo em que tudo era certo, medido, pesado e etiquetado, esqueçam: "Bute Daí, Zé!" faz quase o oposto: não é uma elegia à geração que planeou o 25 de Abril, mas está cheio de simpatia para com as gentes que sonharam muitos 25 de Abril.

O romance acompanha um grupo de proto-ideólogos que planeia fazer jornais de intervenção, decide ocupar a casa das Palmeiras (em Lisboa, onde quase todo o romance se passa), decide ir conhecer o "país real", deserta do exército, enrola-se entre lençóis enquanto os maridos estão na Guiné, entre outras pequenas coisas.

Há um olhar de preciosa observação sobre o quotidiano, e vamos sabendo deste grupo ao longo do que presumimos ser três décadas - não há indicações temporais óbvias, apenas pequenos acontecimentos que indiciam quanto tempo passou.

Da mesma forma Marona Beja, 66 anos, nunca nos diz qual a ascensão social das personagens, somos nós que temos de o descobrir numa frase, num gesto. E no fim cada um vai à sua vida e um deles foi à sua morte - que foi real, aconteceu.

Mas independentemente de se terem mantido ou não fiéis ao socialismo, as personagens são sempre agraciadas por uma certa candura no olhar da autora, e por um magnífico humor discreto.

Uma obsessiva com humor

O humor, diz Marona Beja, é-lhe importante. "Eu geralmente não discuto", diz, sempre de olhar alerta. Ao primeiro contacto percebe-se que estamos perante uma observadora nata. "Há trinta anos discutia. Tinha trinta anos de idade e as coisas feriam muito mais. Tinha de se tomar atitudes que pesavam - porque achávamos que íamos mudar o mundo. Não é que não fosse bem disposta, mas era menos calada".

Sexagenária, conhece bem a geração que descreve em "Bute Daí, Zé!". São um pouco mais novos que ela, mas ela nunca lhes perdeu o rasto e desde que eles começaram a movimentar-se de forma vagamente política, foi-lhes sempre deitando o olho.

Como sexagenária ganhou também direito a olhar para o país com distância e dizer: "Somos pobrezinhos e temos muita história. Somos como aquelas famílias antigas arruinadas com uns penachos a fazer de conta que está tudo bem. O que nos impede de nos olharmos com sentido crítico".

E sendo sexagenária, viveu uma época em que "a maneira de dizer as coisas era por sinais", em que "se amuava em vez de sorrir", em que "não se exteriorizava, excepto num círculo de muita confiança". Podemos dizer que trinta anos depois essa vigilância é transposta para a estrutura do livro, em que o narrador afirma muito pouco acerca daquelas pessoas, apenas oferece sinais.

Mas para que o livro fosse eficaz era preciso retratar uma época com precisão, sabendo tudo o que aconteceu e filtrando a informação essencial, de modo "a não maçar o leitor", porque, ao fim e ao cabo, ela não está "a dar aulas de história".

E aí entra a ex-profissão de Marona Beja: durante muito anos foi uma espécie de técnica de documentação científica.

"Comecei no Ministério das Obras Públicas em 1970". Estava no departamento de Arquitectura e Construção Escolar e cabia-lhe "procurar as soluções com provas dadas na matéria de modo a serem aplicadas no que se ia fazer": "dos materiais de construção à melhor forma de fazer orçamentos" ela recolhia dados e moldava-os sob a forma de guias para o resto do país seguir. Na altura, aquilo era "um mundo a que os arquitectos não acediam nem queriam saber".

Organizou a biblioteca do departamento, especializada em soluções de engenharia, qualquer coisa como "sete mil volumes de soluções". "Metade da minha carreira foi organizar registos e fazer trabalhos sobre isso", conta.

Esse trabalho não foi em vão: hoje serve-lhe na escrita dos romances. "Não há pior do que não saber sobre o que se vai escrever. Eu tenho de me informar o mais possível, de saber tudo o que for possível sobre o que quero escrever, de modo a decidir o que é ou não fundamental para a história".

Faz "sempre trabalho de recolha": "É do que mais gosto, informar-me". Para "Bute Daí, Zé!" leu "os jornais todos do século XX" de uma ponta a outra "várias vezes". Aliás, na maior parte dos casos, "já os tinha lido". "Passo a vida em hemerotecas. Dá-me imenso gozo. Venho de lá muito feliz", diz, no seu habitual humor mínimo.

Para que se perceba o cuidado com o detalhe que se impõe a si mesma, conta que aquando da escrita de "A Cova do Lagarto", que tem como personagem Duarte Pacheco, convenceu a Escola Militar Naval a deixarem-na inscrever-se num curso sobre Duarte Pacheco, mesmo sendo um curso apenas para os membros da Escola.

"Fui ensinada a gostar de História", diz, antes de pôr os pontos nos is: "Mas não faço romances históricos. O que lhe interessa, deixa claro, "é saber que o que se passa hoje veio de algum lado".

O estado das coisas

Por estranho que pareça, o que espoletou um romance que acompanha uma geração durante três décadas não foi uma recordação do passado ou qualquer forma de nostalgia.

"Foi a situação em que estamos: o pós-hormonas que nos deixou narcotizados", lança, consciente da força da frase.

"O livro é isto e o Zé é cada um de nós", diz, mesmo sabendo que o Zé do seu livro existiu e chamava-se mesmo Zé.

O caso do Zé, personagem central do romance que é tão central quanto mais meia-dúzia delas, aconteceu a muito boa gente na época: "Era filho de um comerciante de hortaliças e não queria ser comerciante de hortaliças. Por isso recusou ir para a Escola Comercial e foi procurar trabalho numa fábrica em Mem Martins".

Filomena conhecia "uma senhora que trabalhava lá e que conhecia o Zé". Achou-o "paradigmático dessa época". "Ele tinha pouca instrução, mas fazia teatro, era generoso, e estava cheio de convicções. Era muito convincente a levantar a voz e isso tornou-o marcado pelos skins".

Como o Zé as outras personagens do livro passam o pré-25 de Abril sem saber bem para onde ir, mas a não ir para onde os pais queriam que fossem - mesmo que no fim alguns acabem tão burgueses quanto eram à partida.

"Houve uma grande faixa dessa gente que se proletarizou porque pensava que era no meio operário que podia levar avante as suas ideias políticas". Uma pausa e... "E houve uns tantos que se mantiveram na sai".

Nisso o livro tem o mérito de mostrar como já antes do 25 de Abril a mistura inter-classista era maior em Portugal do que hoje supomos. (Talvez só "A Noite e o Riso", de Bragança e "A Explicação dos Pássaros", de Lobo Antunes, o mostrem tão bem, mesmo que nestes casos o propósito não seja tão explícito. Perguntamos-lhe se esta geração era mais misturada do que a que surge em "Alexandra Alpha" de Cardoso Pires: "Isso era burguesia caviar. E menos sincera".)

Uma boa parte do que surge no livro vem da experiência pessoal de Marona Beja ou do que ela observou mesmo à sua frente.

Duas das personagens femininas partem à descoberta do "país real". E ela, não tendo partido à descoberta do país real, também deu os seus passeios. "Nunca achei que a província era a melhor coisa do mundo, mas íamos de mochila às costas e a beber do cantil. Queríamos saber o que era aquela realidade".

A realidade, conta-a em forma de graça. Uma das vezes que foi para o interior, uma velhinha interpelou-a e perguntou-lhe o que andava por ali a fazer. Filomena explicou que estava de férias e queria conhecer a zona. A velhinha respondeu-lhe: "Quanto me haveriam de dar para de férias andar a pé por estes caminhos do Demo".

Belmira, a operário do livro, é uma de muitas Belmiras que Marona Beja conheceu. "Cresci em frente às fábricas de borracha. Vi-a como aquelas mulheres trabalhavam sábado todo o dia. Vi-a como um chicharro lhes dava para a semana toda. Quando as fábricas fecharam, isso foi muito sério".

Toda essa gente, no livro, encontra-se no café Sanzala para congeminar - o café existiu, mas o que importava para o romance, diz Marona Beja, era que o nome do café fosse africano porque naquela altura, como qualquer português com menos de 40 anos saberá, "havia imensos cafés com nomes africanos, isto enquanto havia uma guerra colonial em marcha". Anos a fio o grupo procura outro local para as suas actividades e encontra-o numa casa, a casa das Palmeiras, que ocupa - pormenor real. A passagem em que os herdeiros da casa, já filhos de filhos de filhos dos primeiros proprietários e espalhados por muitos países, se tentam livrar da casa e lá legitimam a situação só para não se chatearem, é hilariantemente portuguesa.

"Conheço muito bem a casa das Palmeiras. Vi-a por dentro antes das obras, conheço o espaço, a solução das canalizações, etc".

E no entanto, o livro perde pouco tempo com descrições do que quer que seja, Marona gosta de definir o que tem a definir com duas pinceladas, como o bom velho Tolstoi.

"Há descrições", contrapõe. "O que não há é adjectivos". "Os adjectivos são juízos de valor. Não melhoram a escrita".

Não é só adjectivos que não há. Também não há psicologia das personagens. "Psicologizar era uma coisa de um tipo de romance que eu acho que já passou. Porque é que temos de ir impor uma ordem à cabeça das personagens? Se escrevermos o que elas fazem, quais as suas intenções e quais as consequências dos seus actos, está tudo lá". Até porque "as personagens são tramadas. Nem sequer consigo pô-las a pensar como eu", diz, e parece-nos ver um ponto de exclamação no fim da frase.

Para rematar atira: "Já não se pode escrever romances como no século XIX" - e há algo de bonito nisto de ver que uma mulher de 60 anos arrisca mais à medida que o tempo passa.

Falamos de questões técnicas, do esforço a que ela obriga o leitor com as suas mudanças temporais, e Marona faz de conta que não se interessa muito por estas questões. Desmerece-as com um comentário assassino: "Isto não é o pronto-a-ler".

Ela tem razão. Não é o pronto-a-ler. Há demasiada vida ali para isso. É, talvez, o pronto-a-viver.