A sombra de Scout Niblett é a nossa luz
Em 2003, Jason Molina resolveu fazer um disco dos Songs: Ohia diferente dos que até aí tinha produzido. Até então a banda era somente um nome sob o qual ele gravava os seus discos, quase sempre sozinho, aqui e ali acompanhado por um ou outro músico. Mas Molina é uma espécie de filho bastardo de Neil Young, e por trás daquela voz de tipo perpetuamente acossado por infernais dores de barriga escondia-se uma montanha de electricidade à espera de cair dos céus como trovões. O mais lógico, pensou, era montar uma banda a sério: piano, órgão, guitarra slide, coros. E assim o fez, com resultados admiráveis.
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Em 2003, Jason Molina resolveu fazer um disco dos Songs: Ohia diferente dos que até aí tinha produzido. Até então a banda era somente um nome sob o qual ele gravava os seus discos, quase sempre sozinho, aqui e ali acompanhado por um ou outro músico. Mas Molina é uma espécie de filho bastardo de Neil Young, e por trás daquela voz de tipo perpetuamente acossado por infernais dores de barriga escondia-se uma montanha de electricidade à espera de cair dos céus como trovões. O mais lógico, pensou, era montar uma banda a sério: piano, órgão, guitarra slide, coros. E assim o fez, com resultados admiráveis.
Lá pelo meio, a surgir em segundo plano nalgumas canções e a encimar um par delas, uma voz que era um fantasma, um farrapo, a subir e a descer como se não houvesse escala que a limitasse. De repente o blues - porque aquilo era blues e o blues era agora - renascia, tão alucinado, tão dorido, tão solitário como quando se afundara no lodo do Mississipi pela primeira vez.
A voz era de uma tal de Scout Niblett e logo ali, desde o primeiro segundo, nasceu aquilo a que por pudor chamaremos encantamento. Porque não há coisa assim, já não há coisa assim - esta coragem de pôr as tripas à mostra estando-se miraculosamente a borrifar para o que os burguesinhos deste mundo acham ai tão feio ai - exibir uma dor verdadeira. (Dissemos verdadeira. Narcisos aforistas não contam.)
A coisa foi de tal modo violenta que Jason Molina acabou logo ali os Songs:Ohia e montou uma nova banda - a que deu o nome do disco que tinha acabado de gravar, "Magnolia Electric Co". A coisa foi de tal modo violenta que não só fomos à procura de o entrevistar (o que conseguimos, com assinalável insucesso) como fomos à procura da discografia dessa tal Niblett. Descobrimo-la clássica, melódica e angélica na sua estreia, "Sweet Heart Fever" (de 2001), rockalhona em "I Conjure Series" (2003), zangada, alucinada e suja em "Kidnapped by Nature" (2005). Em 2007, apaixonada por um dos reis da música folk americana, produziu "This Fool Can Die Now", uma obra-prima que a encontrava a resgatar melodias populares, a adicionar cordas a épicos, a introduzir flautas nas suas canções.
Isto foi o mais perto que Scout Niblett, morena que usava uma peruca loira em palco para enfrentar o público, esteve da felicidade.
Porque agora, no início de 2010, ela volta mais violenta do que nunca em "The Calcination of Scout Niblett": voz, guitarra e uma zanga sem fim. O título é esclarecedor: calcinar é reduzir a cinzas.
Retrato da artista enquanto jovem desmiolada
É uma frase tão batida e ela diz isto como um segredo: "Acho que os meus discos são pequenas fotografias da minha vida". Faz um pequeno silêncio, e avança como quem tacteia o caminho num quarto às escuras: "Quer dizer, eu ouço o meu primeiro disco e sei o que espoletou aquelas canções". E depois remata, já com voz de cansaço: "Acho que escrevo para, quando no futuro ouvir as canções, perceber o sentido do que vivi".
Como é óbvio, não há muitas divisões entre a Scout Niblett que canta e a que dá entrevistas. Pode sempre perceber-se o estado de espírito dela por um disco e pode sempre contar-se com total honestidade da sua parte numa conversa.
Por exemplo: agora, percebemos, há qualquer coisa a ruminar-lhe em fundo. Qualquer coisa chamada "calcinação", a maior exposição pública que alguma vez fez da sua mente enquanto quarto com tábuas soltas e pregos enferrujados à espreita.
"Tirei a ideia do título de um livro em que se falava dos processos de alquimia. Um desses processos era a 'calcinação', e usavam como exemplo o período de ridículo em público do William Shatner [actor de "Star Trek", cuja decadência foi por de mais comentada]. Estava tudo a acontecer-lhe à frente de muita gente, o que era embaraçoso. Estava a ter um colapso nervoso em público. Era uma coisa muito revoltada e eu identifiquei-me com essa imagem. Não tanto com a ideia de exposição pública, mas com o desgaste nervoso".
Como é visível, a honestidade não é um problema para Scout Niblett. Ela diz: "Não estou a fazer uma crucificação em público. Não me sinto exposta por admitir que as canções vêm de um colapso nervoso".
Para um europeu isto pode soar estranho. Ao fim e ao cabo, este é o disco em que ela diz "É hora de deitar tudo cá para fora", e ela própria admite que "as canções têm um lado de auto-análise que ainda não acabou", isto é: as canções são auto-biográficas. Pode soar estranho, dizíamos: nós, os europeus, temos teorias sobre arte; estes anglo-saxónicos têm práticas de vida. Tipos estranhos.
Niblett, solipsista por excelência, tem uma visão curiosa do que é auto-exposição: "Estou exposta quando descubro alguma coisa sobre mim que desconhecia - e isso não depende de o transformar em música ou não. Basta descobrir alguma coisa de mim que desconhecia para me sentir exposta. Mesmo não dizendo a ninguém".
Não estamos a exagerar quando lhe chamamos solipsista. É ela própria que o diz quando afirma ter "uma obsessão com o que acontece" dentro da sua cabeça. Suprema afirmação de solipsismo: "A minha mente é o meu mundo".
Não é um lugar pacífico, essa mente. Quando Scout (nascida Emma Louise em Nottingham) era adolescente, esteve internada numa clínica psiquiátrica por causa de uma depressão. Foi nessa altura que encontrou "um canal de comunicação": a música. Não foi suficiente para encontrar o equilíbrio que por vezes diz almejar: os amigos descrevem-na como "louca" e não raras vezes os seus concertos transformam-se num colapso público.
Niblett tem, diga-se, um feitio particular: irrita-se "quando alguém é demasiado educado", desconfia "de pessoas muito simpáticas", odeia "quando as outras bandas vêm dizer bem dos espectáculos só por cortesia". Não é só mau feitio. Há aqui humor: Niblett é fã de Larry David e partilha com ele a mesma irritação pelos "empecilhos sociais". "Larry David é a minha pessoa preferida no mundo", diz. Aliás - fiquem sabendo, jovens de mau feitio deste mundo - ela casava com Larry David sem pensar duas vezes. "Eu acho que ele sabe que muitas vezes é irracional nas suas implicações, mas isso só o torna mais divertido. E querido".
Scout Niblett acha Larry David divertido: isto, meus meninos, é classe.
Tal como o seu adorado humorista, Niblett é obsesssiva. "Muito". Até hoje ainda não percebeu se o seu carácter obsessivo é mau ou bom. "Gosto de algumas obsessões que tenho porque me tornam intensa e fazem-me ter muito apreço por algumas coisas e por algumas pessoas". E depois há o outro lado. "Consigo perceber que seja difícil aturar-me, do ponto de vista de quem tem de viver comigo".
(Imaginem-na só por um segundo a viver com Larry David.)
Calcinar até ao fim
Foi exactamente por causa de uma crise relacionada com a dificuldade de entabular relações duradoiras com o sexo oposto que Niblett chegou aqui, a este disco.
"Estou a passar por uma mudança na minha vida - e foi aí que fui buscar as minhas canções. Esse período de transição tem a ver com a forma como me trato e como trato os outros", vai dizendo antes de, em tom envergonhado, tentar explicar-se melhor. "Eu sei que isto soa a simples baboseira, mas verdadeiramente gostaria de conseguir tratar melhor os outros. Por isso tenho de me forçar a olhar para partes de mim que não gosto de olhar. Olhar para as minhas sombras descontroladas".
A dado ponto das suas ruminações interiores, Scout apercebeu-se "que era mais agressiva do que pensava". Por uma vez não se alonga na confissão e termina o assunto com um simples "Houve coisas que me aconteceram que me tornaram raivosa".
É uma "raiva solitária" e "pessoal" e, ao contrário do que tantas vezes se escreve acerca dela, "não é feminista": "Nunca tive problemas com ser mulher. Nunca tive a necessidade de fazer uma declaração de princípios, pelo menos não em termos de género".
À boa maneira dos poetas românticos pôs as angústias nas canções e foi, como sempre, ou tudo ou nada.
"Algures", diz, "houve uma decisão de deixar tudo no osso": o disco é um prodígio de minimalismo, havendo pouco mais do que a voz e a guitarra. "A minha voz", diz, "é que é o meu verdadeiro instrumento. A guitarra é só uma ajuda".
Quando entrou no estúdio, não tinha "nada de muito planeado", como de costume - nunca sabe o que vai sair. Mas a dada altura sentiu que "tinha de homenagear a forma como as canções foram feitas": "Solitariamente, eu e a guitarra".
Sentiu "que assim as canções estavam completas". Não admira: dêem-lhe espaço e ela enche as canções de fantasmas e dúvidas e angústias. Da obsessão nasce a beleza. Mas a beleza tem um preço e no caso de Scout é a solidão.
"Sou muito, muito solitária", dizia-nos, a meio da conversa, ainda antes de começar a rir por causa de Larry David.