"L'Enfer d'Henri-Georges Clouzot": o fado do ciúme

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Romy Schneider sorrindo sob um carrocel caleidoscópico de cores fortes e de luzes que rodopiam e lançam sombras estranhas sobre o seu rosto, ou divertindo-se a fazer ski aquático arrastada por um barco. Serge Reggiani distorcido e desfigurado como nos espelhos côncavos e convexos do parque de diversões, ou enquadrado pelo arco de uma ponte atravessada por um comboio. Verso e reverso, cara e coroa de duas mesmas personagens de um filme que nunca foi acabado e que ressurge agora, mesmo que por espaços, mesmo que incompleto, no grande écrã.

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Romy Schneider sorrindo sob um carrocel caleidoscópico de cores fortes e de luzes que rodopiam e lançam sombras estranhas sobre o seu rosto, ou divertindo-se a fazer ski aquático arrastada por um barco. Serge Reggiani distorcido e desfigurado como nos espelhos côncavos e convexos do parque de diversões, ou enquadrado pelo arco de uma ponte atravessada por um comboio. Verso e reverso, cara e coroa de duas mesmas personagens de um filme que nunca foi acabado e que ressurge agora, mesmo que por espaços, mesmo que incompleto, no grande écrã.


Romy Schneider e Serge Reggiani eram marido e mulher no filme que o realizador Henri-Georges Clouzot, autor de "Le Corbeau" (1943), "O Salário do Medo" (1953) ou "As Diabólicas" (1954), deixou inacabado em 1964 após um ataque cardíaco: "L'Enfer", história de paixão e ciúme que supostamente marcaria o regresso em grande de um dos mais aclamados cineastas após uma longa ausência.


Num momento em que o cinema francês era varrido pelo furacão da Nouvelle Vague, Clouzot usou a forma do drama passional como "andaime" para uma tentativa de traduzir os estados alterados do ciúme, trabalhando durante meses com compositores electro-acústicos e artistas plásticos de vanguarda na criação do seu equivalente cinematográfico.


Com um orçamento ilimitado financiado pela Columbia e uma equipa de luxo, Clouzot embarcou numa rodagem condenada ao desastre, cuja história Serge Bromberg, distribuidor e investigador especializado no cinema clássico, conta no documentário "L'Enfer d'Henri-Georges Clouzot". Um título que se refere primeiro ao filme, depois ao próprio pesadelo que foi o único mês de rodagem em exteriores, cujos rushes nunca haviam sido vistos até à estreia deste documentário em Cannes 2009.


Bromberg procurou durante anos vencer a resistência da viúva de Clouzot para desenterrar dos arquivos o material que tinha restado, e o filme que dele tirou é um híbrido tão fascinante quanto frustrante. É revelador quando mostra as imagens filmadas, alternando entre o preto-e-branco da "vida real" e as explosões de cor e forma das visões de ciúme de Reggiani, que dão a entender uma potencial obra-prima formal. É exemplar enquanto reconstituição da rodagem e da espiral devastadora que levou ao ataque cardíaco de Clouzot, com depoimentos da equipa técnica que acompanhou a rodagem.


É, finalmente, decepcionante quando coloca Bérénice Bejo e Jacques Gamblin a reconstruir em estúdio cenas que Clouzot nunca chegou a filmar, numa excrescência que pouco sentido faz no projecto. E, sobretudo, é um filme que se destina prioritariamente a cinéfilos e estudiosos: quem não conhecer a obra do cineasta (e, hoje em dia, infelizmente, poucos conhecem) dificilmente entenderá a importância do documento - e a ausência de contextualização da carreira de Clouzot não ajuda.


Site oficial: www.mk2.com/lenfer/


Director's Cut: "L'Enfer d'Henri-Georges Clouzot" (França, 2009, 1h36), de Serge Bromberg e Ruxandra Medrea Annonier.
Cinema São Jorge, sala 3, quinta 22 às 21h30 e quarta 28 à meia-noite.