Somos todos palestinianos

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Há sete anos, um balão vermelho com o rosto de Yasser Arafat atravessava um posto de controlo israelita, confundindo e desafiando as tropas presentes. O homem que lançou este balão de um carro estacionado faz hoje salto à vara sobre a barreira de betão que Israel montou para isolar a Margem Ocidental.

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Há sete anos, um balão vermelho com o rosto de Yasser Arafat atravessava um posto de controlo israelita, confundindo e desafiando as tropas presentes. O homem que lançou este balão de um carro estacionado faz hoje salto à vara sobre a barreira de betão que Israel montou para isolar a Margem Ocidental.

Elia Suleiman, 49 anos, palestiniano nascido na Nazaré israelita, realizador, argumentista e actor, criou sensação com "Intervenção Divina" (2002), que revelou às audiências internacionais um dos mais singulares olhares do cinema contemporâneo. Um olhar que leva mais longe em "O Tempo que Resta" (2009), esta semana nas salas portuguesas, um ano depois da sua passagem a concurso pelo festival de Cannes; um olhar formalista e ao mesmo tempo espontâneo, de uma precisão de relojoaria e de um humor seco e absurdista que parecem ter mais a ver com Jacques Tati ou Buster Keaton do que com a maior parte do cinema que se faz hoje.

Ao telefone de Paris, Elia Suleiman nega terminantemente a influência desses mestres, apesar de até concordar com a comparação. "Nunca fui grandemente cinéfilo, e nunca estudei história do cinema nem tenho um passado académico. Entrei no cinema pela porta das traseiras... Assim, quando comecei a filmar, vinha de um 'background' perfeitamente puro, um pouco como um realizador dos tempos do cinema mudo. Talvez um destes dias chegue ao sonoro...", diz entre risos.

O grande silêncio

A referência aos tempos do mudo não é casual, como sabe quem viu "Intervenção Divina" (e o seu predecessor "Crónica de um Desaparecimento", 1996, nunca exibido comercialmente entre nós) e como se poderá confirmar em "O Tempo que Resta". O cinema de Suleiman compõe-se de episódios que observam e registam pormenores banais do quotidiano, onde o humor nasce da precisão coreografada dos movimentos que acontecem dentro de um plano fixo (como o vai-vém de uma maca que é disputada por uma equipa de médicos e uma equipa de soldados num corredor de um hospital) e abdica do diálogo para se concentrar numa informação puramente audiovisual, transmitida através da imagem e do trabalho de som.

Suleiman explica que, para ele, "a palavra deve sempre ficar morta no guião. O guião não passa de um pequeno manual, um guia, mesmo quando explica muito detalhadamente o que procuramos fazer - quando chego ao momento de o traduzir em imagens, parto de um ponto diferente, ou recomeço do zero. Aquilo de que sentimos a falta nos meus filmes - se é que a sentimos... - é do diálogo, do blá-blá-blá. Mesmo quando estou a escrever o guião, consigo ver que há ali palavras a mais, e torna-se um desafio porque estou a tentar dizer o máximo de coisas possíveis através do movimento, da expressão cinemática. Quando uma personagem pergunta 'como estás?' e outra responde 'bem, obrigado', não ficámos a saber nada! É falsa informação. Prefiro eliminar o diálogo para criar um espaço livre, para o espectador interpretar e julgar por si próprio o que as personagens estão a sentir. Há sempre muita coisa a acontecer no écrã. Há muito para ouvir nos meus filmes, e muito para ver, mas não necessariamente muito para saber. É uma questão de emoção, de criar uma intimidade, uma proximidade entre o filme e o espectador."

A teoria da resistência

"O Tempo que Resta", terceira longa de Suleiman, completa com "Crónica de um Desaparecimento" e "Intervenção Divina" uma trilogia ambientada na Nazaré natal do realizador e que encena elementos da sua própria vivência. O novo filme é, no entanto, o mais "convencionalmente" narrativo dos três, ao mesmo tempo que mergulha mais fundo na própria vivência pessoal da família Suleiman, inspirando-se numa série de diários que o pai do realizador deixou escritos a pedido do filho.

A reconstituição histórica pode não ser o forte de Suleiman (vários críticos apontam-na como o ponto fraco de "O Tempo que Resta"), mas nunca foi essa a intenção do cineasta: "Nunca ergui o historicismo a facto, mesmo quando filmo um momento histórico. Nunca alego que foi isto que aconteceu realmente; apresento-o apenas como uma maneira poética de sublinhar uma possibilidade, o que terá acontecido, o que poderia ter acontecido naquele momento."

Se o seu cinema é um cinema naturalmente pessoal (porque contado na primeira pessoa), Suleiman opta por colocar a questão em termos do modo como cria os seus filmes, a partir de uma emoção e de uma imagem. "É com uma sensação que tudo começa. Nunca sei de onde é que uma imagem surge, mas sei que aquilo que sinto mais sinceramente ocorre quando instalo a câmara num local, quando reconheço um momento que vivi e percebo que o estou a tentar metamorfosear numa dimensão estética. Sei que preciso absolutamente de encontrar o local onde a câmara estaria a fim de capturar aquilo que sinto e que quero exprimir."

E que, esclarece veementemente, não é especificamente palestiniano ao mesmo tempo que é profundamente palestiniano. "Não creio que nos possamos desviar do facto da condição humana ser uma condição humana, e da experiência humana não poder necessariamente ser segregada. Creio que um bom filme é um bom filme independentemente de ter sido feito sob ocupação israelita ou qualquer outro tipo de ocupação noutro ponto qualquer do mundo. Talvez essa identidade palestiniana nos tenha sido forçada por os palestinanos terem sido ocupados, exilados, expulsos... Mas não creio que a força ou a ocupação israelita sejam assim tão diferentes de outra ocupação qualquer. As pessoas que a vivem também têm a sua vida quotidiana, a sua intimidade, o seu riso... O riso não é especificamente palestiniano. O meu cinema é tão palestiniano, e tão intimamente palestiniano, que é universal. E a inversa pode também ser verdade: é um cinema universal, logo é palestiniano. Quem faz cinema, ao confinar o seu cinema a ser sobre alguma coisa, por defeito vai estar a falhar-se a si próprio, a falhar o espectador que vem ver o filme. Evidentemente, a responsabilidade e o desejo de um cineasta é fazer qualquer espectador ter uma intimidade e uma partilha com a imagem que está a ver..."

A questão é, então, uma questão de identificação, como o cineasta explica nos termos abstractos e teóricos que são uma constante do seu discurso. "Creio que existe aqui uma espécie de experiência metafísica - penetramos naquilo que há de mais íntimo e, ao fazê-lo, estamos a entrar num processo de identificação. Podemos dizer que metaforicamente, 'O Tempo que Resta' é palestiniano no modo como olha para a minha mãe, mas não são só os palestinianos que têm mães. Se você reconhece muito da sua própria mãe no filme, isso quer dizer que você também é palestiniano, que tudo isto é um processo de identificação... E se não existir essa identificação por parte do espectador, o filme torna-se num falhanço, não consegue atravessar o 'posto de controle'".

É essa necessidade de comunicar, esse dever moral para com o espectador, que leva Suleiman a insistir e, nas suas palavras, resistir. "Por esta altura já sei que as pessoas que gostam dos meus filmes estão à espera de verem algo de novo. Sinto uma responsabilidade moral para com o espectador de lhe dar a possibilidade de revisitar o filme, não apenas de o ver uma ou duas ou três vezes mas de o levar a pensar: 'o que mais ali havia que eu não vi?' ou 'o que haverá ali mais que me leve a querer voltar a vê-lo?'. Sinto que é necessário para mim fazer um filme que esteja tão carregado que pareça termos realizado muitos filmes num só... E sinto um dever de continuar a lutar para fazer os meus filmes."

A palavra é, mesmo, luta: "O Tempo que Resta" dista sete anos de "Intervenção Divina" em parte devido a problemas de financiamento (agravados pela morte do produtor francês Humbert Balsan, a quem o filme é dedicado). "Foi um filme difícil de financiar, mais difícil de montar que a minha primeira curta, e caiu por terra um bom par de vezes antes de conseguir levá-lo a bom porto. Dos sete anos, quatro foram ocupados com o guião e o próprio filme; os outros três foram preenchidos com momentos desesperados e deprimentes, a visitar pessoas que não conhecia mas que tinham a possibilidade de me ajudar a salvar o filme. Nem sei como é que se consegue continuar a trabalhar assim... Mesmo apesar do cinema ter sido sempre difícil de montar, penso que as coisas têm vindo a tornar-se progressivamente mais difíceis. E quanto mais teimosos somos e quanto mais duro se torna, maior é o desafio."

Não que Suleiman pretenda desistir: "Só faço um filme quando sinto a necessidade absoluta de o fazer. E não estou numa posição em que consiga dizer que não quero fazer mais filmes e me quero dedicar à escrita: tenho o impulso de alguém que quer criar imagens, e esse impulso é tão forte, tão presente, que tenho de o seguir..."