A via dolorosa de Berlim
1. O fim é só o princípio
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1. O fim é só o princípio
Vamos contar já o fim, mas não fujam, leitores, porque o fim é só o princípio: "Berlim Alexanderplatz" relata o que se passou em Berlim com "um tal Franz Biberkopf" que sai da prisão, quer ser "um homem decente" e "acaba por ser liquidado". Logo à primeira de 591 páginas, tomai e comei, este será o corpo dele.
Sabemos assim, desde logo, que se vai dar cabo de um homem. Mas isso é o que sempre sabemos que a vida faz, a questão é como. E é para isso que o livro cá está, neste ano de 1928: construir, construir, como o metropolitano na Alexanderplatz, a que os berlinenses chamam Alex, como Berlim, toda ela, corpo em ebulição até às tripas.
Pois não falou o autor num "estilo cinematográfico", em que o narrador deve construir mais do que narrar? Construir como um deus bipolar: construir a destruição.
Então, aqui tendes Franz Biberkopf, à letra algo como Chico Cabeça de Castor, que foi "trabalhador dos cimentos e mais tarde do transporte de mobílias, um homem rude, grande e disforme, de aspecto repugnante", "quase cem quilos" de peso, "forte como uma jibóia".
Não é mau tipo, mas em fúria não vê nada. Matou a garina à pancada, quatro anos de choldra, e agora quer isso, ser decente. E portanto mete-se num eléctrico, e a vida na terra vai começar, carris, asfalto, "prédios horríveis, as pessoas como formigas, os telhados vacilantes".
Berlim é grande, "onde vivem mil, vive mais um", onde era a natureza é agora a cidade, vum, vum, vummmmmmmmm, neste ano da graça de 1928. A Alemanha levou uma coça na guerra, e pagou com terra, para aprender. A esquerda julga que o inimigo está à esquerda, e entretanto a extrema-direita marcha, o desemprego dispara, a bolsa afunda.
A bolsa ou a vida, o que é que julgam?, é difícil, a vidinha, sobretudo quando somos uns cabeças de castor vindos do nada. Qual Kafka, Musil, Mann, qual "bildungsroman" burguês, salões, castelos, sanatórios! Franz é o gajo que agora vende jornais na Alex para ganhar uns tustos para o bagaço. E que jornais? O "Völkischer Beobachter" dos nacionais-socialistas, os cruz-suásticos. Não que Franz tenha algo contra os judeus, "mas é pela ordem", ou seja, não sabe nem quer saber.
Venham o metro, o matadouro, o trânsito, o futuro, Berlim! Ardinas, taberneiros, operários, anarquistas, chuis, chulos, vadios, morfinómanos, travestis, mulheres que se matam deixando filhos, mulheres que se matam pelos filhos. "As pessoas fazem o que podem. Têm crianças em casa, bocas esfomeadas, bicos de passarinho, clap, abre, clap, fecha, clap, abre, clap, fecha, abre, fecha, abre, fecha, abre, fecha."
Berlim, essa puta, a Grande Puta da Babilónia, à espera que se faça sangue.
2. Alfred Döblin (1878-1957)
E que sabe disso o autor? Pois, muito.
Tanto que depois de muita fantasia, de escrever sobre a China do século XVIII e sobre a Índia, olha à sua volta e o futuro está mesmo ali, proletário e ruidoso: o Leste de Berlim, Alexanderplatz.
Filho de um mercador judeu, Alfred Döblin vive nessa Berlim desde os dez anos. Foi lá que estudou Medicina, e depois trabalhou como médico e psiquiatra, lendo a cidade em cada homem, sucos e ácidos, química e orgânica.
Quantos Franz Biberkopf vindos do nada? Quantos Reinhold com uma bigorna no peito, prontos a esmagar Biberkopfs? Quantas Miezes, anjos azuis pálidos de mais, dispostas a tudo pelo seu homem?
E Döblin vai à guerra como médico, sem nunca deixar de escrever, e mantém-se socialista quando a social-democracia alemã entra em crise, entre as guerras, nesse tempo que ficou conhecido como República de Weimar.
É o tempo de "Berlim Alexanderplatz", publicado em 1929, tem Döblin 51 anos.
Hitler já mexe e em 1933 chega ao poder. "Berlim Alexanderplatz" é então queimado como "literatura de asfalto" e "arte degenerada". Döblin exila-se em França onde escreve sobre o massacre das civilizações pré-colombianas. Quando os nazis chegam a França, escapa até Lisboa, que à chegada lhe parece o paraíso: "E assim me vi encaminhado para o escaldante Portugal, um mundo rico em cor, meridional, pacífico. Desde logo dissemos: Portugal é um país maravilhoso." Uma miragem que dá a muitos, como regista Irene Pimentel no livro "Judeus em Portugal Durante a II Guerra Mundial", mas não tira lucidez nem humor a Döblin. Sim, o paraíso, mas, olhando melhor, roto: "Com o carro em movimento, garotos da rua saltam-lhe para cima. Pés descalços, calças e casacos esfarrapados, ardinas. Numa das colinas pode ver-se a original estátua a um desses rapazes. E merecem um monumento - talvez um dia lhes pudessem comprar também casaco e calças." Já as varinas, andam descalças, num odor a peixe, entre vendedores ambulantes de frutas e legumes. Entretanto, pode comprar-se tanto o "France-Soir", a favor de Vichy, como o "France", apoiante de De Gaulle.
Mas quando arranja barco, lá vai Döblin, para Hollywood, para a MGM. E é no ano seguinte, 1941, que este filho de judeu com o seu nariz em gancho se converte ao catolicismo. Além dos mitos mesopotâmicos e gregos,"Berlim Alexanderplatz" está cheio de Velho Testamento, do Génesis, do Eclesiastes, dos Profetas, do Livro de Job. Mas não será já Franz mais do que o carneiro de Abraão, uma antecipação de Cristo?
Certo é que terminada a II Guerra, Döblin continua a ser um homem da Europa. Volta, tenta viver em Baden-Baden e escreve. Desiste da Alemanha, vai para França e continua a escrever. Publica uma trilogia sobre o fracasso da revolução alemã depois da I Guerra. Em 1956 adoece com Parkinson. No ano seguinte morre.
3. O romance-cidade
Quando Döblin publicou "Berlim Alexanderplatz", já James Joyce tinha publicado a sua Dublin ("Ulisses", 1922) e John dos Passos tinha publicado a sua Nova Iorque ("Manhattan Transfer", 1925).
Mestres, influências, sobretudo Joyce? Döblin respondeu sempre que nem conhecia Joyce quando escreveu o primeiro quarto do livro. Depois conheceu e foi um sopro para as suas velas. Mas: "Não preciso de imitar seja quem for. A língua viva que me envolve basta-me, e o meu passado fornece-me todo o material imaginável."
O seu caldo artístico era o das vanguardas alemãs, o da montagem no cinema, o do expressionismo. E o seu temperamento era o de um insatisfeito, sempre à procura do moderno, aquilo que deixa de o ser no momento em que é.
Nesse fim dos anos 20, Döblin olha em volta e vê Berlim a fazer-se. Som, imagens, movimento, plano geral, plano de pormenor, cruzamento, justaposição.
E tudo isto será matéria para a sua mesa de montagem: "travellings" e onomatopeias, descrições médicas e intimações legais, percursos de eléctricos e secções de firmas, listas científicas e símbolos municipais, agradecimentos fúnebres e cartas de suicídio, canções patrióticas e fórmulas matemáticas, evocações da tragédia grega e slogans publicitários, autópsias de matadouro e volume de vendas, notícias do mundo e relatos de uma digestão, faits-divers e elenco annual dos mortos - e ainda vos vou dar o estado do tempo, diz o narrador na primeira pessoa, atirando-nos para trás com aquele murro brechtiano.
O que é que pensam, que estão dentro da historieta, pá?
"O princípio estilístico deste livro é a montagem", escreveu Walter Benjamin. "O princípio da montagem faz explodir a forma e o estilo do romance, e abre novas e épicas possibilidade. O material da montagem não é arbitrário. A montagem verdadeira baseia-se no documento. Na sua batalha fanática contra o trabalho artístico, o dadaísmo fez uso dela para se aliar à vida diária. Pela primeira vez, embora de forma experimental, proclamou a soberania do autêntico. Nos seus melhores momentos, o cinema preparou-nos para isso."
É a concepção do romance como nova forma de épico. Döblin queria construir Berlim não como Zola ou Flaubert teriam feito, mas deixando para trás o século XIX.
A propósito de Flaubert, Benjamin disse que "Berlim Alexanderplatz" era a educação sentimental do pequeno patife: "A mais extrema, entontecedora, última e mais avançada encarnação do velho romance de formação burguês".
Tão entontecedora que onde-é-que-eles-andam, os cultos, enigmáticos heróis da grande literatura de língua alemã.
"Não há outros romances deste tipo", diz o germanista João Barrento. "Kafka, Herman Hesse, Thomas Mann, são outro universo, não têm nada a ver com esta modernidade. 'Berlim Alexanderplatz' é um livro solitário na sua época. Só depois da II Guerra haverá alguns romances com este sopro épico. O Musil dá um apontamento deste tipo sobre Viena logo no início de 'Um Homem Sem Qualidades', mas a Viena de Musil é a de antes da I Guerra."
É ainda o século XIX.
"Na I Guerra, Döblin era um expressionista. É com este livro que muda, e o livro aparece porque Berlim nos anos 20 se transforma de aglomerado de aldeias numa grande metrópole. Há ali um lado convulsivo que está na arte, na literatura, na história. E o que Döblin faz é transferir para Biberkopf, como um filtro, os reflexos de Berlim. É a grande explosão da metáfora com um forte traço de inspiração americana que ele não renegava, ao contrário de outros. Döblin aceita essa experiência, a realidade das novas cidades. Mas sem ver nisso, ao contrário dos futuristas, a máquina do fascismo."
Pelo contrário, será o genuíno anti-fascista, e voltado para as "pequenas pessoas", a este ponto: "O Biberkopf, quando muito, é herói de um romance de deformação, e não de formação, de que Thomas Mann é o grande exemplo. E também não é o herói problemático, enigmático de Kafka, que se move em mundos que nos escapam. Aqui, o mundo é completamente identificável."
4. A ascensão do alto mal
Vamos lá a ele, esse mundo, Alemanha, anos 20.
"Não se entende sem o modo como os alemães viveram a derrota na I Guerra", diz João Barrento. "A I Guerra leva a um estilhaçamento da social-democracia, e Berlim transforma-se no microcosmos que reflecte todo o espaço alemão. Há um extremar de posições que leva a confrontos entre o partido comunista e o nacional-socialismo, com um claro enfraquecimento do meio, da social-democracia. O PC tinha alguma implantação, não a suficiente, e com posições próximas do estalinismo. O que possibilita a descrença na democracia e a perfeita ascensão do nazismo, que em 1927-28 consegue um grande número de deputados, em aliança com os conservadores nacionalistas."
Ascensão essa, como sempre, impulsionada pela crise económica. "Logo em 1923, quando Hitler faz a primeira tentativa de golpe, a inflação já é altíssima. Depois, com planos americanos e ingleses estabiliza, mas em 27-28 volta a disparar. E há dois ou três milhões de desempregados."
Cá estão eles, em "Berlim Alexanderplatz". E os cruz-suásticos a marchar por trás, e Franz a vender os jornais deles, sem ver onde põe os pés, sem ver o que aí vem.
"O ressentimento alemão com a derrota na I Guerra vem ao de cima nos anos 20. O Tratado de Versalhes foi sentido como uma punhalada nas costas que levou territórios alemães a passarem para França e ao pagamento de reparações de guerra. Esse ressentimento não passou, e foi um facto no inconsciente colectivo."
Volta-se então o colectivo contra os judeus, grandes ou pequenos, preponderantes na finança ou só a contar dinheirinho, que também estão em "Berlim Alexanderplatz". À saída da cadeia, Franz é ajudado por judeus, mas quando volta para os visitar aí estão eles, a contar o dinheirinho. Não são homens, são caricaturas, menos que homens.
Está tudo maduro, tudo pronto prà guerra.
5. Franz alfacinha
Mas que vêm a ser estas contracções, este linguajar de varinas e garinas, e afinfem-lhe uns chulos do Cais do Sodré?
Pois é trabalho de tradutor, neste caso, tradutoras, duas irmãs. O convite foi feito há 18 anos pela Dom Quixote a Teresa Seruya, germanista da Faculdade de Letras de Lisboa. E como se tratava de algo muito longo, ela convidou a irmã, Sara Seruya, tradutora literária profissional, para trabalharem juntas. Demoraram "um ano e tal". Teresa traduzia primeiro, depois corrigiam as duas.
Como é que se traduz este berlinês popular?
"Não há equivalente entre dialectos", explica Teresa Seruya. " Um dialecto é intraduzível. Mas o que é que podia ser equivalente àquele dialecto berlinense citadino? Achámos que seria um linguajar muito popular de Lisboa."
A começar por centenas de contracções: qu'eu, d'andar, pr'ele, co'os.
"Quando veio a revisão das primeiras provas fiquei sem pinta de sangue. Tinham corrigido tudo, tudo. Foi um momento de grande aflição. Estávamos conscientes de que íamos chocar com uma tradição das traduções em Portugal, de pôr tudo em bom português, mas conseguimos levar a nossa avante."
E como se meteram naquela pele, naquele dialecto? "Foi muito difícil. Houve, não direi trabalho de campo, mas treino do ouvido com atenção à forma como as pessoas falam. Essa parte de recriação de um tom deve muito à minha irnã Sara. Ela tem uma grande queda, um ouvido muito apurado."
Ainda assim, as traduções envelhecem e aqui trata-se de uma reedição. "Lamentamos não termos sido consultadas para saber se queríamos rever a tradução", diz Teresa Seruya.
Posto isto, que memória tem esta tradutora, também autora do prefácio, do tal Franz com quem passou um ano há 18 anos?
"No fundo é um pobre diabo, sem nenhum lastro cultural ou humano, que não se sabe de onde vem. Um desenraizado, uma pessoa até boa, tanto que é vítima da sua atracção pelo Reinhold, esperto e mau. Em Franz Biberkopf, a noção de bem e mal não está feita. É um homem-puro instinto."
E produto da grande cidade. "Um homem daqueles não podia desenvolver-se numa aldeia. O anonimato, a falta de condições de habitação, de relações duradouras, tudo isto faz dele um ser sem elos. Ele é quase amoral, vai sobrevivendo conforme as circunstâncias. É uma pessoa só reactiva, e portanto presa fácil daquelas forças que agem sobre ele, e que vão também ao encontro dos seus demónios interiores, aquele mal que o levou a matar."
Teresa Seruya teve uma empatia com ele. "Há muitos tipos assim hoje em dia, pequenas pessoas, vítimas das circunstâncias, fracos e frágeis, sem defesas perante a grande cidade. A grande cidade é o ambiente que proporciona esse tipo de experiência, de vida sem ligações, sem pertenças. Franz Biberkopf não pertence a nada nem a ninguém."
6. O sacrifício
Até pertencer a Mieze.
Sim, Franz, aquele cabeça de castor, não pertence a ninguém até pertencer a Mieze, anjo azul pálido, mas disposta a tudo para cuidar dele.
E aqui, leitores, quem atira a primeira pedra? Chegados que somos a mais de 300 páginas, também disto se faz a vidinha, sim, senhor. Ou pertencem os leitores "àqueles que não perdem o coração em parte nenhuma, antes o guardam para si, o conservam limpo e mumificam?"
Pensem nisso.
Franz, o madraço, perdeu o coração quando já tinha perdido um braço. Cenas de filme negro, fuga de carro e borda fora. Lá está ele, aleijado, maneta, a emborcar bagaço, e entra Mieze que nem um passarinho, nem 20 anos, apanhada na rusga dos chuis. Pois faz de Franz seu. Arranja um encosto, ele fica de chulo, nem deixa que trabalhe, é o homem dela, o qu'é que pensam?
Mas puta, Grande Puta, é Berlim. E como no matadouro, quando a faca entra no touro, "o abdómen volta-se pesadamente, tomba para o lado". E o narrador escreve: "É a Terra, a força da gravidade." E sobre a Terra, as águas, "lúgubres sois, ó águas negras, águas terrivelmente calmas".
Babilónia espera o que é seu.
Franz é o que é, mas não é bufo nem cobarde. Volta ao bando de mânfios, vai pôr a cabeça na bigorna de Reinhold, o Mal. Quer provar ao forte que não é fraco, essa derradeira fraqueza. E não olhem agora, mas vão ver o que é um coração espatifado.
A mão do Senhor deteve Abraão quando ia sacrificar o seu filho Isaac. Se Abraão estava disposto a matar o próprio filho, era obediente o bastante. Eis o mito fundador de quantos-milhões-sobre-a-terra.
Qual é, então, "o tema mais fundo" de "Berlim Alexanderplatz", segundo Döblin? "O sacrifício é o caminho, oferecer-se a própria pessoa em sacrifício."
Falam anjos, prédios e até aves que foram mânfios. Falam os mortos, como um desfile diante de Franz. Quanto não sofreu Job sem saber porquê. Deus pune os maus, mas também os bons, em que ficamos?
Sai a Morte. Vivo, mas escangalhado, fica o novo Franz, Franz Karl, o Ressurrecto.
Arranjam-lhe um emprego de porteiro. Vai trabalhar, o ex-malandro. Escreve o narrador: "Deixa a vociferação e o sol te entrará no coração." E mais: "Um homem não pode existir sem outros." Quando os soldados marcham "ó-ai porquê, ó-ai porque sim, ó-ai só p'lo tchingtárátá bumtárátá bum", prà guerra vamos. A guerra faz-se de muitos homens, olé.
E foi o que se viu.