Um "cadáver esquisito" na festa de aniversário da Miso Music Portugal
A partir de hoje, e até dia 17, a festa faz-se no Instituto Franco-Português, em Lisboa, através de uma programação que inclui concertos, espectáculos para crianças e lançamento de discos (peças de compositores portugueses pelo clarinetista Nuno Pinto e composições premiadas no concurso Música Viva). Mas a grande novidade será a estreia de duas obras colectivas compostas à maneira de um "cadavre exquis" (chama-se "cadáver esquisito" à técnica de colagem, comum entre os surrealistas, que consistia em dividir a criação de um texto ou de um desenho por diversas pessoas sem que nenhuma delas visse a contribuição das anteriores) com a participação de 75 compositores portugueses e estrangeiros que colaboraram com a Miso Music durante este quarto de século.
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A partir de hoje, e até dia 17, a festa faz-se no Instituto Franco-Português, em Lisboa, através de uma programação que inclui concertos, espectáculos para crianças e lançamento de discos (peças de compositores portugueses pelo clarinetista Nuno Pinto e composições premiadas no concurso Música Viva). Mas a grande novidade será a estreia de duas obras colectivas compostas à maneira de um "cadavre exquis" (chama-se "cadáver esquisito" à técnica de colagem, comum entre os surrealistas, que consistia em dividir a criação de um texto ou de um desenho por diversas pessoas sem que nenhuma delas visse a contribuição das anteriores) com a participação de 75 compositores portugueses e estrangeiros que colaboraram com a Miso Music durante este quarto de século.
Amanhã, com interpretação do Sond"Ar-te Electric Ensemble, será possível ouvir o "cadáver esquisito" instrumental criado por 25 compositores (cada um contribuiu com um minuto de música) e no dia 15 o electroacústico resultante das prendas de aniversário de outros 50 compositores.
"O Miso Ensemble foi um projecto iniciador da Miso Music Portugal. Na altura foi mal entendido porque não era habitual existirem na música projectos de autor, ou se era intérprete ou se era compositor ou se estava no jazz. A improvisação, a vertente experimental, o uso da amplificação e de novas técnicas instrumentais no âmbito da música erudita ficavam nessa época numa espécie de área cinzenta", explicou Miguel Azguime ao P2.
"Mas esse projecto de autor é também uma história de amor. O que chamamos Miso Ensemble é o que fazemos em conjunto, a Paula e eu, incluindo as actividades que extravasaram a nossa vocação inicial", acrescenta. "Recentemente temos feito espectáculos cénicos em que a flauta e a percussão perderam protagonismo, mas é ainda o trabalho criativo que está na base da Miso Music."
Energia a maisQuando se olha para a cronologia publicada na brochura com o programa dos 25 anos fica-se impressionado com a quantidade de iniciativas. Citando apenas as mais importantes, encontramos a fundação da Miso Records (1988) e da Miso Studio (1990), a criação do Festival Música Viva (1992), a realização da Orquestra de Altifalantes (1995), a filiação em redes internacionais dedicadas à música contemporânea, concursos de composição e residências de compositores, a fundação do Centro de Informação da Música Portuguesa (2002) e abertura do respectivo portal (2006), a criação do Sond"Ar-te Electric Ensemble, agrupamento que combina instrumentos acústicos (2007), bem como a edição e distribuição de partituras pelo Centro de Informação da Música Portuguesa (2009).
"As actividades da Miso Music surgiram como uma espécie de excedente de energia para pôr em prática e criar uma série de infra-estruturas de apoio à criação musical que não existiam na altura ou que estavam de portas fechadas para nós", conta Miguel Azguime. "A primeira foi a Miso Records, em 1987, porque ninguém arriscava editar os nossos discos. Fomos à Valentim de Carvalho com um master e disseram-nos: "Voltem quando fizerem Rui Veloso!"", diz Paula Azguime.
Noutras ocasiões tentaram que fossem outras entidades a ocupar-se do assunto, como é o caso do Centro de Informação da Música Portuguesa. "Tivemos reuniões desde 1989 na Secretaria de Estado da Cultura e depois no Ministério da Cultura para entusiasmar as entidades públicas a criar o centro, mas em 2000 continuava por fazer", explica Paula Azguime. "Como surgiu na altura o concurso do Programa Operacional Sociedade de Informação, acabámos por nos aventurar."
Recuperar o tempo perdidoNo ano passado o Centro esteve parado por causa dos cortes orçamentais de 30 por cento nos concursos da Direcção-Geral das Artes, mas este ano está a recuperar o tempo perdido, tendo duas pessoas a trabalhar a tempo inteiro com bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia. "O Centro de Informação precisaria no mínimo de um orçamento igual ao da Miso Music e mesmo assim seria o mais barato de todos. O centro sueco tem 2,5 milhões de euros por ano. Mesmo o da Grécia tem 300 mil euros, nós temos 50 mil ou nem isso", acrescenta Paula Azguime. Mesmo assim, a base de dados está a crescer e a edição de partituras tem muita procura. "No ano passado tivemos um milhão de visitas, foi um choque, nem queríamos acreditar."
A criatividade e o poder de iniciativa desta dupla parecem imparáveis e manifestam-se também no programa da primeira semana comemorativa dos 25 anos com a ousada proposta de duas obras colectivas inspiradas na colagem surrealista. "No caso da poesia, a maior parte das vezes o "cadavre exquis" era feito sem nenhum conhecimento do que vinha antes. Na pintura, alguém pintava uma coisa que depois tapava, e deixava só um pormenor de fora para o artista seguinte continuar. Resultavam depois uns seres fantásticos que serviam muito bem os propósitos surrealistas", explica o músico.
"O surrealismo marcou-me muito e tenho muitas vezes questionado porque é que a música não tem nenhum papel nesse movimento. Pode falar-se de música futurista, mas a música surrealista não existiu."
Por isso acharam que esta seria uma boa maneira de criar "uma cumplicidade tão alargada quanto possível entre os vários compositores que têm colaborado com a Miso Music". Nenhum dos participantes teve conhecimento do que os colegas fizeram e a ordenação das pequenas peças foi aleatória. "Vai ser engraçado o confronto de linguagens completamente diferentes minuto a minuto", diz Azguime. "Nalguns casos há verdadeiras sínteses da linguagem do compositor, o que é extraordinário, ou então algo característico e emblemático do seu estilo."
Para além dos "cadáveres esquisitos", o que se poderá ver e ouvir nos próximos dias no Franco-Português é "uma espécie de exposição" das produções e das criações correntes da Miso Music. O Sond"Ar-te Electric Ensemble participa em dois concertos (amanhã e dia 16) e revisita-se o Miso Ensemble com um projecto cénico muito especial (Ficções Sonoras Eróticas), com a estreia em Portugal da obra colectiva mais recente de Paula e Miguel Azguime, intitulada No sítio do tempo (Invenção sobre Lisboa). Resultante de uma encomenda do Collectif éOle de Toulouse, esta integra 20 poemas portugueses, de autores como Martin Codax, Camões, Antero de Quental, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, Alexandre O"Neill, Natália Correia e muitos outros. Os mesmos criadores apresentam ainda L....., sobre texto de e. e. cummings.
Outros compositores responderam ao desafio de traduzir as suas visões sonoras sobre o erotismo, como é o caso de José Luís Ferreira (com Trópicos, sobre texto de Henry Miller) e António Sousa Dias (A Dama e o Unicórnio, a partir de Maria Teresa Horta).
O dia de hoje será dedicado às crianças com os Contos contados com Som/Teatro Electroacústico, assim como o de sexta-feira, consagrado ao teatro musical instrumental e preenchido com obras encomendadas pela Miso Music a Simão Costa (Quando eu nasci, história de Isabel Martins), João Madureira (Toc, toc, toc, história de Hélia Correia) e José Luís Ferreira (Uma mesa é uma mesa, será?, de Isabel Martins) e ainda Mestre Gato ou o Gato de Botas, de Miguel Azguime (encomenda do Centro Cultural de Belém).