Oiça, veja e pense
Logo a seguir às complexidades de "Ruínas", de Manuel Mozos, surge mais um olhar documental sobre opaís que herdámos. É um filme com todas as contradições ditadas por equívocos e voluntarismos bem intencionados, embora tendente a interrogar erros atávicos, escolhas discutíveis perante um progresso repleto de recuos e de pontos negros.
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Logo a seguir às complexidades de "Ruínas", de Manuel Mozos, surge mais um olhar documental sobre opaís que herdámos. É um filme com todas as contradições ditadas por equívocos e voluntarismos bem intencionados, embora tendente a interrogar erros atávicos, escolhas discutíveis perante um progresso repleto de recuos e de pontos negros.
"Pare, Escute e Olhe", de Jorge Pelicano, constrói-se, desde as primeiras imagens de arquivo, comdiscursos de Mário Soares e de Cavaco Silva ou manifestações populares em Bragança contra ofechamento de parte substancial da linha ferroviária do Tua. Estamos sob a égide da reportagem televisiva, que se vai alargando a um olhar mais abrangente sobre os malefícios de uma política de desenvolvimento descontrolado do interior de Portugal que condena as populações de Trás-os-Montes a um isolamento cada vez mais negativo. Até aqui, nada de particularmente atentatório das regras do documentário como "género": na televisão se tem operado muita da experimentação sobre as possibilidades de reflectir oreal em imagens em movimento. Onde a origem televisiva se faz sentir de forma incómoda é na gestão do tempo: "Pare, Escute e Olhe" estende-se por inúmeras repetições situacionais, retirando força aos testemunhos colhidos de forma artificiosa, num banco de estação ferroviária em queas "personagens" esperam pelo comboio, pela mudança, pela própria passagem do tempo. Se utilizamos a palavra "artificiosa" é porque ela dá conta das estratégias seguidas, desde logo no modo como Pelicano recorre a uma montagem quase demagógica a fim de levar a "água ao seu moinho" (quase apetecia dizer: à sua barragem). Em dois momentos tal montagem cria desconforto ao espectador: na forjada conversa com um deputado na Assembleia da República e na inacreditável comparação "turística" entre osconfins do vale do Tua e a máquina oleada de uma exploração sustentada dos históricos recursosferroviários operados na distante Suíça - como se se quisesse inferir que bastaria estalar os dedos paratranspor décadas de incúria e de desaproveitamento da paisagem.
E chegamos, por aqui, a um dos impasses deste documentário escorreito em termos técnicos: submeter sempre a representação do real a uma agenda política pouco clarificada, puxando, por um lado, pela vertente da defesa ecológica e, por outro, pelo conservadorismo "antiturístico" (e anti-desenvolvimentista) das populações, mais interessadasno quotidiano imediato.
Nem sequer está em causa a política errónea de multiplicar barragens, cujos benefícios parecem, de todo, não fazer esquecer os malefícios de umadesordenada morte do interior português. Mas as soluções apontadas pautam-se pela demagogia de um ecologismo primário. O ataque à natureza, em nome de interesses inconfessáveis (do dinheiro, do betão e do asfalto), é bem mais complexo do que ressalta das redutoras boas intenções de "Pare, Escute e Olhe".
Dito isto, não se pode retirar ao filme uma certa eficácia de intervenção, com um olhar curioso (ainda que "folclórico" - excessivos os interlúdios radiofónicos de discos pedidos de música mais ou menos "pimba") sobre o país real, condenado a uma sobrevivência desordenada, a uma morte lenta porasfixiamento: sobretudo interessante o espaço decontaminação cultural do bar Luky Luke, a rimar com o regresso dos emigrantes em época de festas estivas. Falta, no entanto, um maior arrojo na colocação dos dilemas que continuam a dividir um paísatrasado entre litoral e interior, sem soluções que não a luta de uma demagogia do betão armado contraoutra do "verde verdinho". Está mesmo na hora de começarmos a parar, a ouvir e a pensar.