Lia Rodrigues quer-nos aqui dentro
Vinte anos depois da primeira peça, Lia Rodrigues, coreógrafa herdeira do movimento antropofágico brasileiro, cria uma peça que é como um estado de espírito e que reclama, do espectador, uma participação directa. "Pororoca" é a expressão usada para classificar o barulho que as águas do rio Amazonas provocam quando se encontram com as do mar. Mas é também uma experiência física que passa por nós, e pelo nosso corpo, e não sabemos bem de onde veio: como quando já não chegamos a tempo de ver o desfile de carnaval, mas ainda vamos a tempo de ver a energia que ele largou nas ruas.
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Vinte anos depois da primeira peça, Lia Rodrigues, coreógrafa herdeira do movimento antropofágico brasileiro, cria uma peça que é como um estado de espírito e que reclama, do espectador, uma participação directa. "Pororoca" é a expressão usada para classificar o barulho que as águas do rio Amazonas provocam quando se encontram com as do mar. Mas é também uma experiência física que passa por nós, e pelo nosso corpo, e não sabemos bem de onde veio: como quando já não chegamos a tempo de ver o desfile de carnaval, mas ainda vamos a tempo de ver a energia que ele largou nas ruas.
Com esta peça que trouxe na quarta-feira ao Auditório de Serralves, Porto, e traz à Culturgest, Lisboa, dias 16 e 17, Lia Rodrigues recupera uma palavra indígena, das tribos tapuias, indo buscar às memórias da construção do Brasil um modo de entender o corpo e o que este pode fazer em palco. Tal como em outras peças da coreógrafa, estes não são corpos narrativos e muito menos simbólicos (ou preocupados com o simbolismo). São corpos intuitivos, que buscam, muitas vezes ao longo da própria apresentação, um estado que lhes permita uma existência mais consentânea com a liberdade característica da dança.
Defensora de uma arte que pertença à vida em vez de permanecer à margem, Lia Rodrigues traz para os palcos a experiência social de trabalhar numa favela, a Nova Holanda, a sul do Rio de Janeiro [ver "Na casa nova de Dona Lia", texto de 22/04/09 que continua disponível no site do Ípsilon], tentando incluir nos seus espectáculos aquele imenso mundo. "Pororoca" vai mais longe nessa defesa, imaginando corpos que se metamorfoseiam, que deambulam entre um e outro estado, sem ambicionar a fixação. No palco vazio e aberto, fingem ser animais e pessoas, imagens feitas e o seu contrário, gestos que vão à procura e outros que já estão a regressar.
Há nos corpos de "Pororoca" uma busca insistente de organicidade, ou de organização, mas eles nunca parecem chegar a algum lado, passando todo o tempo a experimentar possibilidades de coisas.
Eu acho que é um jeito de organização que vem do tropicalismo. A peça visita um pouco este universo andradiano [de Oswald de Andrade], um universo antropofágico que não é pornográfico no sentido do toque e da exibição mas sim no sentido de você não ter muita certeza de estar num lugar ou noutro e sentir que pode visitar vários lugares diferentes em vários estados diferentes. Eu sinto que é um trabalho que foi beber muito da fonte antropofágica, tem um lado plástico ligado ao universo do Hélio Oiticica, da Lygia Clark, até da Lygia Pape, porque a gente se vê obrigada a entrar corporalmente na experiência.
Há um princípio de confronto entre imagens feitas (homem e mulher, forte e fraco, branco e negro), mas são apenas pontos de partida, imagens exploradas na sua impossibilidade de serem só uma coisa ou outra.
A peça pergunta que negociações são necessárias para que estas pessoas possam estar juntas no mesmo lugar, para que nós possamos estar juntos. São sempre negociações temporárias. Aqui há uma organização diferente, parece que é uma bagunça organizada. Isso é um jeito diferente de estar junto, um jeito peculiar brasileiro. É um contraste muito grande com a visão europeia em que as coisas são muito categorizadas. Aqui não tem uma definição para meter numa gaveta. No Brasil a gente procura jeitos muito criativos para estarmos juntos nos lugares. Na vida também. E aqui também. Estamos sempre temporariamente em contacto. Eu acho que essa incerteza é uma coisa muto típica do jeito em que a gente vive. A gente não propõe uma resolução disso. A gente criou um estado físico e é a partir desses estado físico que a peça se desenrola.
E esse desenrolar, ainda assim, ambiciona ir para algum sítio em concreto?
Nada, nada. Simplesmente está. Não tem saída, a saída está em quem vê. No que você faz com aquilo. Uma coisa que foi importante quando estava a fazer o espectáculo foi a leitura de "Grande Sertão Veredas", do Guimarães Rosa, que é um livro que se presta a várias coisas e, no meu caso, me fez jogar num estado onde, mais do que eu ficar presa nas palavras dele, eu tinha uma experiência física. Aí eu fiquei pensando como é que a gente ia conseguir fazer essa transposição, contar esse livro, dançar esse livro.
Será daí que surge esta ideia de princípios de histórias, de narrativas que não são mais do que um ponto de partida, como quando os dois rapazes se olham fixamente ou os bailarinos fingem ser animais?
Eu vejo apenas apontamentos de coisas, não sei muito bem se eles estão brincando ou não. É bicho mas não é, é gente. Não sei se eu estou contando uma historia, se eu estou contando um lugar, ou a história de um lugar. Mas um lugar onde as coisas não têm uma narrativa. E aí você pode tudo. É como quando você lê o "Macunaíma" [de Mário de Andrade] e não sabe o que é. Às vezes é bicho, às vezes é gente, às vezes é mágico, às vezes é um deus, um moleque. Tem essas coisas muito brasileiras, e é isso o que me está interessando.
Fica-se com a sensação de que é o olhar externo que atribui ao corpo, e ao movimento, um determinado significado, como se o corpo produzisse sentidos que não identifica e só se materializam cá fora. O que parece ser uma continuidade relativamente a dois trabalhos anteriores, "Encarnado" (2005) e "Aquilo de que somos feitos" (2000).
Agora que estou olhando o meu reportório, eu posso observar que o "Pororoca" é amoral, no sentido em que ele não fecha um sentido e deixa essas questões que você coloca em aberto. Elas podem estar dentro e não estar. São convocadas para fora através dessa materialidade e voltam como acção. Eu acho que é um trabalho que não explicita. É mais disforme, amoral. Nesse sentido ele demanda do público uma experiência física e não uma categorização, como falámos há pouco, ou um desejo de entendimento. A gente tem de ser livre para receber, que nem uma pororoca passa pela gente. É como quando no carnaval passa um bloco [um corso] e fica aquela bagunça em que você não sabe bem o que aconteceu mas teve uma experiência física.
Ideia que é em tudo equivalente ao modo de trabalhar na favela.
Fazer este trabalho no centro da Maré é completamente diferente porque é um lugar enorme, barulhento, todo branco, todo cheio de interferências. Entrar numa caixa preta com todos os códigos que essa caixa preta tem foi uma transposição bem dura para mim, para todos nós, porque ela nasceu num contexto tão especifico. Na Maré está tudo ao redor. Na caixa preta como é que você contém um trabalho que parece não caber ali?
Há um processo de subtracção, como se a coreografia caminhasse para uma "limpeza"? Parece ser esse o caso do som, porque é uma peça profundamente silenciosa.
A gente não sentia a menor necessidade de nada, tinha um som ao lado. E quando chegámos lá na caixa preta [em Angers, França], com o silêncio típico dos teatros, ficámos chocados, estava faltando alguma coisa. A gente tenta fazer numa sala muito aberta, muito despojada, mas mesmo assim o que eu sinto quando faço na Europa é que tenho vontade de conversar antes. Não é explicar o trabalho, mas é partilhar um percurso, muito mais do que apenas mostrar o trabalho. Ver dança contemporânea é um esforço muito grande que a gente deve comemorar. Na Maré é uma festa, as pessoas falam, você mostra, vai ali no barzinho, é uma confraternização, é um jeito legal, bacana de se estar. Adoro isso, "gente vamos começar, vai lá no bar buscar um público", "vamos gente, vai começar", e tem um negócio que você cria, uma forma de partilhar que às vezes o teatro tem evitado.
E que tem a ver com o modo como a Lia entende que a dança e a arte devem existir na vida das pessoas, não à parte...
Exactamente. Eu não vejo a arte como uma coisa assim numas montanhas lá, separada da vida. Para mim é muito antigo pensar no que eu faço dessa forma. Tenho de me perguntar, e de perguntar, para que é que eu estou fazendo o que eu faço. Quem é que vai ver, o que é que isso significa para a vida dessas pessoas, para quem é que a gente faz o que faz, o que é que se deseja com isso? Você pode imaginar 132 mil pessoas que não têm experiência de um espaço para a arte, não têm a experiência de irem a um lugar ver teatro. Quando nós começámos a apresentar na Maré, o pessoal da favela dizia "ai mas eu não entendi nada", quase como se existissem códigos para entrar nesse universo que distanciam milhares de pessoas do que você faz. E nós dizíamos: "Se você não estiver entendendo nada, não precisa se preocupar, deixe a experiência entrar de uma outra forma".