Já os topámos...

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Sam The Kid e Dj Cruzfader são a alma hip hop. João Gomes e Francisco Rebelo, os groove junkies. A bateria de Fred Ferreira é a âncora

Tudo isto começou de forma misteriosa. A notícia chegou sussurrada. Que havia um concerto no MusicBox, que a banda se chamava Orelha Negra, que os músicos que a integravam iriam manter-se incógnitos até subirem a palco. Isto em 2008. Tínhamos uma foto: cinco tipos alinhados em calçada com vista para o Príncipe Real, identidade real substituída por capas de vinil de Marvin Gaye, Roberto Carlos ou Paulo de Carvalho. Intervenção "sleeve face", fenómeno recente na net nesse 2008 em que os Orelha Negra se preparavam para dar o primeiro concerto.

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Tudo isto começou de forma misteriosa. A notícia chegou sussurrada. Que havia um concerto no MusicBox, que a banda se chamava Orelha Negra, que os músicos que a integravam iriam manter-se incógnitos até subirem a palco. Isto em 2008. Tínhamos uma foto: cinco tipos alinhados em calçada com vista para o Príncipe Real, identidade real substituída por capas de vinil de Marvin Gaye, Roberto Carlos ou Paulo de Carvalho. Intervenção "sleeve face", fenómeno recente na net nesse 2008 em que os Orelha Negra se preparavam para dar o primeiro concerto.

Dois anos depois, quando chega o homónimo álbum de estreia, ainda não lhes vemos a cara - continuam a ser "cara de capa", tradução literal de "sleeve face" -, mas sabemos quem são. Sam The Kid e DJ Cruzfader, distintos representantes da comunidade hip hop. O teclista João Gomes e o baixista Francisco Rebelo, fundadores dos Cool Hipnoise e músicos em mil outros projectos. Fred Ferreira, baterista que dá ritmo a quase tudo o que vibra: dos Micro Audio Waves aos Buraka Som Sistema, dos Dapunksportif aos Rádio Macau, dos Oioai a Wordsong. São eles a Orelha Negra: um logótipo adaptado da Stax, que a memória histórica é aqui fundamental, e uma vontade de remisturar essa memória ao sabor das jams ordenadas pelo estúdio e estimuladas em palco - porque isto é pessoal que tem em cima anos de estrada e gravações e o instinto não lhes permite meras reproduções "limpinhas" dos heróis.

Ouvimos "Orelha Negra" e tudo se conjuga. Primeira faixa: "a memória é a coisa mais jovem que existe" e "o caminho é a fusão", ouvimos resgatado em sampler. Exactamente a meio, "C'mon let's travel into the future" é o mote que nos conduz por "Futurama". Para despedida, "We're superfly", que tem a voz de Curtis Mayfield, incitamentos hip hop e teclados futuristas em convívio frutuoso. "Orelha Negra" pode ser o retrato dessa viagem, mas não foi pensado como tal. A história, descobrimos ao falar com João Gomes, Francisco Rebelo, Fred Ferreira e Cruzfader, é mais simples que isso. Em 1962, os Booker T & The MGs criaram "Green onions", tema fundamental na história da Stax e do R & B, no intervalo de umas sessões de gravação. De certa forma, o álbum que temos em mãos é o "Green onions" dos Orelha Negra.

Um culto partilhado

A história conta-se rápido. Juntaram-se na banda que Sam The Kid reuniu para levar a palco "Pratica(mente)", o seu último álbum, editado em 2006. "Ao longo dos concertos da digressão, tínhamos muito espaço para os mais diversos improvisos", recorda Francisco Rebelo. "Andámos três anos juntos e a ideia de fazer os Orelha Negra e o nome Orelha Negra foi surgindo entre carrinhas e camarins, hotéis, palcos e salas de ensaio", acrescenta João Gomes. Francisco completa: "Foi daí, dessas brincadeiras, que surgiu a ideia de fazer algo completamente instrumental, com base na nossa experiência e nas nossas dimensões musicais". Nesse primeiro momento, tinham uma vaga ideia de linha condutora.

Em dois concertos da digressão, os da Festa do Avante e do festival Sudoeste, criaram um "medley" de instrumentais que, sobre samples clássicos de hip hop, serviam de banda sonora para uma sessão de breakdance. Como concede João Gomes, "isso deu-nos uma ideia de conceito para o projecto, inspirado no 'samplar' e no elogio do passado". A ideia de se "esconderem" por trás de capas de discos de vinil surge como reflexo disso. Por um lado, queriam que "as pessoas se concentrassem na música e não nos músicos", por outro, os vinis convocavam um imaginário comum. Entre trabalho como DJs, a procura do sample perfeito em tudo o que tenha estria em condições e o coleccionismo fervoroso, os cinco Orelha Negra têm os discos como parte fundamental do seu universo musical. São "um culto partilhado", resume Francisco Rebelo. Chamemos-lhe o início de tudo - o "Green onions" dos Orelha Negra surge logo a seguir, bem mais extenso que os três minutos com que , há mais de quatro décadas, os Booker T & The MGs, garantiram a imortalidade.

As misturas por fazer

A conversa avança e perguntamos aos quatro Orelha Negra presentes que espaço ocupará a banda no trajecto de cada um deles. Afinal, falamos de músicos em que "tropeçamos" constantemente, de pessoal que se divide por sabem-se lá quantos projectos. João Gomes não perde tempo na resposta: "Estou a dar esta entrevista e estou concentrado em Orelha Negra. Mas depois vou ensaiar e amanhã tenho um concerto com os Cacique [97; recomendadíssimos representantes portugueses do afrobeat]". Francisco Rebelo, ele que, tal como João Gomes, oferece groove diverso à música mandinga de Kimi Djiabaté, à recuperação de clássicos feita pelos Cais do Sodré Funk Connetion e aos supracitados Cacique 97, ele que num dia grava psicadelismos com os Saturnia e no seguinte ajuda a dar corpo aos Micro Audio Waves, complementa: "Na nossa vida 'multiprojectos', a concentração tem a ver com o momento, e este é o momento Orelha Negra". Isto é importante. Porque este é pessoal que não anda às voltas com faltas de inspiração ou com crises existenciais. É pessoal que, quando se decide a fazer, faz mesmo.

Então, acabada a digressão com Sam The Kid, em 2008, os Orelha Negra passam a encontrar-se semanalmente num estúdio. Fazem jams de três horas, experimentam com este formato onde bateria, baixo e teclas improvisam com scrach, sample e programações. "Ao fim de sete ou oito semanas, tínhamos uma antologia de 80 esboços", conta Francisco Rebelo. Depois, quando Fred Ferreira organizou todo o material, eles ficaram "com um super menino nos braços" e perguntaram uns aos outros "o que é que vamos fazer com isto tudo?" Fizeram o que fazem os músicos. Levaram-no a palco. Sem rede, como explica Fred: "Marquei uma data sem sequer lhes perguntar se podiam dar o concerto. Tramei-os mesmo". Essa data foi o concerto do MusicBox com que iniciámos este texto, quando os Orelha Negra perceberam que o "super menino" podia ser um disco e que esse disco existia para ser tocado ao vivo. Sentiram-no quando saíram do palco do MusicBox, em Outubro de 2008, e assim gravaram o álbum agora editado. Processo rápido: "Demorámos dois dias em estúdio. Fazíamos dois, três takes e depois era uma questão de escolher o melhor".

Há algumas semanas, numa apresentação à imprensa no palco do São Jorge, em Lisboa, percebemos como tudo funciona - poderão vê-lo também dia 15, no Lux. Portanto, de um lado, Sam The Kid e Dj Cruzfader, a alma hip hop. Do outro, João Gomes e Francisco Rebelo, os "groove junkies". Ao centro, a bateria de Fred Ferreira como âncora.

Juntavam-se orquestrações "blaxploitation" e o tom jazzy do Rhodes, o baixo ora ressoava no esqueleto, ora incitava planagens menos físicas, apontadas ao espaço. Era como se os Furious Five e Common, os NERD e Quantic, Isaac Hayes e os Funkadelic partilhassem um mesmo espaço, sem fronteiras delimitadas. Uma "absorção e trituração do passado", utilizando definição de Francisco Rebelo, da qual nasce, inevitavelmente, uma outra coisa. "É verdade que já está tudo inventado", dirá João Gomes. "Existem doze notas e não haverá mais". Não nos apressemos, contudo, a anunciar o fim da história: "Ao mesmo tempo, não é verdade que já tudo foi inventado. Os Vampire Weekend não inventaram nada, mas aquela mistura nunca existira. E existem ainda muitas misturas para fazer".

Eis a mistura que agora se apresenta. Orelha Negra é o seu nome.