Catherine Ashton, "diplomata discreta" ou incompetente?
Um segundo consenso começa, no entanto, a ganhar forma: mesmo se Ashton poderá não ter o perfil ideal para o cargo, a verdade é que grande parte dos seus problemas resulta sobretudo do Tratado de Lisboa e da sua construção extraordinariamente complexa em matéria de política externa, que teria posto à prova o mais experiente dos diplomatas.
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Um segundo consenso começa, no entanto, a ganhar forma: mesmo se Ashton poderá não ter o perfil ideal para o cargo, a verdade é que grande parte dos seus problemas resulta sobretudo do Tratado de Lisboa e da sua construção extraordinariamente complexa em matéria de política externa, que teria posto à prova o mais experiente dos diplomatas.
Ashton, britânica de 53 anos, tornada baronesa de Upholland há pouco mais de dez anos pelo Partido Trabalhista de Tony Blair, sabe que foi nomeada pelos líderes da UE não pela sua competência de política externa - que não tem - mas sobretudo porque tem o género, a cor política e a nacionalidade considerados adequados. O único responsável europeu genuinamente contente com a escolha da ex-comissária responsável pelo comércio foi o presidente da Comissão Europeia: os seus próximos garantem mesmo que "foi Durão Barroso que lançou Ashton, inclusive contra a vontade de Gordon Brown", o primeiro-ministro britânico.
Inexperiência, erros de apreciação - por não ter ido ao Haiti logo a seguir ao sismo de Fevereiro dar visibilidade à ajuda europeia -, concepção errada das prioridades - por ter ido a Kiev assistir à tomada de posse do Presidente ucraniano, Viktor Ianukovitch, em vez de participar numa reunião informal dos ministros da Defesa da UE -, reservas sobre uma política europeia de defesa: as críticas não pararam de chover sobre Lady Ashton e a sua "diplomacia discreta" desde que entrou em funções a 1 de Dezembro.
Parte das hesitações, reconhece um dos seus amigos mais próximos, resulta da convicção da baronesa de que não existe uma política externa europeia para representar.
A este problema de percepção junta-se uma enorme dificuldade resultante do Tratado de Lisboa, que concentra de forma inédita numa única pessoa as competências externas da UE: as políticas "comunitárias" e respectivo orçamento tuteladas pela Comissão Europeia - ajuda ao desenvolvimento, comércio ou negociações climáticas - e as matérias "intergovernamentais", como a diplomacia, a segurança e a defesa, a cargo do Conselho de Ministros da UE. Ao mesmo tempo, o Tratado prevê a criação de um novo Serviço Europeu de Acção Externa (SEAE) que contará com 6 a 7 mil funcionários e diplomatas oriundos da Comissão, do Conselho e das diplomacias nacionais para apoiar a missão do alto representante na representação da UE no Mundo.
Só que o Tratado delega no primeiro ocupante do cargo a responsabilidade de organizar o SEAE, o que coloca Ashton no centro de um braço-de-ferro colossal entre as duas instituições sobre a repartição de competências. Para complicar as coisas, a baronesa deve fidelidade a ambas, porque depende do Conselho mas é também vice-presidente da Comissão.
Os governos, sobretudo dos grandes países, só aceitam transferir competências para o SEAE se tiverem todos os domínios da política externa - e respectivo orçamento - sob o seu controle, e esperam que Ashton cumpra.
A Comissão resiste, por seu lado, a aceitar o retrocesso que constituiria a "intergovernamentalização" das políticas comunitárias, recusando igualmente transformar-se na mera executante no terreno das orientações do SEAE.
A nomeação de João Vale de Almeida, ex-chefe de gabinete de Barroso durante o seu primeiro mandato para o posto crucial de embaixador da UE em Washington, contribuiu fortemente para fragilizar a posição de Ashton junto do Conselho: os governos acusam-na de ter cedido a uma imposição de Barroso, o que esta nega, garantindo que a decisão foi sua. O que levou os governos a protestar de forma veemente e pública por não terem sido consultados, e a redobrar a pressão para a alta representante se distanciar da Comissão.
O facto de a chefe da diplomacia não ter uma ideia clara sobre o que quer para o SEAE e de procurar agradar a uns e outros, não ajuda a clarificar as coisas, queixa-se um alto responsável europeu envolvido no processo. É exactamente por essa razão que países como a França e Alemanha temem que a baronesa se apoie excessivamente no Foreign Office, velho adversário do desenvolvimento de uma política externa europeia, e aceite um domínio excessivo de Londres sobre o SEAE.
Ashton defende-se sem alarido, lembrando que herdou as competências exercidas até há pouco por três responsáveis europeus a tempo inteiro: o comissário europeu responsável pelas relações externas, o ministro dos Negócios Estrangeiros do país que exerce a presidência rotativa da UE e o alto representante para a política externa. Este último cargo foi exercido nos últimos dez anos pelo espanhol Javier Solana, diplomata mais que batido e habituado a um ritmo infernal de deslocações, reuniões e negociações, de tal modo que era conhecido como o homem "que nunca dorme". "Ainda não aprendi a viajar no tempo", ironiza Ashton.