A consagração de uma cineasta, ponto
Dá gosto ver um Óscar nas mãos de Kathryn Bigelow. Por nada que tenha a ver com questões de "paridade" ou outras que fazem a alegria da sensibilidade "du jour" - ninguém é especialmente culpado por há cento e tal anos o cinema se ter organizado de uma maneira simples: os homens atrás da câmara, as mulheres à frente. Podia não ter sido assim mas foi assim, e isto deu-nos Griffith e Lillian Gish, Sternberg e Marlene, Ford e Maureen O'Hara, Billy Wilder e Marilyn, Godard e Anna Karina. Não há que choramingar, e já na pintura, durante séculos, foram os homens que pintaram as mulheres. É a vida. A converseta sobre "a primeira mulher-cineasta consagrada pela Academia" terá os seus, digamos, avatares, mas comove-nos pouco. Preferimos outra fórmula: a noite passada assistimos à consagração de uma cineasta, ponto. Esta é a raridade que nos interessa, numa era em que a Academia regularmente desvaloriza os seus próprios prémios, entregando-os a Ron Howards ou a Danny Boyles.
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Dá gosto ver um Óscar nas mãos de Kathryn Bigelow. Por nada que tenha a ver com questões de "paridade" ou outras que fazem a alegria da sensibilidade "du jour" - ninguém é especialmente culpado por há cento e tal anos o cinema se ter organizado de uma maneira simples: os homens atrás da câmara, as mulheres à frente. Podia não ter sido assim mas foi assim, e isto deu-nos Griffith e Lillian Gish, Sternberg e Marlene, Ford e Maureen O'Hara, Billy Wilder e Marilyn, Godard e Anna Karina. Não há que choramingar, e já na pintura, durante séculos, foram os homens que pintaram as mulheres. É a vida. A converseta sobre "a primeira mulher-cineasta consagrada pela Academia" terá os seus, digamos, avatares, mas comove-nos pouco. Preferimos outra fórmula: a noite passada assistimos à consagração de uma cineasta, ponto. Esta é a raridade que nos interessa, numa era em que a Academia regularmente desvaloriza os seus próprios prémios, entregando-os a Ron Howards ou a Danny Boyles.
Tanto mais que Bigelow nunca foi uma "superstar". Os desígnios dos Óscares são insondáveis, e "Estado de Guerra", sendo um excelente filme, não é evidentemente melhor do que os outros filmes de Bigelow. Este pegou, vá-se lá saber porquê. Talvez o Iraque, que sempre se presta mais a parangonas do que histórias de surfistas ("Point Break", dos anos 90) ou reconstituições de acidentes com submarinos soviéticos nos anos 60 ("K-9") - a verdade é que Bigelow não tem um único mau filme, simplesmente nunca ninguém lhes ligou pevides, a tal ponto que os "flops" (de "K-9", por exemplo) pareciam ter conduzido a sua carreira a um impasse. Por outro lado, não é a hollywoodiana típica, e tem um percurso artístico e intelectual que tradicionalmente mete medo a Hollywood - formou-se em pintura, frequentou as avant-gardes e os circuitos universitários. Os seus primeiros filmes, de entre finais de 70 e princípios de 80, vêm deste contexto. Só mais tarde, a partir de "Near Dark" (de 1987, um dos últimos bons filmes de vampiros antes do abastardamento do género), começou a trabalhar com os modos e as convenções regulares de Hollywood.
Bigelow tem poucos filmes, mas todos são bons. Curiosamente, a "mulher-cineasta" filma sobretudo homens e universos masculinos (em "Estado de Guerra" e em "K-9", filmes "militares", as mulheres contam-se pelos dedos de uma mão, e sobram dedos). Fora "Blue Steel" (de 1989), história de uma polícia (Jamie Lee Curtis) que tem que aprender a agir "como um homem", praticamente só tem protagonistas masculinos. Mesmo que a ironia possa cobrir os géneros: em "Strange Days" (de 1995, e incidentalmente, ora vão lá rever, o filme que adivinhou o mundo das câmaras de telemóvel e do YouTube) o protagonista masculino, Ralph Fiennes, é mais feminino do que a protagonista feminina, Ângela Bassett, que até veste fato e gravata.
Depois, Bigelow interessa-se pela acção, pela acção física, com um rigor quase científico: as cenas de acção do "Estado de Guerra", por exemplo, impecavelmente filmadas, decompostas e recompostas em total precisão das coordenadas espacio-temporais (mas aqui cabia lembrar a fabulosa perseguição a pé de "Point Break"). Ver uma cineasta destas com a estatueta na mão dá gosto. Mais gosto dá que esta cineasta do físico, do espaço e do tempo trabalhados com a sua dureza intrínseca, tenha derrotado "Avatar" e a sua "digitalidade" sem espaço nem espessura - a "first life" ganhou à "second life", e isso, como "sinal" (se entendermos que a Academia manda "sinais", o que é profundamente duvidoso), é bom. Finalmente, e esta é a pequena observação eventualmente "machista" que as razões de contexto estão mesmo a pedir, dá gosto que Kathryn Bigelow tenha 58 anos e aquela figura. Se havia de ir para um camafeu qualquer, mais ano menos ano, ainda bem que o assunto da "primeira mulher-cineasta consagrada pela Academia" ficou assim resolvido.