Manicómio

Que Tim Burton pegue em Lewis Carroll não é por certo estranho nem extraordinariamente inesperado, porque o universo do escritor inglês sempre esteve à distância de um espelho do do realizador americano ("americano", mas em processo de anglicização, como nos últimos filmes se vinha vendo e este não desmente, bem pelo contrário). Que Carroll se ofereça assim à "burtonização" talvez seja mais digno de nota: Burton apropria-se de Alice e do País das Maravilhas sem fricção, uma espécie de "ocupação" pacífica e consentida, sem precisar de disparar um tiro. Tudo é orgânico e harmónico, numa sobreposição perfeita que torna inútil (ou pelo menos pouco profícuo) o exercício de dissecação.

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Que Tim Burton pegue em Lewis Carroll não é por certo estranho nem extraordinariamente inesperado, porque o universo do escritor inglês sempre esteve à distância de um espelho do do realizador americano ("americano", mas em processo de anglicização, como nos últimos filmes se vinha vendo e este não desmente, bem pelo contrário). Que Carroll se ofereça assim à "burtonização" talvez seja mais digno de nota: Burton apropria-se de Alice e do País das Maravilhas sem fricção, uma espécie de "ocupação" pacífica e consentida, sem precisar de disparar um tiro. Tudo é orgânico e harmónico, numa sobreposição perfeita que torna inútil (ou pelo menos pouco profícuo) o exercício de dissecação.


Distinguir "isto é Burton" e "aquilo é Carroll": que importa, se a coisa se faz una? Diríamos que Burton pega - à letra - numa das características do livro de Carroll, o facto de ele se dirigir primordialmente à imaginação do leitor. E que é recorrendo à sua "imaginação de leitor" que Burton constrói a sua "Alice". A imaginação de Burton, conhecemo-la bem, e seguramente a reconhecemos aqui (donde, a impressão de familiaridade que já descrevemos). Surpresa? Surpresa nenhuma, ou só - se nos pusermos a pensar nisso - que essa imaginação trabalhe num diálogo directo com a fonte carrolliana, e surja imediada - mesmo "despoluída" - por outras imaginações de "Alice". Enfim, não conhecemos todas - há uma versão de Jonathan Miller que anda por aí nas prateleiras dos DVDs de importação - mas este é um filme Disney (uma produção Disney) que é o perfeito negativo da versão Disney que enformou, em tanta gente de tantas gerações, uma visão de "Alice no País das Maravilhas".

E é o negativo disso porque (para além de questões de invenção visual) intensifica, em vez de atenuar, a dimensão mais perturbante do relato de Carroll. O absurdo daquilo tudo, a loucura daquelas personagens todas. É evidente que isto não é País das Maravilhas nenhum, é um País dos Horrores, vivido (ou criado) no limiar suportável da desagradabilidade. Atenção, por exemplo, à paisagem (algo inóspita, por vezes "lunar", ou a lembrar um "pós-apocalipse") ou às cores do céu (cinzento, muito "bleak" - como a meteorologia inglesa?...). E ao modo como este tratamento "atmosférico", em fundo do tratamento das personagens, salienta o óbvio: como sempre em Burton o "pesadelo" mal se distingue do "sonho", e por muito que a promoção de "Alice" pareça dirigir o filme a um público infantil, a quem Burton de facto se dirige é aos adultos. O outro lado do espelho é um inferno, grotesco e distorcido.

E as 3D? Digamos muito brevemente duas ou três coisas: que são usadas de maneira muito menos ostensiva do que em "Avatar" (muito menos cansativa, também), e que se nota uma relação mais coerente entre o seu uso e a própria composição espacial. E ainda que, trabalhando mais sobre pintura (ou "como pintura") do que Cameron, Burton se diverte, nalguns momentos, a anular o relevo, a transformar os corpos dos actores em silhuetas planas, a fazer "2D" dentro do "3D". No mínimo, é divertido e inteligente. O frabjous day!.