A teoria da conspiração
Impõe-se um aviso prévio e inevitável: "Shutter Island" tanto mais impressionará quanto mais o espectador se abandonar sem restrições ao seu pesadelo claustrofóbico e progressivamente mais desorientante. É aí, nesse estado de vigília acordada entre o sonho e a realidade, que o novo filme de Martin Scorsese ganha toda a sua razão de ser: no modo como ele vai desconstruindo progressivamente uma realidade reconhecível até nada restar a não ser a nossa própria dúvida em relação ao que estamos a ver.
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Impõe-se um aviso prévio e inevitável: "Shutter Island" tanto mais impressionará quanto mais o espectador se abandonar sem restrições ao seu pesadelo claustrofóbico e progressivamente mais desorientante. É aí, nesse estado de vigília acordada entre o sonho e a realidade, que o novo filme de Martin Scorsese ganha toda a sua razão de ser: no modo como ele vai desconstruindo progressivamente uma realidade reconhecível até nada restar a não ser a nossa própria dúvida em relação ao que estamos a ver.
A imagem, nas mãos de um mestre, pode induzir em erro - já Hitchcock o dizia, mas "Shutter Island" desvia Hitchcock por via de De Palma para depois o alinhar com Fuller, Bava, Argento, Lang, Murnau, Tourneur e outros mestres da série B reavaliados como dignos da série A. E, já agora, está mesmo paredes-meias com o cinema de terror, é um objecto gótico e barroco onde Leonardo di Caprio, detective traumatizado pelas suas experiências na II Guerra, enviado a um hospital psiquiátrico numa ilha isolada ao largo de Boston, desce aos infernos onde a realidade e a loucura se fundem.
Exercício de estilo, pretexto para demonstrar como aprendeu as lições de tudo o que viu e as fez suas, manifestação de virtuosismo? Sim, sim, sim - mas sem a frieza do aluno aplicado, antes com o prazer mal disfarçado de quem tem gosto naquilo que faz e de quem o faz por prazer. É, aliás, isso que explica como este filme que, noutras mãos, seria uma espécie de De Palma-ersatz se torna, nas de Scorsese e do seu director de fotografia Robert Richardson, numa espantosa carta de amor ao cinema de género, das séries B fantásticas que Val Lewton produziu e Jacques Tourneur dirigiu para a RKO ("A Pantera", "Zombie") ao giallo italiano de Mario Bava ("A Máscara do Demónio") ou Dario Argento ("O Pássaro com Plumas de Cristal"), passando pelos grandes filmes negros da década de 1950 e pelos "Mabuse" de Lang ou o "Gabinete do Dr. Caligari" de Wiene (e é só impressão nossa, ou há ali ecos de Samuel Fuller e de Michael Powell?).
Isso faz de "Shutter Island" um "cadáver esquisito" tanto mais inesperado quanto não é, de todo, disto que estamos à espera hoje de um filme "de estúdio" com Leonardo di Caprio (que, a propósito, é um erro de "casting"; por mais que tente, não consegue atingir o nível de intensidade necessária para habitar a sua personagem). Scorsese filma como se houvesse sempre um detalhe inexplicavelmente fora do sítio, como se tudo isto fosse uma enorme alucinação, uma mistificação onde nunca sabemos o que é verdade e o que é mentira, sublinhada pela opressão da cenografia de Dante Ferretti e pela magnífica escolha de compositores contemporâneos feita por Robbie Robertson para a banda-sonora.
E essa mistificação faz parte do jogo de Scorsese, brincando com a arte do cinema como se nunca tivesse feito outra coisa na vida (e, na realidade, nunca fez). A arte de um grande cineasta reside, muitas vezes, no modo como se apropria de uma peça de "pulp fiction" como é esta e dela faz um filme que não poderia ter sido feito por mais ninguém. "Shutter Island" não é um "grande filme" de Scorsese, uma daquelas obras-primas (que, de qualquer maneira, já ninguém espera dele) - mas, dentro dos "pequenos filmes" que todos os realizadores veteranos têm direito a fazer, "Shutter Island" é um grande, grandíssimo filme.