Touro em paz
O boxe e o cinema ligam bem, e (leitores mais jovens:) nem estamos a falar do "Touro Enraivecido": já ligavam muito antes dele. Há qualquer coisa nos boxeurs que faz deles boas personagens de cinema, há qualquer coisa na vida de boxeur - e num combate de boxe, situação despida e essencial: um homem sozinho contra outro homem sozinho - que propicia ressonâncias que vão para além do desporto. Um ringue é um palco: está ali em acção (está ali em narração) uma tragédia qualquer. Resumidamente, é isto que o cinema vê quando vê o boxe.
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O boxe e o cinema ligam bem, e (leitores mais jovens:) nem estamos a falar do "Touro Enraivecido": já ligavam muito antes dele. Há qualquer coisa nos boxeurs que faz deles boas personagens de cinema, há qualquer coisa na vida de boxeur - e num combate de boxe, situação despida e essencial: um homem sozinho contra outro homem sozinho - que propicia ressonâncias que vão para além do desporto. Um ringue é um palco: está ali em acção (está ali em narração) uma tragédia qualquer. Resumidamente, é isto que o cinema vê quando vê o boxe.
Resumidamente, foi isto que Bruno de Almeida viu quando viu Bobby Cassidy. Ex-pugilista, activo entre os anos 60 e 1980. Nunca chegou a ser campeão mundial - "e ao fim de tantos anos isso ainda me incomoda". Ganhou e perdeu, deu e levou as vezes suficientes para conseguir explicar qual é a sensação (física e psicológica) de se estar à beira de um "knockout", e para dizer que quem se incomoda com os danos físicos infligidos ao adversário "não pode vir para esta vida". Cassidy é o contrário do estereótipo que faz dos boxeurs indivíduos abrutalhados e semi-bestiais: é articulado, discorre sobre o boxe oscilando sempre entre a técnica e a filosofia, entre o desporto e o modo de vida. Com entusiasmo e com desencanto, mas sem "bullshit" nenhum, nem floreados nem poesia barata. A sua tragédia, não precisa que lha expliquem e é ele que a conta: a infância difícil, a mãe alcoólica, o padrasto violento. Sem raiva, sem qualquer coisa de fundamental a jogar-se a cada soco, um pugilista não tem hipóteses.
Cassidy tem agora sessenta e tal anos e - fora a mossa que o facto de não ter sido campeão mundial ainda lhe provoca na auto-estima - está em paz consigo e com a sua vida. Bruno de Almeida deu-lhe a oportunidade de contar a sua autobiografia. "Bobby Cassidy, Counterpuncher" é isso: a história de uma vida contada na primeira pessoa. Em casa com os filhos, ou no ginásio, Cassidy narra episódios, relembra combates (ao pormenor), descreve pensamentos. Às vezes epifanias: abandonou o boxe num impulso, certa vez que passou em Times Square e o grande relógio electrónico marcava quatro da tarde (sem mais explicação, como se isto fosse evidente: quatro da tarde no relógio de Times Square, hora de deixar o boxe). Times Square: a história de Bobby também é uma "história de Nova Iorque", e para Bruno de Almeida, que já foi (e se calhar ainda é) "novaiorquino", isto conta. Os anos 60, os anos 70, os anos 80, os submundos do boxe, das apostas, dos "nightclubs", do tráfico de droga e da máfia, como se a vida de Bobby Cassidy fosse um filme de Martin Scorsese, de Spike Lee, de James Gray.
Bruno de Almeida chegou primeiro do que eles, e não precisou de fantasiar nem reconstituir nada (para "sabor da época", lá estão as fotografias e os registos filmados dos combates), apenas de oferecer a Cassidy um microfone para o monólogo da sua vida. Dividido em dez assaltos (numerados pela montagem), como se isto fosse um derradeiro combate de boxe. Não há adversário à vista, e nem o realizador nem os espectadores se vêem nesse papel. Mas não quer dizer que não haja adversário: como Cassidy bem sabe, um pugilista luta, em primeiro lugar, consigo próprio. O resto é espectáculo.(Bela personagem, belo filme).