Aqui estamos, com as nossas roupas de hoje

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Há um momento neste texto em que Jorge Silva Melo vai dizer: "Édipo é a verdadeira Felícia Cabrita de si próprio. Toda a gente lhe diz que não investigue, e ele continua a investigar". E por aqui também hão-de passar Cavaco, Soares, Zenha, Salgueiro Maia, os Jerónimos ou a Costa da Caparica.

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Há um momento neste texto em que Jorge Silva Melo vai dizer: "Édipo é a verdadeira Felícia Cabrita de si próprio. Toda a gente lhe diz que não investigue, e ele continua a investigar". E por aqui também hão-de passar Cavaco, Soares, Zenha, Salgueiro Maia, os Jerónimos ou a Costa da Caparica.

Estamos mesmo a falar de "Rei Édipo", a tragédia grega escrita por Sófocles há 2500 anos? Sim, mas o que interessa a Jorge Silva Melo não é a métrica do século V a.C., é a palavra de hoje; não é o poder dos deuses, é o poder do homem; não é a Tebas mítica, é a cidade real, por exemplo, Lisboa.

Assim, o que está a acontecer desde ontem no Rossio é a ocupação do Teatro Nacional D. Maria II por aquilo a que podemos chamar "Édipo, Um Rapaz de Lisboa", 15 anos depois de "António, Um Rapaz de Lisboa", primeiro espectáculo de Silva Melo neste teatro.

E, com um elenco de 40 actores e músicos, a ocupação é completa: bastidores, palco, plateia e camarotes, incluindo o presidencial. É por isso que "o Cavaco não vai poder vir", como diz Jorge. No lugar dele vai estar uma bateria.

Mas não conclua já o leitor que, então, este Édipo não é "o" Édipo. Nunca houve um só Édipo, nem no tempo dos mitos. O que os trágicos gregos fizeram foi compor personagens com partes míticas e partes inventadas conforme a época e a perspectiva de cada um. O "Rei Édipo" de Sófocles nem sequer ganhou o primeiro prémio no concurso de tragédias do seu ano, mas depois Aristóteles resgatou-o para a perfeição, e desde aí tem sido preferido entre todas as tragédias.

A acção não é mais do que uma revelação entre uma noite e outra. Estamos em Tebas, a noroeste de Atenas, onde Édipo é rei, marido de Jocasta. Uma peste contamina o ar e os oráculos dizem que a cidade só será salva quando se souber quem matou Laio, anterior rei e marido de Jocasta, assassinado muitos anos antes. Édipo jura procurar o culpado até descobrir. E o que descobrirá é que está à procura de si próprio. Sem saber, matara o pai e casara com a mãe, cumprindo uma antiga profecia dos deuses. Ao saber, arranca os olhos e abandona a cidade.

Mais de 2000 anos depois, poetas (de Hölderlin a Cocteau), filósofos (de Hegel a Nietzsche), psicanalistas (a começar por Freud), ensaístas (incluindo Eduardo Lourenço) e virtualmente todos os encenadores do mundo se debateram com esta herança. E como muitos quiseram fazer a sua versão, pouco do que é humano será ainda estranho a Édipo.

Talvez lhe faltasse, sim, ser Felícia Cabrita de si próprio. Mas de certeza que alguém já lhe chamara, por exemplo, Sherlock Holmes.

A primeira vez

Jorge Silva Melo estudava na London Film School, em fins dos anos 60, quando viu o "Rei Édipo" de Pasolini. "Era um cinema em Baker Street, o que faz sentido, porque o Édipo é o melhor detective que há, como Sherlock Holmes", conta, à luz de uma manhã de chuva, no restaurante do D. Maria.

Esse Pasolini representou a "descoberta dos clássicos irreverentes, da apropriação dos clássicos", e Jorge queria partilhá-la. "Falei ao Paulo Rocha e fiquei admiradíssimo por ele não gostar." Mas Luís Miguel Cintra gostou. "Veio a Londres num fim-de-semana e fomos ver o filme. Nem sequer tínhamos companhia ainda [o Teatro da Cornucópia, que viriam a fundar]. Mas, à saída, eu disse: 'Isto era giro para ti e para a Glicínia [Quartim]'."

Foi a sua primeira ideia para um Édipo. Depois passaram dez anos.

"Em 1979, fui para a Schaubühne, como assistente do Peter Stein na 'Oresteia' [de Ésquilo], e o Sófocles desapareceu da minha vida. Fiquei mais centrado na rudeza do Ésquilo do que na aparente claridade do Sófocles, que eu admirava sem amar. Sentia-me melhor na pré-história da tragédia, em que o eco de todas as acções tem implicação em toda a gente. Essa 'Oresteia' foi o culminar das preocupações antropológicas que vinham do Édipo de Pasolini. De tal forma, que é perfeita, está acabada, não vale a pena continuá-la. Seria como fazer os Jerónimos agora."

O que Jorge queria era fazer o seu tempo. E os Artistas Unidos, desde 1995, são parte dessa tentativa. Autores sobretudo contemporâneos, actores sobretudo jovens, agilidade de meios.

O clique do Édipo só volta em 2009. "Às cinco da tarde de 23 de Abril", detalha Jorge. "Eu ia fazer o lançamento de um livro do Artur Portela Filho e o Diogo [Infante] telefona-me a dizer: 'Tenho de falar contigo'." Mas na manhã seguinte Jorge partia para Madrid. Então, mal sai do lançamento, vê Diogo à sua frente. "Fomos para um café, ele pousou na mesa uns livros e convidou-me para fazer o Édipo."

Conheciam-se à distância de uma geração. Jorge está com 61, Diogo com 42. Jorge costuma escrever a jovens actores e fez isso com Diogo, era ele um principiante. "Uma longa carta, felicitando-o e criticando. Depois, conheci-o pessoalmente quando ele estava a fazer a '"pera dos Três Vinténs' no Teatro Aberto. Fomos a um chinês e disse-lhe: 'Gostava muito de um dia destes escrever uma peça para ti'."

Quase 20 anos depois, aconteceu.

Na dupla pele de actor e director do D. Maria, Diogo Infante convidou-o para encenar e Jorge decidiu escrever ele próprio o texto.

"Em Madrid, comprei todas as traduções que encontrei. Quando voltei, disse ao Diogo que aceitava com uma condição: 'Não quero traduzir. Quero escrever uma peça para ti a partir do Sófocles. Mas antes gostava de saber por que queres fazer o Édipo, o que te leva a isso'."

Então voltaram a Madrid juntos, para ver um espectáculo que condensava as três peças de Sófocles relativas à dinastia de Tebas: "Édipo Rei" (a descoberta do crime e a queda), "Édipo em Colono" (o exílio, acompanhado pela filha Antígona) e "Antígona" (a revolta da filha contra a cidade).

Jorge detestou a peça, mas a estadia valeu. "Além de levar o Diogo aos meus sítios de Madrid, íamos pensando como fazer o Édipo. O que me interessa é a limpidez que a Sophia via na Grécia e não a curva dos românticos. Quero a escassez do Gastão [Cruz] e do Carlos de Oliveira, e a limpidez da Sophia. E o Diogo estava em plena maturidade para o fazer. Já tinha feito os heróis descendentes do Édipo, como os 'Espectros' de Ibsen e o Hamlet. Era natural que o Édipo lhe aparecesse. E gosto muita da intuição dos actores, talvez por já não ter essa capacidade. Gosto quando dizem: 'Quero fazer este papel'. Esse gesto, esse lado irracional, inconfessável, secreto. Se calhar, há razões que o Freud descobriria para querer fazer o Édipo."

Praça pública

O que Jorge mais detestou no espectáculo de Madrid foi "a supressão do coro". É que, "se tiramos o coro, fica uma tragédia de câmara do século XVII", tudo o que não lhe interessa. "No 'Rei Édipo', não há nada escondido, nada secreto, tudo se passa na praça pública, e é isso que me interessa. Como as palavras do protagonista ecoam na multidão e desaguam na música."

Jorge pensou na música logo que pensou em escrever o texto, e sabia exactamente que música. Estava na sua cabeça desde a estreia da "Oresteia" de Xenakis no Festival de Avignon de 1968.

"A tragédia grega é percussão. Quem é o percussionista genial em Portugal? O Pedro Carneiro. Então perguntei-lhe: 'Queres fazer?' Ele disse que sim. E já chegámos àquela zona de silêncio que adoro, em que não é preciso explicar muito."

Se a música foi a primeira ideia, a primeira imagem foi "uma rampa inclinada". E é isso que se vê e ouve nesta versão de "Rei Édipo".

Ensaio geral: quando as luzes se apagam, já o coro está espalhado pelo teatro. Há um bichanar à nossa volta. Tebas não dorme por causa da peste. O palco ilumina-se e uma rampa sobe para um edifício com três entradas. Pode ser uma praça da Grécia com o palácio ao cimo, como pode ser uma praça de Lisboa.

Édipo irrompe, esbaforido, amarrotado, de camisola interior por baixo do sobretudo:

- Que fazeis aqui, homens de Tebas?

E sois tantos?

Homens, crianças, rapazes.

Esperais o quê?

Pedis o quê?

Nas ruas,

há gemidos, cantos fúnebres, lamentos.

Mas chora o quê

esta cidade

que também é minha?

Fala para a cidade masculina, viril, que agora desagua em direcção ao rei: 20 homens e rapazes com sobretudos e gabardinas, camisas e "jeans", botas alentejanas e botas da tropa. Eles são o coro, e o coro somos nós. Aqui estamos, com as nossas roupas de hoje.

O coro clássico tinha 12. Sófocles aumentou-o para 15. Com Jorge Silva Melo são 20. "Nem respeito, no coro, a atribuição das falas que seriam do corifeu, as dos semicoros, quais as que seriam talvez cantadas, não me interessa a inviável reconstituição, nem a antropologia", explica, num texto incluído no "dossier" de imprensa. "Preferi que a música existisse, viva, criada no momento, música de hoje, de uma cidade, esta cidade, em perigo."

Um clarinete. Adiante um violoncelo. Acima a percussão. A Orquestra de Câmara Portuguesa, dirigida por Pedro Carneiro. Chocalhos, sussurros, corpos que avançam e recuam como uma maré.

E o sacerdote (José Neves) explica a Édipo:

- A terra, seca, não dá flor.

Ao gado vêem-se-lhe os ossos.

Nascem mortas as crianças.

E queima a febre.

É a peste.

A peste.

Amontoam-se os cadáveres.

E os prantos.

Frases curtas. Tac-tac-tac.

Jorge conta, no "dossier" de imprensa, como viu traduções castelhanas, italianas, inglesas, francesas, alemãs e portuguesas (Maria do Céu Zambujo Fialho, António Manuel Couto Viana, os excertos escolhidos por Maria Helena da Rocha Pereira). "Mas não aspiro ao doce verso do classicismo. (...) Não hesito em dar voltas à oratória. Não hesito em repetir e repetir, em sincopar, em entrecortar as orações, em marcar as suspensões. Prefiro aqui o 'stacatto' à ondulação do verso."

Continua o sacerdote, dirigindo-se a Édipo:

- Tu não és um deus,

todos o sabemos,

nenhum de nós o pensa.

Mas és o primeiro dos homens

o primeiro dos homens,

aquele que mais perto chega dos deuses.

Venceste a Esfinge,

a insidiosa,

a cadela

que nos exigia sangue,

com os enigmas que cantava.

A Esfinge, meio mulher, meio leão, aterrorizava Tebas quando o jovem e forasteiro Édipo chegara à cidade, muitos anos antes. O rei Laio fora assassinado, a rainha Jocasta estava viúva e o seu irmão Creonte prometera o reino a quem derrotasse a Esfinge, que, a cada dia, por cada enigma indecifrado, estrangulava um rapaz para o devorar. Édipo foi ter com a Esfinge, e ela perguntou-lhe: "Qual é o animal que de manhã tem quatro patas, à tarde duas e à noite três?" Édipo respondeu: "O homem". Despeitada, a Esfinge atirou-se das alturas. Tebas ficou salva, Édipo tornou-se rei, casou com Jocasta e tiveram quatro filhos. Anos de harmonia até chegar a peste.

E agora a peste só será vencida quando for encontrado o assassino de Laio. Édipo jura encontrá-lo, manda vir Tirésias (António Simão), o cego vidente.

- Tremendo é saber - avisa Tirésias.

Mas, porque o rei tanto insiste, acaba por revelar:

- Tu és aquele que procuras.

Édipo enfurece-se. Como, se nem conhecia Laio?

Ouviu já Creonte (Virgílio Castelo), ouve agora Jocasta (Lia Gama), depois o homem que assistiu à morte de Laio (António Banha) e finalmente o pastor que o salvou, a ele, Édipo, de morrer em bebé, abandonado nas montanhas, com os pés trespassados por um ferro (Cândido Ferreira).

Édipo, à letra "o dos pés inchados", quer a verdade a todo o custo. E de testemunha em testemunha vai até à derrota final.

Ao longo deste crescendo de uma hora e meia, a música é "a acústica do texto", "um borbulhar do mal" desde que a acção começa, numa noite abafada como antes de um tremor de terra, imagina Jorge Silva Melo.

E na manhã seguinte ao ensaio, sentado no restaurante do teatro, o encenador dirá então, com a mais imediata eficácia na ponta da língua: "Édipo é a verdadeira Felícia Cabrita de si próprio. Toda a gente lhe diz que não investigue, e ele continua a investigar. E o que descobre é que é o monstro de si próprio".

O nascimento da vontade

Jorge Silva Melo vê "Rei Édipo" como "uma rápida, concisa, veloz, despida meditação sobre essas três idades do homem" que estão no enigma da Esfinge: "a indefesa infância" de "que restam as feridas nos pés"; "a plena maturidade" de quando a peça arranca; e "a velhice que iremos saber e tanto receamos, queda".

E o seu "Rei Édipo" é uma "conversão" do texto de Sófocles, em palavras sucessivamente limpas.

"Em Julho, gravámos uma leitura da primeira versão, para eu ouvir as palavras na voz dos actores, e passei Agosto a ouvir o CD e a corrigir. Depois, corrigi a parte mais filológica com o José Pedro Serra [especialista em tragédia]."

Por exemplo, Jorge tinha posto as palavras "eu quero saber" na boca de Édipo. "O José Pedro disse-me: 'Impossível. Os gregos não sabiam o que era querer. O querer está a nascer naquele momento da Grécia'. O momento do 'Rei Édipo' é o momento em que a vontade começa, e o José Pedro acha mesmo que em Sófocles a vontade ainda não existe".

O século de Sófocles (496-406 a.C.) é o do esplendor de Atenas, com obras públicas como o Pártenon, e grande expansão cultural, económica, cívica. O Direito está a começar, a cidade afirma-se e a tragédia representa a fractura entre o mundo antigo dos deuses (o da predestinação) e o mundo novo dos homens (o do direito, da vontade, da responsabilidade). Ou seja (como resumem Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal-Nacquet, num dos textos que Jorge passou aos actores): "Em que medida o homem é fonte dos seus actos?"

Cidadão admirado e querido em Atenas, Sófocles escreveu 123 peças. Nas sete que sobreviveram, a vontade humana parece ter um papel mais forte do que no seu antecessor Ésquilo. "Rei Édipo" terá sido representado entre 427 e 425, depois da peste em Atenas. A peste da peça vem daí, do tempo de Sófocles, enquanto a personagem de Édipo vem do que a helenista Maria Helena da Rocha Pereira descreve como "mescla de contos populares: da criança exposta, do descobridor de enigmas, do parricida inconsciente, do filho incestuoso", já tratados antes por Ésquilo.

Que faz Sófocles com tudo isso? Demonstra o poder dos deuses? A cegueira do homem? Ou a grandeza que o faz procurar a verdade a todo o custo? É um debate infindo, o que só revela a riqueza do texto, resume Rocha Pereira.

E a fractura entre mito e presente continua a ver-se neste "Rei Édipo". Por exemplo, "quando ele conta como matou o pai, é uma narrativa, estamos no divã do psicanalista, e o verso é quebrado, com repetições", diz Jorge. Mas isso não acontece no monólogo final. "Foi dos que menos alterei. Tentei manter a máscara trágica. Era preciso dominar a natural emoção do actor com a máscara da palavra, com um discurso mais organizado." Então, no fim, Édipo está de túnica, e o coro continua com as nossas roupas de hoje. "Porque, na tragédia, o coro perdoa, analisa, é nosso contemporâneo. Édipo pode aparecer no fim vestido à grega, mas o coro nunca. Édipo pode ser mais retórico, mas o coro nunca."

É uma bela construção, o coro deste "Rei Édipo", que, quando se junta em palco, é um "maralhal brechtiano, proletário", e dentro e fora de palco se mantém exclusivamente masculino, a ponto de o encenador ter disfarçado a violoncelista de homem. "Esta peça é muito masculina. Quando o Peter Brook a fez, o cenário era um falo de três metros, e isto antes do Viagra. Há aqui um lado de poder masculino, e nesse sentido a Jocasta tem de ser a única mulher. São os homens que têm o destino da cidade."

O coro é "a voz da cidade que está em todo o lado, que engloba o espectador, que se mete com a música, que oscila como folhas ao vento - uma brisa de opinião".

Depois, há as personagens.

Creonte, o cunhado de Édipo, que afinal também é seu tio. "Nunca tinha reparado como este homem desfeito, magoado, sabe resolver os assuntos", diz Jorge. "Falei muito ao Virgílio [Castelo] no Salgado Zenha, que é sempre a segunda figura, quando há a zanga com Soares [em 1980]. Usei muitas imagens destas com os actores. Interessa-me que as imagens sejam rápidas."

Jocasta, por exemplo, "despacha directamente com Apolo, como a Amélia Rey Colaço despachava com o Presidente", compara Jorge. "É dos poderes anteriores e não acredita nos poderes novos. Não precisa dos intermediários da democracia. Para Jocasta, há os deuses e ela."

E Édipo, esse de quem há-de nascer teatro, psicanálise e filosofia, é aquele que vai ficando cada vez mais sozinho. "Como Mário Soares", não resiste Jorge. "Grandeza, isolamento e solidão."

Para um pai real

Vinte anos mais novo, Diogo Infante terá outras imagens, mas nem vêm à conversa, agora, no mesmo lugar onde Jorge esteve sentado. Porque a sua história com Édipo é íntima e desarmante.

"Vi pela primeira vez um Édipo há 20 anos, na Comuna, com o Carlos Paulo e a Cucha Carvalheiro. Eu estava a começar, e o impacto foi grande, muito sensorial." Seguiram-se outros, e quando estava a fazer o alinhamento desta temporada encontrou um espaço aberto. "Como director, achei que fazia sentido revisitar o texto, e como actor se calhar era altura. Perfilava-se como uma personagem natural."

Ao contrário, por exemplo, do Hamlet que encarnou em 2007, no Maria Matos, encenado por João Mota. "Sinto uma intimidade com o Édipo que nunca senti com o Hamlet. Tive muita dificuldade em entender o Hamlet, a sua complexidade. Era um intelectual, um cerebral, vivia naquela angústia de fazer e não fazer. Lembro-me de pensar: '" homem, decide-te! Faz!'. Tinha dificuldade em senti-lo dentro de mim."

E Édipo? "É um homem mais primário, voluntarioso, visceral, um homem de acção. No seu ímpeto, ele não vê, escapam-lhe coisas, e eu também sou assim. Sou capaz de puxar carroças e depois há coisas que me escapam, porque sou rápido, acelerado."

As circunstâncias biográficas são, aqui, decisivas. "Comove-me que este homem queira saber quem é. Durante 34 anos, eu desconheci quem era o meu pai, e isso foi muito determinante no meu crescimento, enquanto homem e actor. Estou muito feliz porque o meu pai vem assistir à estreia, e é um espectáculo que lhe quero dedicar."

Ainda que o pai, sendo inglês, possa não perceber todas as palavras. "Espero não o matar, e não pequei como Édipo, mas também tenho uma relação com o poder que me assusta, porque ter o poder na mão e gerir pessoas exige uma enorme responsabilidade. Estamos tão embrenhados que corremos o risco de não ver. Quero que as pessoas em quem realmente confio me alertem, se for injusto. Algures, neste universo, encontro pontos de contacto com Édipo."

Este Édipo lisboeta é, assim, cerebralmente, um rapaz de Jorge Silva Melo, e, emocionalmente, um rapaz de Diogo Infante.

"Representa um esforço físico muito grande por ser uma personagem tão exigente, com uma componente emocional e vocal muito vasta", diz Diogo. "Tive de me preparar fisicamente, perder peso para estar mais ágil, aquecer muito bem a voz porque a posso perder. Tudo isso me obriga a questionar-me. E eu precisava da ajuda de alguém a quem me pudesse entregar cegamente."

Que essa pessoa era o Jorge foi "muito intuitivo".

Primeiro encontro, há quase 20 anos, na versão de Diogo: "Um dia estava no Teatro Aberto e recebo um postal a convidar-me para almoçar. Lembro-me de os meus colegas dizerem: 'O Jorge Silva Melo! Que honra!' Foi uma conversa muitíssimo agradável. E desde então ficou expressa a vontade de trabalharmos juntos. Ele disse: 'Um dia, vou escrever uma peça para ti'."

Mas antes estava escrito que Diogo programaria uma peça dele. Foi o que aconteceu quando se tornou director do Teatro Nacional e programou "Seis Personagens em Busca de Um Autor", de Pirandello. "Foi tão avassalador que veio despertar em mim a vontade de partilhar esta linguagem do Jorge. Há uma organicidade, os espectáculos vivem de uma generosidade que os actores têm para se colocar à disposição dele. Então, quando pensei no Édipo, em alguém com um olhar contemporâneo, que não se deixasse intimidar pelo classicismo do texto, era o Jorge."

E não se conhecerem bem era bom. "Interessava-me trabalhar com quem me criasse um desequilíbrio, me tirasse do conforto. Como actor, isso é uma dádiva absoluta. Então quando ele me disse que queria escrever, achei que era uma mais-valia."

Que relação criou com esse texto? "É uma linguagem mais recortada, agreste, rude, afastando-se da respiração longa do verso, o que permitia uma apropriação mais visceral. O que as pessoas dizem nos ensaios é: 'Eu percebo tudo!'." De resto, nesta "história quase policial", tratava-se de "humanizar, trazer as personagens de um patamar extraordinário". Jorge disse aos actores: "Tenho de acreditar no que estão a fazer". E Diogo tentou encontrar uma sinceridade.

Quem é o seu Édipo, então?

"Um homem simples, bom, generoso, desconfiado, que pressente coisas que lhe escapam, e há-de ser derrotado pela curiosidade. A metáfora é muito apropriada à condição humana. Todos temos de passar por violência e tragédia para saber o que é importante na nossa vida."

Poder e queda

Ao trazer à luz a culpa de Édipo, Sófocles "força-nos a tomar consciência do nosso íntimo, no qual continuam activos os mesmos impulsos, embora recalcados", achava Freud. A punição de Édipo seria assim a nossa tranquilidade: nenhum homem pode fazer aquilo e escapar sem sofrimento. Ou, por outras palavras, o castigo confirma que aquilo era um crime.

Seja como for, não é a prioridade de Jorge Silva Melo.

"Para mim, o Édipo é a investigação. Não é nada a cena primitiva de todos os rapazes do Freud. É o saber como mal, como desgraça, como as coisas que vivemos hoje. Vale a pena criarem-se tantos químicos? O milho transgénico? A bomba atómica? Édipo é a descoberta de que o saber é uma conquista sobre a noite, mas também uma nova noite. Isso é o que me interessa mais. Como a investigação é um suicídio inexorável: tenho de continuar a saber e caio no precipício."

Já vem de Eva, comer a maçã no paraíso. "E, em vez de ficar em Cannes, veio para a Costa da Caparica." Ou seja, para o reles mundo. "O conhecimento não é uma vitória da claridade sobre a noite."

A Esfinge sabia isso. Em algumas versões do mito, o segundo enigma da Esfinge era: "Duas irmãs. A primeira gera a segunda e a segunda gera a primeira." São a manhã e a noite.

A noite traz em si a manhã, mas a manhã também traz em si a noite.

Quanto a saber se o crime foi dos deuses e o castigo será do homem, não é matéria deste encenador. "Édipo cega-se, mas para ver mais. Não se mata, é um dos poucos na tragédia que não se matam. Cega-se para continuar a investigar, para saber a verdade do mundo. Há nele um lado monacal: vou para a Cartuxa, não me mato."

Jorge acha que Édipo "é um Salgueiro Maia e não um Melo Antunes", ou seja, tem uma rudeza que não é de intelectual. E lembra a tradução que Manuel Bandeira fez do "Édipo" de Cocteau na resposta à Esfinge: "É o homem, ora essa". Esta "ingenuidade um pouco saloia" é uma vantagem de Édipo, diz Jorge. "Depois, ele vai avançando para o Hamlet, mas no início é o homem solar."

Nietzsche viu em Édipo a prova de que a natureza só entrega os seus segredos quando é forçada: "Aquilo que o mito parece de facto sussurrar-nos é que a sabedoria, e a sabedoria dionisíaca em particular, é um abominável crime contra a natureza; qualquer pessoa que, através do seu conhecimento, precipite a natureza para o abismo da destruição, terá de experimentar a dissolução da natureza".

Que diz Jorge?

"Também sou pelo alcatrão contra as aldeias. Não sou nada ecologista. A cidade mata a terra. Estou-me nas tintas para as pegadas dos dinossauros na Lourinhã, prefiro a auto-estrada." De novo, a conclusão é: "Qualquer conquista é uma derrota". Ou, na frase de Walter Benjamin: "Qualquer catedral são milhares de escravos".

Mas a ideia favorita de Jorge, entre os vários textos que escolheu para os actores, quando estavam a preparar o espectáculo, é de Hegel, a de que o espírito se vai revelando e "a consciência experimenta o outro lado", "aquilo que também é seu".

Num texto admirável incluído no livro "Tempo e Poesia", Eduardo Lourenço escreve: "Édipo pensou que uma fórmula era a solução. E ela era só uma dificuldade. Que bastava dizer uma só vez homem e o terror e os monstros se sumiriam para sempre. Foi o primeiro humanista sincero mas abstracto. A verdade é que todos os monstros voltam sempre. O combate com o anjo é de todas as horas". A cada hora, diz Lourenço, o mundo é o que fazemos dele. E isto é acreditar no homem.

"Sim", concorda Jorge. "É o homem. O homem traz o bem e o mal, e o sentimento trágico é encontrar uma única palavra para isso, bem e mal, vida e morte." Noite e manhã.

Jorge vê Édipo sozinho. É uma história de solidão e os deuses não lhe interessam muito. "As profecias estavam certas, mas no mito. O importante é como o poder se desfaz."

Então, com a manhã a acabar lá fora, a última pergunta é: para um encenador que está no centro da cidade, do país, do seu tempo, que tem poder, que determina o que as pessoas vêem, como Jorge Silva Melo, o que é que esta tragédia sobre o poder ensina?

"Do que a peça fala é da queda e acho que não consigo falar disso porque ainda me aguento nas canetas. Creio que o meu destino não é trágico, no sentido de cada acto ser o negativo de si próprio. Mas, como Sófocles diz, só no fim da vida se pode saber se fui feliz."

Édipo será sempre nosso contemporâneo.