O cinema xunga e os consumidores de “junk food”
Ao longo de quarenta anos que levo a fazer filmes, nunca me passou pela cabeça responder a um crítico. Por duas razões: primeiro, porque fui crítico e frequentemente muito cáustico com filmes e cineastas que entendia não merecerem nem o epíteto nem a oportunidade. Depois, porque acho que a legitimidade e competência dos críticos devem ser julgadas pelos leitores e não pelos realizadores que, eventualmente, se sintam injustiçados.
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Ao longo de quarenta anos que levo a fazer filmes, nunca me passou pela cabeça responder a um crítico. Por duas razões: primeiro, porque fui crítico e frequentemente muito cáustico com filmes e cineastas que entendia não merecerem nem o epíteto nem a oportunidade. Depois, porque acho que a legitimidade e competência dos críticos devem ser julgadas pelos leitores e não pelos realizadores que, eventualmente, se sintam injustiçados.
Se hoje decido abrir uma excepção, não é porque entenda que me deva defender do que Vasco Câmara aqui escreveu na semana passada (felizmente para mim, infelizmente para ele, os meus filmes têm-se mostrado imunes à sua opinião, o que me desgosta mais por ele do que por mim), mas porque acho que devo defender alguns dos meus colaboradores, que ele insultou com ligeireza, e porque entendi que devia, pelo menos, tentar o exercício de clarificar algumas coisas.
Não conheço VC de lado nenhum: não sei se é alto ou baixo, magro ou gordo, velho ou novo. Mas percebo, pelo que escreveu para justificar a bola preta que disparou como uma bala ao coração do meu último filme, "A Bela e o Paparazzo", que é alguém movido por razões pessoais e por um estranho e doentio espírito de "révanche". VC fala freneticamente de mim, dos meus gostos perversos (ousei proclamar que o melhor filme português é a "Canção de Lisboa", a que ele chama "O Pátio das Cantigas"!), das minhas opiniões blasfematórias (afirmei que Godard traiu toda a gente, por exemplo), e esquece-se de falar do filme, pela simples razão que se esqueceu de olhar para ele.
Em 1963, Godard decidiu responder nas páginas dos "Cahiers du Cinéma" aos críticos que arrasaram o seu fi lme, "Les Carabiniers". Devo confessar que essa lembrança acabou por me decidir a tomar a palavra, sobretudo para defender os meus colaboradores: o argumentista, Tiago Santos, o talentoso autor dos diálogos a que ele se refere com desprezo, os fantásticos actores, que acreditaram na história e defenderam o filme com brilhantismo; e também o público, que ele trata de consumidores de "junk food", só porque tem acolhido com agrado esta "comédia romântica". Segundo a sumária convicção de VC, o filme é "oportunista" e "xunga", e "os planos têm na memória anúncios para telemóveis e carros".
Sinto-me impotente para o contradizer e, sobretudo, para rebater argumentos quando ele os dispensa. Mas, de súbito, tudo se iluminou no meu espírito: o ódio de VC a tudo o que faço e digo tem uma origem remota mas persistente: eu, que, nos anos 80, defendi Godard contra a fúria saloia de Abecassis, a propósito de "Je Vous Salue Marie", atrevo-me agora a atacá-lo! Mesmo que VC declare que não tem uma relação de fidelidade incondicional com o Mestre, há aqui um ressentimento freudiano: ele sente que eu matei o Pai! Ora, do que eu acuso Godard, que se tornou um eremita amargo, sentencioso e moralista, é de não ter tomado o poder. Os pintores impressionistas, os realizadores neo-realistas, a geração do Vietname americana, todos eles combateram os bonzos do passado e tomaram o poder, como lhes competia. Godard deixou os seus seguidores num impasse, e refugiou-se em Genebra - como fez Chaplin, quando percebeu que, na Suíça, os impostos eram mais leves -, a fazer filmes para o umbigo, com apoios oficiais.
O que eu gostei em Godard foi a profissão de fé que ele adoptou quando, em 1966, levou Samuel Fuller a dizer, num momento memorável de "Pierrot, le Fou", que "um filme é como uma batalha (onde há) amor, ódio, acção, violência e morte. Numa palavra: emoção". Onde é que isso está, hoje (a emoção), no cinema que ele faz e VC defende? Quem traiu o quê? Depois, VC decidiu que eu só gosto dos filmes que são grandes sucessos de bilheteira, quando os filmes de Clint Eastwood estão longe de ser "blockbusters" e os meus autores preferidos, hoje, são cineastas como Paul-Thomas Anderson ou Jason Reitman, Nanni Moretti ou Kiarostami. O que eu defendo é que o cinema marginal, que ele tanto preza, surge mais facilmente nos países onde existe uma indústria (leia-se: nos EUA), do que na Europa, onde se instalou uma ideia pervertida do que é o "cinema de autor" e onde o Estado passou a substituir-se ao mercado.
Sempre aprendi que não se deve gastar cera com ruins defuntos nem perder tempo com críticos ignorantes, mas não resisto a sugerir a VC que deixe de bolsar aleivosias sobre os profi ssionais que me ajudam a fazer os fi lmes, e que tente pôr os neurónios a funcionar: o ódio impede-nos de ver as coisas como elas são. Deixo-o com o conselho que o meu mestre Stendhal deu aos seus leitores: "Tentem não passar o resto das vossas vidas a odiar e a ter medo".