Gil Scott-Heron nunca esteve tão vivo
É um título inteligente: "I'm New Here". Não porque seja realmente novo - desde o final dos anos 60 que Gil Scott-Heron anda por aí, influenciando sucessivas gerações -, mas porque o álbum agora editado tem realmente qualquer coisa de renovado. Não se trata de redenção perante uma vida com demónios à solta, mas de tomada de consciência do que já foi, como se só assim fosse possível habitar o agora e perspectivar o futuro.
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É um título inteligente: "I'm New Here". Não porque seja realmente novo - desde o final dos anos 60 que Gil Scott-Heron anda por aí, influenciando sucessivas gerações -, mas porque o álbum agora editado tem realmente qualquer coisa de renovado. Não se trata de redenção perante uma vida com demónios à solta, mas de tomada de consciência do que já foi, como se só assim fosse possível habitar o agora e perspectivar o futuro.
Não é um regresso. É um recomeço. De um novo Gil Scott-Heron, aos 60 anos. Sim, isso está no verbo, mais meditativo do que reivindicativo. E na voz, profunda, cavada, vivida. E também, e talvez essa seja a maior das surpresas, no edifício sónico, combinação de gospel, blues, sugestões jazzísticas, impulsos rítmicos deformados de hip-hop e electrónicas nocturnas com conexões a linguagens urbanas como o dubstep, tudo isto em canções dilatadas e descarnadas, nas quais a voz e a poesia têm espaço para se evidenciarem.
Durante muitos anos era apresentado como o "Bob Dylan negro", pela costela política. Mas sempre foi mais directo ao assunto, ou não tivesse escrito uma canção sobre segregação racial na África do Sul chamada "Johannesburg"; ou outra sobre alcoolismo, "The bottle." "Quando comecei a minha audiência não tinha muita paciência" - lembra, com alguma ironia, numa entrevista dada por estes dias -, "não havia espaço para grandes subtilezas."
No final dos anos 60 e primórdios dos 70, num período de lutas cívicas, convulsões económicas e mudanças sociais aceleradas, poucos conseguiram capturar as contradições de um país, a América, como ele. Inicialmente através da escrita - publicou o primeiro livro, "The Vulture", aos 19 anos. Mais tarde, quando ia publicar o terceiro livro, e depois de ter conhecido o músico e produtor Brian Jackson que o viria a acompanhar durante mais duas décadas, entendeu que o método de comunicar teria que mudar e a soul, o funk ou o jazz tornaram-se no veículo de difusão da sua paixão: a poesia.
Nesse período debitava acima de tudo para audiências negras, aprendendo com a "spoken-word" do poeta e activista Amiri Baraka ou com o jazz de Coltrane e Miles Davis. Mais tarde, no final dos anos 70 e primórdios dos 80, quando o hip-hop irrompeu, foi considerado um dos pioneiros do género. Grupos como Public Enemy ou Disposable Heroes Of Hiphoprisy citavam-no e novas gerações, de todas as cores, redescobriam-no.
Agora a sua América tem um presidente negro e a sua vida reflectiu muitas das patologias sobre as quais escreveu: as drogas, o álcool, as prisões, a banca rota. A última década passou-a entre prisões, por posse de estupefacientes, clínicas de desintoxicação e concertos - pelo menos aos que não faltou.
Há 16 anos que não lançava um disco de originais. É tempo de recomeçar, despistando as expectativas, parece querer dizer. O esforço não foi em vão. Hoje estará mais próximo de Tom Waits do que de Bob Dylan, de Kanye West do que dos Public Enemy.
"I want to make this a special tribute
To a family that contradicts the concepts
Heard the rules but wouldn't except
And woman-folk raised me
And i was full-grown
Before i knew i came from a broken home"
São estas as suas primeiras palavras, em "On coming from a broken home (pt.1)", como se quisesse desde logo anunciar ao que vem, evocando a família, a avó Lily Scott com quem aprendeu a tocar piano, os primeiros anos de vida. É um disco em que olha mais para si do que para o mundo de injustiças à sua volta. Gil Scott-Heron fá-lo com a verdade habitual, mas também olhando para os que o rodearam, com ironia, sem arrependimentos. "Being blessed is not just being able to float on air, i'm saying... if you've gotta pay for things you've done wrong, ah, i got a big bill coming, at the end of the day", lança em "Being bless".
"Ela era uma mulher diferente", contou, referindo-se à avó, que viu morrer, no Sul dos EUA, onde ambos viviam, quando tinha 13 anos. "Ensinou-me a não esperar que as pessoas descobrissem o meu pensamento, mas a exprimir-me por mim próprio. Quando penso nela, vejo-me a mim."
Depois da morte da avó, mudou-se para o Harlem, Nova Iorque, onde ainda habita. Foi aí, na Universidade Lincoln, que conheceu outra personalidade importante na sua vida, o poeta e escritor Langston Hughes. "Com ele aprendi que podemos afirmar ideias, sem medo, desde que tenhamos um objectivo."
Embora seja uma digressão autobiográfica, "I'm New Here" contém canções que nem sequer são da autoria de Scott-Heron. Mas apropria-se delas com facilidade desarmante, como acontece com "I'll take care of you", de Bobby Bland, ou "Me and the devil", de Robert Johnson. Mas a maior surpresa é a canção que dá título ao álbum, da autoria de Smog, outra designação para Bill Cahallan, um dos melhores autores de canções da geração que tem vindo a renovar a folk americana.
Heron entoa "no matter how far wrong you've gone, you can always turn around" como se referenciasse o presente, apresentando-se ao mundo através da canção de Smog, tal como parece lembrar o passado quando declara "i had an ego on me the size of Texas. I forget. Does that mean big or small?". Este é um cantor e poeta que, sem esconder a voz provocatória e insurrecta, prefere alegorias, alusões, a narração existencial.
"Because i always feel like running
Not away
Because there's no such place
Because if there was i would have found it by now
Because it's easier to run
Easier than staying and finding out you're the only one
Who didn't run."
Diz ele, como um velho cantor de blues habitando uma paisagem pós-industrial, envolvido por uma fina camada electrónica, sons que vão e vêm, misteriosos, não muito distantes das atmosferas nebulosas de Burial, o jovem produtor londrino que surpreendeu o mundo com os álbuns "Burial" (2006) e "Untrue" (2007), ou da grande revelação do ano passado, os também britânicos The xx (estes estão, aliás, a preparar uma remistura para um dos seus temas).
O responsável por estas incursões sónicas, e pelo resgate de Gil Scott-Heron ao esquecimento, é o inglês Richard Russell, produtor e responsável pela XL Recordings (casa dos Radiohead, M.I.A., Vampire Weekend ou White Stripes), que o foi visitar à prisão de Rikers Island em 2006. Apresentou-se, disse-lhe que o admirava há mais de vinte anos e queria produzir um disco seu quando saísse da prisão. Em Junho de 2007, quando Scott-Heron foi libertado, Richard Russell contactou-o em Londres e um acordo foi selado.
As gravações iniciaram-se em Janeiro de 2008, depois de uma última passagem por uma casa de correcção em Manhattan. Durante doze meses, em Nova Iorque, os dois entregaram-se a um disco que acaba por sair num contexto de cultura derivativa, fragmentada, onde parece já não existir interesse por grandes narrativas e pela audição de álbuns pensados como tal. Uma das suas maiores forças advém, precisamente, daí: apresentando-se a contra-corrente, mostrando que ainda é possível criar obras que se confundem com a vida, de maneira orgânica, sem deixarem de ser apelativas e sonicamente desenvolvidas.
Hoje as palavras de "The revolution will not be televised", a sua canção mais icónica, já não têm o mesmo efeito. Mas a revolução continua a fazer-se. Agora na net. Nos últimos meses o álbum tem vindo a ser desvendado aos poucos, circulando por blogues e redes sociais, criando expectativa junto de públicos que provavelmente nunca tinham ouvido falar de Gil Scott-Heron.
É ainda o poeta humanista, capaz de erguer a voz na direcção dos poderosos, consciência dos espoliados, mas também já não é essa figura desenhada a régua a esquadro que nos habituámos a fantasiar. O disco desenvolvido com Russell é admirável por isso: devolve-nos pedaços de uma figura romantizada, ao mesmo tempo que a complexifica, dando-nos a ver, afinal, alguém mais humano, mais próximo de nós.
A existir uma mensagem em "I'm New Here" seria qualquer coisa como: Gil Scott-Heron manda dizer que está tudo bem. Assim. Se mais. Depois de ter dissecado a sua existência, fez as pazes com eventuais erros do passado, não se arrepende de nada, agradece a vida que teve e está pronto para muito mais. Bem-vindo.
"If i hadn' been as...
As eccentric, as obnoxious
As arrogant, as agressive
As, introspective as, selfish
I wouldn't be, i wouldn't be who i am..."
Dj Ride
músico
Comecei a ouvi-lo mais a sério quando punha música num clube das Caldas da Rainha. Como era DJ residente comecei a comprar mais discos. Um dos sócios aconselhou-me 'The Revolution Will Not Be Televised' [de 'Pieces Of a Man']: ainda é o meu disco preferido dele. A voz é inconfundível e as canções só com voz e percussão [dos primeiros discos] distinguem-no. Aliás, cheguei a samplar a percussão dessas faixas - a percussão dos discos de 'spoken word' é extremamente samplável. Vejo Gil Scott-Heron como um nome fundamental da 'black music' de intervenção, mas ligo sempre mais ao instrumental - vai mais de encontro ao que faço. Apesar de fazer música electrónica, venho da música urbana, do hip-hop, e na altura aquilo fascinou-me porque a linha que separa as rimas dele das do hip-hop é ténue. É um precursor, como os Last Poets, e há imensos rappers que o citam como influência. A última vez que passei um disco dele num set foi no 25 de Abril. Achei apropriado.
Rui Miguel Abreu
jornalista
Nos primeiros discos ele é um poeta com um batuque por baixo. Isso interessa-me, mas nunca o isolei como poeta. Para mim é um músico. Pode ser caracterizado como um artista negro ligado à tradição do jazz que emanou da luta pelos direitos civis, como voz da consciência do gueto, alguém que aponta o dedo. Aliás, chamam-lhe 'o Bob Dylan negro', mas não foi o peso das palavras que em encantou. Foi a capacidade de colocar as ideias por cima de um Groove jazz e funk. Os meus discos preferidos são os da década de 70, com o Brian Jackson. A ideia de que é um precursor do rap é uma ideia construída 'after the facts'. Duvido que a primeira e a segunda vaga de rappers soubessem quem ele era - ele era conhecido entre músicos de jazz, era conhecido por uma elite. Só quando o rap tomou consciência de si mesmo é que começou a investigar o passado e começou a procurar raízes - e aí o trabalho dele tem muito a ver com aquilo em que o hip-hop se transformou. Não teve um papel importante nos primeiros passos do hip-hop, mas o Chuck D e o Mos Def citam-no como influência.
João Santos
editor (MBari)
O disco chave é 'Winter In America' [1974], que ocupa um espaço que eu não sabia que existia: uma tangente entre a soul e o jazz espiritual. É um disco intemporal, marcado pelo som do Brian Jackson, em que já há um desagregar da esperança, em que se diz que já não há nada a salvar. Para quem trabalhou em lojas de música como eu, os discos dele eram um horror para pôr nos escaparates: nunca sabíamos sob que género os colocar. Pouco depois de ele editar a canção 'The Bottle' [1974], Joe Battan fez uma versão super latina da canção. Nos anos 90 ela voltou a ser editada em maxi, porque os DJs descobriram que funcionava bem na pista. Mas é uma canção sobre aborto, álcool e prisão. O que é curioso é que a vida dele nega a obra dele. Há uma altura, depois dos assassinatos de [J. F. ] Kennedy e [Martin] Luther King, em que ainda há esperança nas palavras dele, nas crianças e na família, e ao mesmo tempo há a identificação de todos os problemas da comunidade negra, como se ele estivesse a dizer: 'Os nossos filhos é que vão sofrer com isto'. E depois faz uma canção como 'The Bottle', é apanhado a conduzir bêbedo e com crack. Percebemos que ele não era um profeta mas uma pessoa - na música popular não há heróis. Ele pregava sobre os problemas e depois praticava os problemas, mas não assumia que os vivia. Mas sobreviveu e só isso é impressionante. Ouvi-lo dá vontade de ser músico, preto e ostracizado.
Valete
músico
Conheci-o num programa da MTV do início da década de 90, 'Yo MTV Rap'. Falavam do trabalho dele e da influência que teve no rap, passavam muitas coisas dele, sendo que a que passava mais era 'The revolution will not be televised', claro. Mas quem me mostrou um álbum completo dele foi o meu tio. Ele deu uma coisa aos rappers americanos: o 'Reflections', de 1981. Tinha um som chamado 'Gun', muito bom. É a maior relação que tenho com o Gil Scott-Heron: havia momentos que eram quase rapados. Ele deu uma coisa aos rappers americanos: era um delegado dos Black Panthers, representava uma comunidade. Muita da consciência social que muitos rappers ganharam mais tarde vem dele, do que ele já andava a dizer há muito. Na altura, em Portugal, era difícil encontrar música negra americana que não fosse 'mainstream'. Então, o meu imaginário alternativo vem dele: ele acreditava poder criar-se um mundo alternativo sem os grandes 'media' que manipulam a consciência das pessoas, acreditava que temos de ser nós a construir o nosso mundo e eu ainda acredito nisso.