De filósofo para filósofo
Elzbieta Ettinger, autora de "Hannah Arendt e Heidegger", era judia, sobreviveu ao Holocausto. Em Varsóvia, fugiu do gueto pouco antes do seu apagamento. Emigrou para os EUA depois de dissabores com o governo pró-soviético polaco. Ajudou a erguer no MIT o "Program in Writing and Humanistic Studies". Neste livro, polémico, usou cartas, guardadas em arquivos americanos e alemães, da correspondência entre Hannah Arendt e Martin Heidegger. Correspondência a dois, a que se havia de juntar Elfride mulher de Heidegger, Blucher (segundo marido de Hannah, alemão exilado por razões políticas) e ainda o existencialista Jaspers, mentor de Hannah, amigo dos dois. Depois de este livro ter sido editado, a correspondência seria integralmente publicada.
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Elzbieta Ettinger, autora de "Hannah Arendt e Heidegger", era judia, sobreviveu ao Holocausto. Em Varsóvia, fugiu do gueto pouco antes do seu apagamento. Emigrou para os EUA depois de dissabores com o governo pró-soviético polaco. Ajudou a erguer no MIT o "Program in Writing and Humanistic Studies". Neste livro, polémico, usou cartas, guardadas em arquivos americanos e alemães, da correspondência entre Hannah Arendt e Martin Heidegger. Correspondência a dois, a que se havia de juntar Elfride mulher de Heidegger, Blucher (segundo marido de Hannah, alemão exilado por razões políticas) e ainda o existencialista Jaspers, mentor de Hannah, amigo dos dois. Depois de este livro ter sido editado, a correspondência seria integralmente publicada.
Hanna Arent (1906-1975), ao contrário de muitos outros judeus askenasy que possuíam, como recurso, além da língua alemã, o yiddisd ou até o hebraico (língua sagrada dos textos), possuía como língua materna o alemão. Para ela, jovem cosmopolita, a questão judaica "'era uma chatice'". Oriunda de um meio secularizado, ao contrário de Heidegger (modesto filho de camponeses católicos devotos), possuía como língua materna uma língua impossível de se desenraizar, vínculo indefectível. Já depois da guerra, em 1964, perguntar-se-ia retoricamente, numa entrevista: "o que é que resta? Resta língua materna". A sua, a única, a língua da metafísica, a língua de Heidegger, o amante, a língua do "inimigo", a sua, aquela onde sente que habita, para sempre. "Que fazer? Mesmo assim não foi a língua alemã que se tornou louca. E em segundo lugar, nada pode substituir a língua materna" - apesar de Arendt, nos EUA, ter tido carreira universitária brilhante, ter escrito em inglês e editado em inglês as suas principais obras; se bem que um dia, do outro lado do Atlântico, estremecesse por não se lembrar, de repente, de uma palavra comum que trazia debaixo da língua: "bacon" em alemão.
Arent exilou-se em 1933. Saiu da Alemanha, passou por Praga e Genebra, instalou-se Paris; finalmente, em 1941, os EUA (terra que Heidegger desprezava por ver aí o triunfo do materialismo e da tecnologia, tão contrários à sua cabana na Floresta Negra). O que (lhe) aconteceu em 1933? Embora já tivesse anteriormente ponderado a possibilidade de abandonar a Alemanha, a pedra de toque terá sido o Discurso de Posse de Heidegger como reitor da Universidade de Friburgo, a sua declaração pública de lealdade a Hitler e identificação com a ideologia nazi, assim como a filiação no partido. Cortou relações - e ainda não tinha, nem teria, conhecimento, entre outras coisas, de uma missiva do filósofo escrita em 1929, só descoberta em 1989, a um alto funcionário do Ministério da Educação: "ou damos alento à nossa vida espiritual alemã (...) ou ela ficará à mãos de uma crescente judaização".
A correspondência trocada entre os dois tem três momentos. O primeiro: os anos da paixão (1925/30). Conheceram-se em Marburgo. Ele tinha 35 anos, casado, pai de dois filhos, professor na Universidade, estava a terminar o manuscrito de "O Ser e o Tempo", obra capital da filosofia e cuja laboração Hannah, amante lisonjeada, acompanhou. Ela tinha 18, era a aluna mais brilhante de um Heidegger por todos idolatrado enquanto professor e filósofo: colocava um problema e depois, aos poucos, desconstruía-o, depurava-o até onde renascesse o ser. A segunda fase da correspondência desenvolve-se entre 1950 e 1965. Heidegger está amargo e desiludido, é afastado da universidade por nunca se ter retratado (seria reconhecer o erro). Orgulhoso, armadilha-se na floresta, qual raposa enroscada na sua armadilha.
Nova fase é a que se desenrola até 1975, em que um vínculo espiritual serno e profundo renasce. Hannah voltou várias vezes à Alemanha, até como directora de investigação da "Comissão para a Reconstrução da Cultura Judaica Europeia". Reencontram-se em 1950. Ele convenceu-a de que as acusações de anti-semitismo eram difamatórias. "Aliviada", Arendt tornar-se-ia na sua embaixadora no mundo e pugnaria pela reabilitação. Promoveu, acompanhando, a edição das obras de Heidegger nos EUA, e muito mais, num período negro da reputação deste. Auto-ilusão? Jaspers, que não reviu Heidegger, escreveu: "'o meu inimigo espiritual' era incapaz de apreender até que ponto falhara como ser humano".
Traços recorrentes, apesar de matizados pelo tempo e circunstâncias: a fascinação absorvente de Hannah, a sua idealização submissa do filósofo e denegação do envolvimento deste ao regime nazi, paralela à propensão dela ao auto-engano e submissão a um lugar "imutável" de aprendiz, e sem a auto-estima que o reconhecimento internacional das suas obras de filosofia política ("As Origens do Totalitarismo", por exemplo) lhe granjeava. Ela não cessa de relembrar os "velhos tempos" de Marburgo, a importância na estruturação do seu pensar. Heidegger revela-se na correspondência manipulador nato, mentiroso até, dissimulado. A certa altura, já no pós-guerra, em carta ao marido, Hannah escreve: "Heidegger mente descaradamente, onde e quando e sempre que pode". Porém ela sempre precisou de se representar sempre como a mulher da vida de Heidegger, aquela que o teria compreendido como ninguém. Ilusão (ou não) que ele acalentou.
Cinquenta anos - amor e cumplicidade, inextirpável - de filósofo para filosofo