António-Pedro Vasconcelos: "Sou um dissidente do cinema europeu"
"A Bela e o Paparazzo" é uma experiência nova na carreira de António-Pedro Vasconcelos - a comédia. É um regresso ao cenário alfacinha do "pátio das cantigas". Uma homenagem à comédia portuguesa dos anos 40, agora com uma intriga recortada no dia-a-dia de uma vedeta de telenovela perseguida por "paparazzi" e que sonha com uma carreira diferente para a sua vida de actriz. Com o seu novo filme, António-Pedro Vasconcelos continua também a traçar o seu retrato do país. E prossegue, por outro lado, na defesa de um modelo para o cinema português que encontre uma forma de chegar ao público e lhe proporcione a salvação possível através da ficção.
Tem dito que só a ficção nos pode salvar. Acha que a comédia nos pode salvar melhor, no estado em que o mundo está?
Não necessariamente. A comédia é um género tão importante como qualquer outro. Trata-se, obviamente, de fazer coisas, em comédia, que tenham qualidade e sejam pertinentes. Há um lado de comédia, por exemplo, em todos os filmes do Chaplin e do Capra, dois dos homens que mais fizeram, nos anos 30, sobretudo no período de crise mundial que viria a desembocar na 2ª Guerra Mundial, para impor os valores do humanismo e da democracia. E nós temos a tragédia e a comédia grega, para além de Shakespeare e de Molière. E o Howard Hawks, o Billy Wilder e o De Sicca, sem esquecer o maior de todos, o Renoir, que foram autores que alternaram a comédia com o drama ou filmes de aventuras.
A comédia é um género tão nobre como outro qualquer. Durante o fascismo, os únicos filmes que, de facto, conseguiram abrir uma brecha no regime foram as comédias, sobretudo as primeiras - o filme português de que mais gosto é "A Canção de Lisboa" [1933], é uma obra-prima, e quando a gente pensa que foi feito naquela altura... E depois, "O Pátio das Cantigas" [1942], "O Pai Tirano" [1941], etc. Mas mesmo as comédias românticas do Arthur Duarte, sobretudo através do António Silva, conseguiram abrir uma brecha, permitindo ao público ter a percepção de que os valores sagrados que o regime queria impor eram de uma enorme fragilidade. O facto de a Europa ter perdido esse sentido da comédia é em grande parte responsável pela nossa decadência. Não é que seja um género que eu preze em particular. É a primeira vez que o faço. Mas já há muito tempo que o queria experimentar...
Está satisfeito com o resultado da experiência?
Só poderei responder a isso quando o filme fizer a sua carreira nas salas. Costumo dizer que a sala faz parte da banda sonora. O filme só está pronto quando houver a respiração da sala. Numa comédia, então, isso é evidente, porque o riso tem uma expressão física e colectiva. A emoção é retraída, mas o silêncio também se ouve. O único dom que é exigível ao cineasta é antecipar a reacção do público. Se ele não tiver a percepção antecipada de como o público vai reagir, não tem o "timing" justo das cenas. Nisso os americanos eram os maiores - o McCarey acima de todos, e o Capra. E o Lubitsch, antes de todos. Eu não posso saber exactamente, antes de o filme ser exibido nas salas, se falhei ou acertei. Mas estou bastante satisfeito com o resultado. Fazer comédia, no essencial, não é muito diferente do resto. É mais arriscado, porque há uma parte na comédia romântica que deve suscitar o riso. E há duas coisas patéticas para um realizador, que não desejo a ninguém: é fazer uma cena para rir e o público não ri; mas há uma coisa ainda pior, que é fazer uma cena que não é para rir, e o público ri! Espero que isso não me aconteça. No meu filme, acho que há um equilíbrio, que me satisfaz, entre o lado da comédia e o da comédia romântica, como quando o António Silva fazia as despesas da comédia e a Milu fazia a parte romântica.
Em "A Bela e o Paparazzo", homenageia a comédia portuguesa dos anos 40. Parece-lhe possível transpor esse modelo para o nosso tempo? A comédia dessa época era muito subsidiária de um contexto social e político bem definido...
A comédia dos anos 40 é irreverente e subversiva, mas de uma maneira muito subliminar. Não é por acaso que o género acaba quando a base social do salazarismo acaba, também. Já não é possível rir com aquilo. O que é que a comédia nos diz, qual é a mensagem do salazarismo? É que não há luta de classes e que, pelo contrário, é até possível a aliança de classes: uma menina, que é costureira, pode casar com um barão ou com um milionário... Quem subverte isso é o António Silva, quando mostra que isso só se consegue com aldrabices. E não é por acaso que o esquema da comédia sobrevive, depois, no melodrama. Pega-se exactamente nas mesmas situações, só que, a partir dos anos 50, as coisas correm mal. Então há uma pirueta no fim para as coisas correrem bem. Mas fica sempre a percepção de que isso é falso. A comédia perde a sua razão de ser.
Mas eu não estou a copiar um modelo, isso não é possível. Estou a fazer uma homenagem a um género que se perdeu. Se reparar bem, não há nenhuma transposição. Ela [Mariana - a Bela] e ele [João - o Paparazzo] são praticamente do mesmo estrato social. Não há ali esse tipo de problema. A grande dificuldade que tive - e eu não sei quantos mais filmes vou fazer, já não sou jovem e, por outro lado, em Portugal fazer filmes é uma coisa altamente aleatória, não se pode programar e projectar a nossa vida - foi naquilo que o Chaplin definiu de uma vez por todas quando disse: "A comédia é a vida em plano geral; a tragédia é a vida em grande plano". Nos primeiros dias de filmagens, tive alguma dificuldade em acertar com a objectiva - a que distância é que vou filmar as coisas, que "découpage" vou fazer?...
Como é que encontrou o registo certo?
Acertei logo ao fim dos dois, três primeiros dias, porque a gente sente no "plateau". Mas sente com alguma dificuldade, porque, hoje em dia, vemos o filme através do vídeo, no "video-system", que é ultradeficiente. Se há uma coisa em que se tem de inovar e progredir, é aí. Temos uma percepção muito deficiente, na qualidade, no tamanho e no enquadramento da imagem. Vamos vendo o filme como se estivéssemos a filmar para a televisão, e não é a mesma coisa. Essa é a grande armadilha. Dantes víamos os "rushes" em projecção, e um bom filme ia sendo montado aí. Este também vai sendo montado na sala, por um montador, que nos vai dando eco: "Estás a filmar muito assim ou assado". Um bom montador dá-nos algumas noções de como a coisa está a correr. Há duas cenas, filmadas no início, em plano geral, a que acho que faltam planos: é a cena da novela e a segunda cena em casa. Mas há cenas que me deixaram satisfeito com o resultado, duas ou três que acho que têm o "découpage" e o "timing" perfeito, que é o da comédia. Eu tinha a comédia, mas tinha também o melodrama. Na terceira parte do filme, desde que ele [o Paparazzo] tem que confessar quem é, entramos no melodrama. E o melodrama já exige um "découpage" mais cerrado, e já permite fazer grandes planos. Na comédia, é mais difícil fazer grandes planos.
O Nuno Markl está no filme com a sua própria "persona" pública bem conhecida. Foi uma escolha propositada? Não é um risco trazer para uma ficção alguém que não vem fazer uma personagem, mas que transporta para ela a sua imagem já muito marcada?
O Nuno Markl foi um recurso - e ele sabe-o. Mas foi um óptimo recurso.
Mas, se fosse o Bruno Nogueira, manter-se-ia a mesma situação...
Seria o mesmo registo, com as suas diferenças, claro. O "timing" deles é diferente. O Nuno Markl tem um lado mais alucinado, entre o Peter Sellers e o Groucho Marx. O Bruno é um humor mais lento. Por exemplo, na cena em que ele enumera os tipos que fizeram o país, fiz com que ele dissesse isso a um ritmo vertiginoso. Ele tem esse lado. Já me habituei a não entrar em pânico quando me acontece um acidente. Quase sempre, se tivermos calma, as coisas resolvem-se para melhor. Fiquei desolado quando o Bruno Nogueira me disse, muito em cima da hora, que os compromissos que ele tinha iam tornar muito difícil fazer o filme. Durante 48 horas, senti-me um bocado perdido: "Quem é que vou inventar?". De repente, tive a inspiração do Nuno Markl, apesar de ele ter pouca participação em televisão; ele faz mais rádio. Por outro lado, a ideia de que um personagem que tem uma exposição pública é necessariamente um bom actor é um risco enorme. Porque ser actor de cinema é completamente diferente. Mas eu dei-lhe, penso, uma grande confiança, e uma grande margem de liberdade - há ali muitas bocas dele.
Havia um jornalista americano que dizia que o Presidente Gerald Ford não conseguia andar e mascar "chewing gum" ao mesmo tempo... Um actor tem de conseguir fazer isso. Uma das cenas que tive mais dificuldade em fazer foi aquela em que o Nuno Markl encontra pela primeira vez a Soraia/Mariana na cozinha, e tem com ela uma longa conversa e está ao mesmo tempo a fazer "pesto" e esparguete. Era preciso uma marcação rigorosa para ele dizer as réplicas e estar ao mesmo tempo a fazer todos aqueles gestos. Era preciso mecanizar - é como conduzir um automóvel e conversar ao mesmo tempo -, e mecanizar aqueles gestos acabou por o ajudar. Concentrá-lo naquilo descontraiu-o para o resto.
Já a Soraia Chaves, desta vez, faz uma personagem que se pode imaginar ter algo a ver com a vida pessoal dela...
Curiosamente ela é completamente o oposto.
Mas aqui não tem nada a ver com a imagem pública que dela ficou depois de "O Crime do Padre Amaro" e "Call Girl".
Esse era também o grande desafio. Porque as pessoas são muito cruéis e emitem julgamentos muito fáceis. Foi um pouco como a Marilyn, desde que ela apareceu no calendário, diziam que era uma tontinha que tinha um físico agradável... A Marilyn era uma actriz de cinema. No teatro, a fazer Shakespeare, seria seguramente um desastre. Mas, no cinema, ela era uma actriz única.
Acredita que a Soraia Chaves pode fazer Tchekov no teatro?
Pode. Shakespeare, não sei... É mais difícil. Mas Shakespeare, só os ingleses sabem verdadeiramente fazer. Mas a Soraia é uma enorme actriz, e eu achei que era justo dar-lhe uma "chance" de fazer um filme que não tivesse nada a ver com a imagem que se colou a ela. Porque foram dois grandes sucessos, e ela fazia, nos dois, papéis, ainda que muito diferentes, de uma mulher sensual e fatal. Daí que eu a tenha posto loira, coisa que a deixou um bocado desconfortável. Mas como ela é uma actriz muito inteligente, percebeu que esse desconforto a favorecia. Como a Kim Novak, quando resistiu a vestir o fato cinzento [em "A Mulher que Viveu Duas Vezes"] e discutiu com o Hitchcock dizendo que o cinzento não ficava bem a uma loira - e tinha razão. Mas acabou por reconhecer que isso a ajudava, porque ficava desconfortável, e a personagem dela era desconfortável, ela sentia-se mal a fazer aquele papel. A Soraia disse-me a mesma coisa: "O loiro vai-me ajudar". Porque ela é o oposto daquilo, pessoalmente é uma pessoa muito calma, não é nada do género frenético; é uma pessoa que evita a exposição mediática da sua vida privada. O que ela tem é uma capacidade de metamorfose rara num actor, e um grande poder de concentração.
E funciona bem na relação com o Marco d'Almeida.
Isso é um dos segredos do filme. Não se pode escolher um actor sozinho. No caso dos actores masculinos, foi preciso escolher os três. Era preciso que eles se completassem, que houvesse ali uma cumplicidade, mas que ao mesmo tempo fossem diferentes. Por acaso, o Marco era amigo do Pedro Laginha. Mas o Nuno Markl era um estranho naquele grupo. Quanto à Soraia e ao Marco, costumo dizer que o tango se dança a dois. É muito importante que haja, pelo menos, a aparência de uma química. E que façam um bom par, que tenham um tipo de representação que se possa complementar.
Uma das coisas mais difíceis na rodagem de "Os Imortais" [2003] foi que o "timing" da Emmanuelle Seigner e o do Nicolau [Breyner] eram o oposto. Com o Nicolau, sai tudo bem à primeira, e depois vai piorando - ele diz que vai piorando, mas não piora: o Nicolau é sempre bom em qualquer "take". A Emmanuelle ia melhorando à medida que repetia. Também porque ela insistiu em falar português, e isso dificultava-lhe não tanto a dicção, porque ela aprendeu a falar, mas o ouvir, e a coisa mais importante no actor é ouvir. Ela tinha dificuldade em acompanhar, porque não percebia o português, sabia o que dizia, e percebia o sentido do que ouvia, mas não tinha o "timing". Era mais difícil.
É preciso que os actores dancem bem um com o outro. A ideia de que a direcção de actores é uma coisa que se faz no "plateau" é completamente falsa. A direcção de actores começa na escrita dos diálogos...
Desta vez, não teve intervenção directa na escrita do argumento, que é um original do Tiago Santos.
O guião é uma coisa que se escreve a solo. Um filme constrói-se a quatro mãos, mas escreve-se sozinho. E foi o Tiago quem o escreveu, desta como da outra vez ["Call Girl"]. Só que entre o primeiro "draft" e aquilo que está no ecrã passam largos meses e várias versões. A gente só deve escrever quando sabe exactamente aquilo que quer. A partir daí, improvisa-se imenso, nomeadamente nos diálogos. O Tiago escreve e depois encontramo-nos regularmente: três dias, três horas cada dia, é o ideal. E voltamos a rever o "script". Aí há uma intervenção minha, sugiro algumas réplicas. Mas a base é do Tiago. Partimos para a escrita com uma estrutura que não estava completa. Porque o meu filme, pela primeira vez, tem uma unidade dramática mais aristotélica: 1º, 2 e 3º actos, isso estava claramente definido. A partir daí, ele inventou. Depois houve um trabalho longo, que, aliás, só termina na montagem. Mesmo aí, para encontrar o "timing" certo, foi preciso deitar cenas fora, que eram boas, por causa da economia do filme. A escrita dos diálogos vai-se apurando durante a fase da preparação.
Há uma coisa que é fundamental, e que aprendi a trabalhar com a Soraia, muito na fase da preparação e, sobretudo, na escolha do guarda-roupa. À medida que vamos escolhendo os fatos, a reacção dela àquilo que lhe proponho ajuda-me a perceber como é que ela entende a personagem. É aí que a gente afina as coisas. E, às vezes, ela própria pode dar-me sugestões sobre a personagem que me levam a acertar a orientação. Eu não faço ensaios. Só faço ensaios de guarda-roupa, do cabelo. A Soraia diz, por exemplo: "A Mariana, nesta cena, não tinha esse cabelo", ou "não levava esse vestido"... É aí que eu começo a dirigi-la. E ganha-se tempo, porque quando chegamos ao "plateau", já sei exactamente que ela vestiu a pele daquela personagem.
Falou da dança dos actores - e eles dançam mesmo. Fez essa cena para mostrar Lisboa? Chegou a dizer que "A Bela e o Paparazzo" era uma homenagem à cidade.
É mais um determinado "décor" de Lisboa - o Rossio. É também um filme sobre Lisboa, mas que, infelizmente, não tem a dimensão que eu queria. A razão fundamental é que quando fomos fazer aquilo a que chamo o vídeo-clip a partir da música do Jorge Palma, sempre que fizemos exteriores, apesar de filmarmos no Verão, esteve mau tempo. Chovia ou, o que é tão mau como chover, estava um tempo enevoado, e isso come metade do dia, porque o director de fotografia tem de optar entre esperar que o sol se esconda ou que apareça, porque não pode filmar com luz e sem luz. É evidente que o José António [Loureiro, director de fotografia] é um homem experiente - já fez mais de duzentos filmes -, e conseguiu gerir isso com bastante eficácia. Mas isso impediu que eu filmasse em mais "décors" de Lisboa. Eu queria cobrir Lisboa na perspectiva do turista.
Mas um certo ambiente alfacinha da cidade está bem presente no filme, para além do Rossio.
Há o vídeo-clip e há o Largo de Santo Antoninho. O Rossio foi uma escolha difícil - foi a cena mais difícil de filmar. Nós tínhamos só uma noite. Tínhamos o Teatro D. Maria aceso, e as fontes acesas, mas nessa noite, a meio da cena, as luzes do D. Maria apagaram-se, e o próprio jacto de água na fonte parou. Depois, no Café Nicola, recusaram-se a deixar as luzes acesas depois da meia-noite. Por isso, os planos em que eles estão com o Nicola em fundo, tive de os fazer a correr antes da meia-noite. Depois, havia grua e "steadycam". Também não sabíamos se iria haver mirones. Os próprios ensaios da dança foram feitos nessa noite, o que comeu bastante tempo das filmagens. Foi a cena mais difícil de todas. É uma cena de dança que eu nunca tinha feito, e que queria muito fazer. Adoro os filmes do [Jacques] Demy - "Les Demoiselles de Rochefort" [1967] é uma obra-prima - e dos filmes americanos, que me inspiraram. A grande inspiração para aquela cena foi a de "The Band Wagon" [1953], em que a Cyd Charisse e o Fred Astaire atravessam o Central Park e ficam sozinhos a dançar. Mas era uma coisa que nunca tinha feito. Tinha um "découpage" muito complexo. Acho que a cena não é muito perfeita no início, porque eu filmei-a com a "steadycam" e, até eles se sentarem na fonte, não pude fazer "découpage". A cena precisava, pelo menos, de mais um plano, mais longe, que me permitisse inclusivamente montar dentro do plano-sequência. Foi a cena mais difícil de fazer, mas os resultados são satisfatórios.
"O cinema português precisa de um Clint Eastwood"
Tem defendido porfiadamente a aposta numa indústria para o cinema português. Mesmo que o seu filme, por exemplo, ultrapasse os 200 mil espectadores, não dará para pagar o investimento. Como é possível defender uma indústria que não consegue autofinanciar-se, e num país cuja cinematografia tem uma imagem e uma identidade muito marcada de cinema de autor?
Mas essa é uma imagem que foi fabricada nos últimos trinta anos e que não corresponde necessariamente àquilo que, se houver outra orientação, pode ser o cinema português. No fundo, é a mesma coisa que aconteceu com o António Ferro. Ele quis deixar uma marca no cinema português, e foi à revelia do António Ferro que apareceu a comédia, que foi o que ficou. Ninguém vai ver, hoje em dia, o "Camões" [1946] ou o "Frei Luís de Sousa" [1950]. O que fica são as comédias. Mesmo a "Maria Papoila" [1937], que era um filme claramente do regime, um pretexto para mostrar as obras do Estado Novo, não ficou como ficaram as grandes comédias dos primeiros tempos, e as de Milu-António Silva-Arthur Duarte. Essa é uma imagem que se colou graças a um determinado sistema..
Mas defende o apoio estatal ao cinema?
É indispensável. Há em Portugal uma indústria das pescas, que, no entanto, também não é auto-suficiente, e que tem de ter o apoio do Estado. E, no estado de decadência em que está o cinema europeu, é impossível, em qualquer país, competir com os Estados Unidos, que nós deixámos que ocupassem o terreno. Os anos 70 a 80 foram trágicos. O Godard, que foi um dos cineastas que mais me inspirou nos anos 60, foi um dos grandes responsáveis pelo estado em que isto está. Ele, que era uma figura fascinante e brilhante, levou o cinema europeu para um determinado caminho, teve muitos seguidores, mas depois deixou-os na estrada. Porque foi incapaz de tomar o poder. E traiu toda a gente. O que é feito, hoje, dele? Já não representa nada.
Mas ainda defendeu o Godard em meados dos anos 80, aquando da polémica da estreia, em Lisboa, de "Je Vous Salue Marie" [1985].
Fi-lo, porque é um excelente filme, mas, primeiro que tudo, por causa da polémica. Os ataques ao filme eram ataques políticos do pior, da extrema-direita, com o [Nuno Krus] Abecassis [presidente da Câmara de Lisboa,que tentou impedir a exibição do filme na Cinemateca], que já morreu, a ter uma atitude sinistra e um pouco patética. Eu gosto muito desse filme, como gosto muito do "Prénom: Carmen" [1983]. São filmes que ainda tentam contar uma história. A partir do momento em que o Godard entra numa fase de poesia esotérica, eu desacompanho-o totalmente. Passo a ser um dissidente.
Sente-se um dissidente do cinema europeu?
Sou completamente um dissidente do cinema europeu. O novo cinema francês renovou a linguagem, que estava cheia de naftalina. Era preciso renovar aquela imagem, era preciso vir para a rua, fazer a revolução que o neo-realismo fizera em Itália. Os anos 60 são fantásticos. Mas o cinema da Nouvelle Vague, o Chabrol, o Truffaut e o próprio Godard, no início, não se desligaram da ideia de que é preciso contar histórias. É preciso é contá-las de outra maneira.
É curioso que recentemente escreveu textos a defender e elogiar o cinema de Eric Rohmer e a manifestar muitas dúvidas sobre o "Avatar".
O "Avatar" é, sobretudo, um exercício de pirotecnia. E é brilhante nesse aspecto. Mas se se reduzir aquilo à história, é apenas um conto de fadas para crianças. Não se compara com o "Titanic"...
Isso significa que contar histórias não é suficiente...
É claro que não. É preciso saber que histórias, e como se contam. E é preciso renovar a linguagem constantemente. Mas há períodos em que é preciso uma reacção conservadora. Foi aquilo, por exemplo, que o Stravinsky sentiu quando deu o impulso da música moderna e depois viu o caminho que se seguiu. Então começa a propor o regresso a Bach e a Pergolesi. Há momentos em que é preciso alguém que diga: "Não vamos por aí".
De que género de filmes precisa o cinema português?
O cinema português precisa de um Clint Eastwood. Hoje em dia, ele é feito por indivíduos que o Estado decide que são cineastas, e que fazem, na maior parte dos casos, um cinema autista, que não é escrutinado por ninguém. Apenas por uma crítica que, por sua vez, ninguém escrutina; não se sabe que impacto é que ela tem sobre o público. E que, financeiramente, não tem que dar conta dos resultados. Há filmes que custam a cada espectador cinco mil euros. É preciso perguntar à sociedade se ela está disposta a pagar isto.
Se vamos perguntar às pessoas que filmes estão dispostas a ver, ou que livros e literatura estão dispostas a ler...
O cinema português tem uma marca, e afunilou completamente num gosto de meia dúzia de críticos, de jurados, que muitas vezes coincidem...
Acompanha o cinema português? Dos filmes mais recentes que viu, de quais gostou?
Não vejo os filmes todos, mas tenho visto bastantes. Gostei, por exemplo, de "Suicídio Encomendado", do Artur Serra Araújo. Gosto muito dos filmes do João Canijo. Não é o meu género, mas gosto, pela importância que ele dá aos actores, principalmente. O seu último filme, "Mal Nascida" [2007], é terrível: ele vai muito longe num certo trabalho, quase sádico, com os actores. É uma história muito forte. Mas o filme dele que prefiro é o que ele fez em Paris, "Ganhar a Vida" [2000]. Gostei muito do último filme do José Fonseca e Costa, "Viúva Rica Solteira Não Fica" [2006]. Tenho pena que ele não tenha podido voltar a filmar. E gostei também muito do "The Lovebirds" [2007], do Bruno de Almeida. Não são necessariamente filmes perfeitos. Mas quantos filmes perfeitos há na história do cinema?... Talvez uma dúzia. Eu gosto dos filmes imperfeitos, dos filmes do Renoir e do Rossellini. O problema é que o cinema europeu destruiu a sua capacidade de sobrevivência e de autonomia. Perdeu o mercado, e não sei se alguma vez o vai recuperar.
O cinema português, por maioria de razão, perdeu público e o mercado. Vale 0,4 por cento do mercado; quando há um filme que bate recordes, chega a atingir 5 por cento, mas mesmo assim é irrelevante. Temos de ganhar quotas de mercado. Temos que impor um "mainstream" do cinema português. E o medo de que isso mate o cinema marginal é completamente absurdo. Onde é que há mais cinema marginal, mais vanguardismo, mais renovação, mais experiência e mais margem se não no cinema americano, onde existe o mesmo que no teatro: a Broadway, a Off-Brodway e a Off-Off-Broadway. Se tivermos o "mainstream", é muito mais fácil que nas margens surjam novos valores. Como é que surgiu o Scorsese, o Spielberg?... Precisamente fazendo filmes quase amadores, e que se impuseram depois. Como é que apareceu o Paul Thomas Anderson? No festival de Sundance, com um filme genial, "Hard Eight" [1996], feito com muito pouco dinheiro.
Onde há uma indústria, há essa capacidade. E a ideia de que o cinema tem que ser protegido, como escreveram alguns dos meus colegas, foi uma coisa que me deixou os cabelos completamente em pé. Como é possível dizer esta barbaridade: que o Estado tem de proteger os cineastas do peso incómodo do público? O cinema, goste-se ou não, é uma arte popular, é uma indústria do "entertainment", e foi por aí que fez a sua história. São cem anos de história absolutamente magnífica. O Chaplin, o Ford, o Fellini, todos esses grandes cineastas, o Truffaut e o próprio Chabrol, que é um realizador que não está ao nível dos grandes mestres... Toda essa gente nunca renegou esse lado do cinema popular. O Truffaut - que não chega ao Renoir nem ao Rossellini - sempre se bateu por isso. Ele foi o primeiro dissidente. Eu tive longas conversas com ele, fiz-lhe duas entrevistas em que ele me disse isso sempre: o cinema não se pode desligar das suas raízes populares, e ter medo do povo é uma aberração.
Quando fala do povo, quer dizer o público.
Sim. Mas o público que paga, que é muito diferente do público passivo da televisão. Por isso é que há uma figura essencial no cinema, que é o produtor. A história do cinema não é só a história dos grandes realizadores e actores, é também a história dos grandes produtores. Como o Zanuck. O grande problema, sobretudo nos anos 70, é que um certo cinema europeu passou a desprezar o produtor e a considerá-lo o mau da fita e o inimigo do realizador. De facto, naqueles anos, os produtores americanos eram uma gente horrível, que perderam o sentido do que o público queria...
É por essa razão que coloca o seu produtor, Tino Navarro, a seu lado numa cena do filme?
É uma forma simpática de dizer que não há cinema, nem teatro, sem produtor nem sem empresário. Como não há sem realizador ou sem encenador. É uma parceria indispensável. Sobretudo se for um produtor activo, e que intervém no bom sentido, que respeita o nosso trabalho, do mesmo modo que nós respeitamos o dele. Ou seja, eu sei que tenho de me comprometer com determinado trabalho, e não o posso ultrapassar. E ele sabe que tem de fazer um plano de trabalho e de acompanhar a produção para garantir que, dentro do orçamento possível, eu tenho o máximo de liberdade para fazer o melhor filme possível. Se não houver essa ligação, não há filme.
O facto de aparecer no filme a encenar Tchekov significa que é algo que gostaria de fazer - encenar uma peça de teatro?
De facto, nunca consegui fazer uma peça de teatro. Adorava fazê-lo. O Haydn teve uma carreira de grande longevidade, em que fez tudo: sinfonias, sonatas, concertos, quartetos... Um dia perguntaram-lhe porque é que nunca tinha feito um quinteto. Ele respondeu: "Porque ninguém mo encomendou". A mim, também nunca ninguém me encomendou uma encenação de teatro.
Mas tem projectos para o palco?
Sim. E nos últimos tempos tenho tentado. Mas não posso montar uma peça, sozinho. Tenho que arranjar um espaço e - lá está - um produtor, que diga que está disposto a comprar a ideia. Tenho um projecto, desde há três anos, que é fazer "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" com a Alexandra Lencastre e a Soraia. Ando a tentar fazê-lo, e até hoje ainda não consegui. Gostaria de experimentar o teatro também por uma razão muito simples. Tenho uma experiência, como público de teatro, que me deixa muitas dúvidas. Queria tirar essas dúvidas a limpo; saber se o teatro consegue, hoje em dia, criar no público o mesmo tipo de emoções que um bom filme consegue. Não estou a falar do riso, porque a comédia em teatro é mais fácil; há o riso contagiante da sala, e é sempre possível afinar, depois da estreia. É como se faz na revista: há números que não funcionam, tiram-se, e há outros que se acrescentam, etc. Agora, as emoções fortes - a compaixão, sobretudo - são coisas mais difíceis de gerir. Gostava de saber até que ponto o teatro é hoje capaz, com as suas convenções, de suscitar essas emoções. Até que ponto o teatro continua, ou não, a ter o papel que já teve na sociedade no século XIX, e nos séculos XVI e XVII. Esse papel social que a ópera também teve, e que entretanto perdeu para o cinema. Gostava de experimentar isso.
Por outro lado, isso permitir-me-ia trabalhar com actores. Gostava muito de fazer o Tchekov. No filme, pus uma cena do Tchekov por uma razão muito simples: o seu teatro é a grande prova para um actor. Tchekov é um dramaturgo que só se percebe quando se começa a encenar e a representar. Nessa cena no filme, há uma ambiguidade... Eu queria que fosse uma prova e não um ensaio. Ou seja, que ela [Mariana] se candidatasse ao papel. Na véspera, estava previsto que a Soraia iria com o guarda-roupa normal, com jeans. Mas pedi para a vestirem com o fato, porque acho impossível representar Tchekov em "blue-jeans". Portanto, ficou uma ambiguidade na cena. Dá a impressão que ela já tem o papel e que está apenas a ensaiar, mas se eu estou a ensaiar, deveria estar no palco e não na plateia. A interpretação dela está a meio caminho entre o amadorismo e a perfeição. Precisamente porque há uma ideia que eu queria deixar, a de que há uma margem de trabalho que se está a fazer. Isso não fica muito claro.
Tem dito que o cinema português não tem nenhuma visibilidade no mundo. No entanto, ainda recentemente, dois filmes de Manoel de Oliveira foram colocados nos "top ten" de duas importantes revistas: "Cahiers du Cinéma", em França, e "The New Yorker", nos EUA. Além de que Pedro Costa tem sido idolatrado nos meios cinéfilos e académicos também em vários países...
Concerteza. É um cinema de nicho. É importante que exista, e que continue a haver condições para existir. Como o Straub, que continua a fazer os seus filmes. O próprio Rohmer... Não é bem a mesma coisa, mas ele percebeu qual era o seu nicho, o seu mercado, e fazia filmes para salvaguardar a sua independência e a sua liberdade, que ele sabia que não podiam ultrapassar determinado orçamento. Ele tinha uma estética, chamemos-lhe assim, e uma forma de filmar e de produzir que eram adequadas àquilo que ele poderia obter como público. E isso fazia parte da sua liberdade. Os filmes do Pedro Costa têm o seu público, que não vai deixar de existir, nunca. Eu não sou contra a intervenção do Estado. Não há cinema português, nem haverá por muitos anos, se não houver essa intervenção. O que digo é que o Estado não deve ter uma política do gosto. A solução é simples: é transformar as taxas em obrigações. Isso faz-se em 24 horas: toda a cadeia de valor - os canais generalistas, as televisões por cabo, os distribuidores, as cadeias de exibição, os editores de vídeo... toda essa cadeia de comercialização dos filmes tem de ser obrigada a reinvestir uma parte do volume de negócios em novos filmes. Como acontece actualmente. Só que isso, em vez de ser entregue ao Estado, para ele arranjar cinco indivíduos que decidem a quem é que se distribui o dinheiro, deve ser decidido pelos produtores, que passam a ter vários "guichets" onde propor projectos.
Não é esse o papel do FICA?
O FICA está mal concebido. Como o ICA. É gravíssimo o que se está a passar. Não tem funcionado nem cumprido os seus compromissos. Tem de ser revisto no quadro de uma revisão global do cinema. Dizer que o FICA é para o cinema comercial e o ICA é para o cinema de autor é um absurdo total. O FICA tem que ser um instrumento de capital de risco, que complemente o investimento que o mercado não é capaz de fazer. Temos de acabar com o sistema de apoios tal como ele existe hoje.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
"A Bela e o Paparazzo" é uma experiência nova na carreira de António-Pedro Vasconcelos - a comédia. É um regresso ao cenário alfacinha do "pátio das cantigas". Uma homenagem à comédia portuguesa dos anos 40, agora com uma intriga recortada no dia-a-dia de uma vedeta de telenovela perseguida por "paparazzi" e que sonha com uma carreira diferente para a sua vida de actriz. Com o seu novo filme, António-Pedro Vasconcelos continua também a traçar o seu retrato do país. E prossegue, por outro lado, na defesa de um modelo para o cinema português que encontre uma forma de chegar ao público e lhe proporcione a salvação possível através da ficção.
Tem dito que só a ficção nos pode salvar. Acha que a comédia nos pode salvar melhor, no estado em que o mundo está?
Não necessariamente. A comédia é um género tão importante como qualquer outro. Trata-se, obviamente, de fazer coisas, em comédia, que tenham qualidade e sejam pertinentes. Há um lado de comédia, por exemplo, em todos os filmes do Chaplin e do Capra, dois dos homens que mais fizeram, nos anos 30, sobretudo no período de crise mundial que viria a desembocar na 2ª Guerra Mundial, para impor os valores do humanismo e da democracia. E nós temos a tragédia e a comédia grega, para além de Shakespeare e de Molière. E o Howard Hawks, o Billy Wilder e o De Sicca, sem esquecer o maior de todos, o Renoir, que foram autores que alternaram a comédia com o drama ou filmes de aventuras.
A comédia é um género tão nobre como outro qualquer. Durante o fascismo, os únicos filmes que, de facto, conseguiram abrir uma brecha no regime foram as comédias, sobretudo as primeiras - o filme português de que mais gosto é "A Canção de Lisboa" [1933], é uma obra-prima, e quando a gente pensa que foi feito naquela altura... E depois, "O Pátio das Cantigas" [1942], "O Pai Tirano" [1941], etc. Mas mesmo as comédias românticas do Arthur Duarte, sobretudo através do António Silva, conseguiram abrir uma brecha, permitindo ao público ter a percepção de que os valores sagrados que o regime queria impor eram de uma enorme fragilidade. O facto de a Europa ter perdido esse sentido da comédia é em grande parte responsável pela nossa decadência. Não é que seja um género que eu preze em particular. É a primeira vez que o faço. Mas já há muito tempo que o queria experimentar...
Está satisfeito com o resultado da experiência?
Só poderei responder a isso quando o filme fizer a sua carreira nas salas. Costumo dizer que a sala faz parte da banda sonora. O filme só está pronto quando houver a respiração da sala. Numa comédia, então, isso é evidente, porque o riso tem uma expressão física e colectiva. A emoção é retraída, mas o silêncio também se ouve. O único dom que é exigível ao cineasta é antecipar a reacção do público. Se ele não tiver a percepção antecipada de como o público vai reagir, não tem o "timing" justo das cenas. Nisso os americanos eram os maiores - o McCarey acima de todos, e o Capra. E o Lubitsch, antes de todos. Eu não posso saber exactamente, antes de o filme ser exibido nas salas, se falhei ou acertei. Mas estou bastante satisfeito com o resultado. Fazer comédia, no essencial, não é muito diferente do resto. É mais arriscado, porque há uma parte na comédia romântica que deve suscitar o riso. E há duas coisas patéticas para um realizador, que não desejo a ninguém: é fazer uma cena para rir e o público não ri; mas há uma coisa ainda pior, que é fazer uma cena que não é para rir, e o público ri! Espero que isso não me aconteça. No meu filme, acho que há um equilíbrio, que me satisfaz, entre o lado da comédia e o da comédia romântica, como quando o António Silva fazia as despesas da comédia e a Milu fazia a parte romântica.
Em "A Bela e o Paparazzo", homenageia a comédia portuguesa dos anos 40. Parece-lhe possível transpor esse modelo para o nosso tempo? A comédia dessa época era muito subsidiária de um contexto social e político bem definido...
A comédia dos anos 40 é irreverente e subversiva, mas de uma maneira muito subliminar. Não é por acaso que o género acaba quando a base social do salazarismo acaba, também. Já não é possível rir com aquilo. O que é que a comédia nos diz, qual é a mensagem do salazarismo? É que não há luta de classes e que, pelo contrário, é até possível a aliança de classes: uma menina, que é costureira, pode casar com um barão ou com um milionário... Quem subverte isso é o António Silva, quando mostra que isso só se consegue com aldrabices. E não é por acaso que o esquema da comédia sobrevive, depois, no melodrama. Pega-se exactamente nas mesmas situações, só que, a partir dos anos 50, as coisas correm mal. Então há uma pirueta no fim para as coisas correrem bem. Mas fica sempre a percepção de que isso é falso. A comédia perde a sua razão de ser.
Mas eu não estou a copiar um modelo, isso não é possível. Estou a fazer uma homenagem a um género que se perdeu. Se reparar bem, não há nenhuma transposição. Ela [Mariana - a Bela] e ele [João - o Paparazzo] são praticamente do mesmo estrato social. Não há ali esse tipo de problema. A grande dificuldade que tive - e eu não sei quantos mais filmes vou fazer, já não sou jovem e, por outro lado, em Portugal fazer filmes é uma coisa altamente aleatória, não se pode programar e projectar a nossa vida - foi naquilo que o Chaplin definiu de uma vez por todas quando disse: "A comédia é a vida em plano geral; a tragédia é a vida em grande plano". Nos primeiros dias de filmagens, tive alguma dificuldade em acertar com a objectiva - a que distância é que vou filmar as coisas, que "découpage" vou fazer?...
Como é que encontrou o registo certo?
Acertei logo ao fim dos dois, três primeiros dias, porque a gente sente no "plateau". Mas sente com alguma dificuldade, porque, hoje em dia, vemos o filme através do vídeo, no "video-system", que é ultradeficiente. Se há uma coisa em que se tem de inovar e progredir, é aí. Temos uma percepção muito deficiente, na qualidade, no tamanho e no enquadramento da imagem. Vamos vendo o filme como se estivéssemos a filmar para a televisão, e não é a mesma coisa. Essa é a grande armadilha. Dantes víamos os "rushes" em projecção, e um bom filme ia sendo montado aí. Este também vai sendo montado na sala, por um montador, que nos vai dando eco: "Estás a filmar muito assim ou assado". Um bom montador dá-nos algumas noções de como a coisa está a correr. Há duas cenas, filmadas no início, em plano geral, a que acho que faltam planos: é a cena da novela e a segunda cena em casa. Mas há cenas que me deixaram satisfeito com o resultado, duas ou três que acho que têm o "découpage" e o "timing" perfeito, que é o da comédia. Eu tinha a comédia, mas tinha também o melodrama. Na terceira parte do filme, desde que ele [o Paparazzo] tem que confessar quem é, entramos no melodrama. E o melodrama já exige um "découpage" mais cerrado, e já permite fazer grandes planos. Na comédia, é mais difícil fazer grandes planos.
O Nuno Markl está no filme com a sua própria "persona" pública bem conhecida. Foi uma escolha propositada? Não é um risco trazer para uma ficção alguém que não vem fazer uma personagem, mas que transporta para ela a sua imagem já muito marcada?
O Nuno Markl foi um recurso - e ele sabe-o. Mas foi um óptimo recurso.
Mas, se fosse o Bruno Nogueira, manter-se-ia a mesma situação...
Seria o mesmo registo, com as suas diferenças, claro. O "timing" deles é diferente. O Nuno Markl tem um lado mais alucinado, entre o Peter Sellers e o Groucho Marx. O Bruno é um humor mais lento. Por exemplo, na cena em que ele enumera os tipos que fizeram o país, fiz com que ele dissesse isso a um ritmo vertiginoso. Ele tem esse lado. Já me habituei a não entrar em pânico quando me acontece um acidente. Quase sempre, se tivermos calma, as coisas resolvem-se para melhor. Fiquei desolado quando o Bruno Nogueira me disse, muito em cima da hora, que os compromissos que ele tinha iam tornar muito difícil fazer o filme. Durante 48 horas, senti-me um bocado perdido: "Quem é que vou inventar?". De repente, tive a inspiração do Nuno Markl, apesar de ele ter pouca participação em televisão; ele faz mais rádio. Por outro lado, a ideia de que um personagem que tem uma exposição pública é necessariamente um bom actor é um risco enorme. Porque ser actor de cinema é completamente diferente. Mas eu dei-lhe, penso, uma grande confiança, e uma grande margem de liberdade - há ali muitas bocas dele.
Havia um jornalista americano que dizia que o Presidente Gerald Ford não conseguia andar e mascar "chewing gum" ao mesmo tempo... Um actor tem de conseguir fazer isso. Uma das cenas que tive mais dificuldade em fazer foi aquela em que o Nuno Markl encontra pela primeira vez a Soraia/Mariana na cozinha, e tem com ela uma longa conversa e está ao mesmo tempo a fazer "pesto" e esparguete. Era preciso uma marcação rigorosa para ele dizer as réplicas e estar ao mesmo tempo a fazer todos aqueles gestos. Era preciso mecanizar - é como conduzir um automóvel e conversar ao mesmo tempo -, e mecanizar aqueles gestos acabou por o ajudar. Concentrá-lo naquilo descontraiu-o para o resto.
Já a Soraia Chaves, desta vez, faz uma personagem que se pode imaginar ter algo a ver com a vida pessoal dela...
Curiosamente ela é completamente o oposto.
Mas aqui não tem nada a ver com a imagem pública que dela ficou depois de "O Crime do Padre Amaro" e "Call Girl".
Esse era também o grande desafio. Porque as pessoas são muito cruéis e emitem julgamentos muito fáceis. Foi um pouco como a Marilyn, desde que ela apareceu no calendário, diziam que era uma tontinha que tinha um físico agradável... A Marilyn era uma actriz de cinema. No teatro, a fazer Shakespeare, seria seguramente um desastre. Mas, no cinema, ela era uma actriz única.
Acredita que a Soraia Chaves pode fazer Tchekov no teatro?
Pode. Shakespeare, não sei... É mais difícil. Mas Shakespeare, só os ingleses sabem verdadeiramente fazer. Mas a Soraia é uma enorme actriz, e eu achei que era justo dar-lhe uma "chance" de fazer um filme que não tivesse nada a ver com a imagem que se colou a ela. Porque foram dois grandes sucessos, e ela fazia, nos dois, papéis, ainda que muito diferentes, de uma mulher sensual e fatal. Daí que eu a tenha posto loira, coisa que a deixou um bocado desconfortável. Mas como ela é uma actriz muito inteligente, percebeu que esse desconforto a favorecia. Como a Kim Novak, quando resistiu a vestir o fato cinzento [em "A Mulher que Viveu Duas Vezes"] e discutiu com o Hitchcock dizendo que o cinzento não ficava bem a uma loira - e tinha razão. Mas acabou por reconhecer que isso a ajudava, porque ficava desconfortável, e a personagem dela era desconfortável, ela sentia-se mal a fazer aquele papel. A Soraia disse-me a mesma coisa: "O loiro vai-me ajudar". Porque ela é o oposto daquilo, pessoalmente é uma pessoa muito calma, não é nada do género frenético; é uma pessoa que evita a exposição mediática da sua vida privada. O que ela tem é uma capacidade de metamorfose rara num actor, e um grande poder de concentração.
E funciona bem na relação com o Marco d'Almeida.
Isso é um dos segredos do filme. Não se pode escolher um actor sozinho. No caso dos actores masculinos, foi preciso escolher os três. Era preciso que eles se completassem, que houvesse ali uma cumplicidade, mas que ao mesmo tempo fossem diferentes. Por acaso, o Marco era amigo do Pedro Laginha. Mas o Nuno Markl era um estranho naquele grupo. Quanto à Soraia e ao Marco, costumo dizer que o tango se dança a dois. É muito importante que haja, pelo menos, a aparência de uma química. E que façam um bom par, que tenham um tipo de representação que se possa complementar.
Uma das coisas mais difíceis na rodagem de "Os Imortais" [2003] foi que o "timing" da Emmanuelle Seigner e o do Nicolau [Breyner] eram o oposto. Com o Nicolau, sai tudo bem à primeira, e depois vai piorando - ele diz que vai piorando, mas não piora: o Nicolau é sempre bom em qualquer "take". A Emmanuelle ia melhorando à medida que repetia. Também porque ela insistiu em falar português, e isso dificultava-lhe não tanto a dicção, porque ela aprendeu a falar, mas o ouvir, e a coisa mais importante no actor é ouvir. Ela tinha dificuldade em acompanhar, porque não percebia o português, sabia o que dizia, e percebia o sentido do que ouvia, mas não tinha o "timing". Era mais difícil.
É preciso que os actores dancem bem um com o outro. A ideia de que a direcção de actores é uma coisa que se faz no "plateau" é completamente falsa. A direcção de actores começa na escrita dos diálogos...
Desta vez, não teve intervenção directa na escrita do argumento, que é um original do Tiago Santos.
O guião é uma coisa que se escreve a solo. Um filme constrói-se a quatro mãos, mas escreve-se sozinho. E foi o Tiago quem o escreveu, desta como da outra vez ["Call Girl"]. Só que entre o primeiro "draft" e aquilo que está no ecrã passam largos meses e várias versões. A gente só deve escrever quando sabe exactamente aquilo que quer. A partir daí, improvisa-se imenso, nomeadamente nos diálogos. O Tiago escreve e depois encontramo-nos regularmente: três dias, três horas cada dia, é o ideal. E voltamos a rever o "script". Aí há uma intervenção minha, sugiro algumas réplicas. Mas a base é do Tiago. Partimos para a escrita com uma estrutura que não estava completa. Porque o meu filme, pela primeira vez, tem uma unidade dramática mais aristotélica: 1º, 2 e 3º actos, isso estava claramente definido. A partir daí, ele inventou. Depois houve um trabalho longo, que, aliás, só termina na montagem. Mesmo aí, para encontrar o "timing" certo, foi preciso deitar cenas fora, que eram boas, por causa da economia do filme. A escrita dos diálogos vai-se apurando durante a fase da preparação.
Há uma coisa que é fundamental, e que aprendi a trabalhar com a Soraia, muito na fase da preparação e, sobretudo, na escolha do guarda-roupa. À medida que vamos escolhendo os fatos, a reacção dela àquilo que lhe proponho ajuda-me a perceber como é que ela entende a personagem. É aí que a gente afina as coisas. E, às vezes, ela própria pode dar-me sugestões sobre a personagem que me levam a acertar a orientação. Eu não faço ensaios. Só faço ensaios de guarda-roupa, do cabelo. A Soraia diz, por exemplo: "A Mariana, nesta cena, não tinha esse cabelo", ou "não levava esse vestido"... É aí que eu começo a dirigi-la. E ganha-se tempo, porque quando chegamos ao "plateau", já sei exactamente que ela vestiu a pele daquela personagem.
Falou da dança dos actores - e eles dançam mesmo. Fez essa cena para mostrar Lisboa? Chegou a dizer que "A Bela e o Paparazzo" era uma homenagem à cidade.
É mais um determinado "décor" de Lisboa - o Rossio. É também um filme sobre Lisboa, mas que, infelizmente, não tem a dimensão que eu queria. A razão fundamental é que quando fomos fazer aquilo a que chamo o vídeo-clip a partir da música do Jorge Palma, sempre que fizemos exteriores, apesar de filmarmos no Verão, esteve mau tempo. Chovia ou, o que é tão mau como chover, estava um tempo enevoado, e isso come metade do dia, porque o director de fotografia tem de optar entre esperar que o sol se esconda ou que apareça, porque não pode filmar com luz e sem luz. É evidente que o José António [Loureiro, director de fotografia] é um homem experiente - já fez mais de duzentos filmes -, e conseguiu gerir isso com bastante eficácia. Mas isso impediu que eu filmasse em mais "décors" de Lisboa. Eu queria cobrir Lisboa na perspectiva do turista.
Mas um certo ambiente alfacinha da cidade está bem presente no filme, para além do Rossio.
Há o vídeo-clip e há o Largo de Santo Antoninho. O Rossio foi uma escolha difícil - foi a cena mais difícil de filmar. Nós tínhamos só uma noite. Tínhamos o Teatro D. Maria aceso, e as fontes acesas, mas nessa noite, a meio da cena, as luzes do D. Maria apagaram-se, e o próprio jacto de água na fonte parou. Depois, no Café Nicola, recusaram-se a deixar as luzes acesas depois da meia-noite. Por isso, os planos em que eles estão com o Nicola em fundo, tive de os fazer a correr antes da meia-noite. Depois, havia grua e "steadycam". Também não sabíamos se iria haver mirones. Os próprios ensaios da dança foram feitos nessa noite, o que comeu bastante tempo das filmagens. Foi a cena mais difícil de todas. É uma cena de dança que eu nunca tinha feito, e que queria muito fazer. Adoro os filmes do [Jacques] Demy - "Les Demoiselles de Rochefort" [1967] é uma obra-prima - e dos filmes americanos, que me inspiraram. A grande inspiração para aquela cena foi a de "The Band Wagon" [1953], em que a Cyd Charisse e o Fred Astaire atravessam o Central Park e ficam sozinhos a dançar. Mas era uma coisa que nunca tinha feito. Tinha um "découpage" muito complexo. Acho que a cena não é muito perfeita no início, porque eu filmei-a com a "steadycam" e, até eles se sentarem na fonte, não pude fazer "découpage". A cena precisava, pelo menos, de mais um plano, mais longe, que me permitisse inclusivamente montar dentro do plano-sequência. Foi a cena mais difícil de fazer, mas os resultados são satisfatórios.
"O cinema português precisa de um Clint Eastwood"
Tem defendido porfiadamente a aposta numa indústria para o cinema português. Mesmo que o seu filme, por exemplo, ultrapasse os 200 mil espectadores, não dará para pagar o investimento. Como é possível defender uma indústria que não consegue autofinanciar-se, e num país cuja cinematografia tem uma imagem e uma identidade muito marcada de cinema de autor?
Mas essa é uma imagem que foi fabricada nos últimos trinta anos e que não corresponde necessariamente àquilo que, se houver outra orientação, pode ser o cinema português. No fundo, é a mesma coisa que aconteceu com o António Ferro. Ele quis deixar uma marca no cinema português, e foi à revelia do António Ferro que apareceu a comédia, que foi o que ficou. Ninguém vai ver, hoje em dia, o "Camões" [1946] ou o "Frei Luís de Sousa" [1950]. O que fica são as comédias. Mesmo a "Maria Papoila" [1937], que era um filme claramente do regime, um pretexto para mostrar as obras do Estado Novo, não ficou como ficaram as grandes comédias dos primeiros tempos, e as de Milu-António Silva-Arthur Duarte. Essa é uma imagem que se colou graças a um determinado sistema..
Mas defende o apoio estatal ao cinema?
É indispensável. Há em Portugal uma indústria das pescas, que, no entanto, também não é auto-suficiente, e que tem de ter o apoio do Estado. E, no estado de decadência em que está o cinema europeu, é impossível, em qualquer país, competir com os Estados Unidos, que nós deixámos que ocupassem o terreno. Os anos 70 a 80 foram trágicos. O Godard, que foi um dos cineastas que mais me inspirou nos anos 60, foi um dos grandes responsáveis pelo estado em que isto está. Ele, que era uma figura fascinante e brilhante, levou o cinema europeu para um determinado caminho, teve muitos seguidores, mas depois deixou-os na estrada. Porque foi incapaz de tomar o poder. E traiu toda a gente. O que é feito, hoje, dele? Já não representa nada.
Mas ainda defendeu o Godard em meados dos anos 80, aquando da polémica da estreia, em Lisboa, de "Je Vous Salue Marie" [1985].
Fi-lo, porque é um excelente filme, mas, primeiro que tudo, por causa da polémica. Os ataques ao filme eram ataques políticos do pior, da extrema-direita, com o [Nuno Krus] Abecassis [presidente da Câmara de Lisboa,que tentou impedir a exibição do filme na Cinemateca], que já morreu, a ter uma atitude sinistra e um pouco patética. Eu gosto muito desse filme, como gosto muito do "Prénom: Carmen" [1983]. São filmes que ainda tentam contar uma história. A partir do momento em que o Godard entra numa fase de poesia esotérica, eu desacompanho-o totalmente. Passo a ser um dissidente.
Sente-se um dissidente do cinema europeu?
Sou completamente um dissidente do cinema europeu. O novo cinema francês renovou a linguagem, que estava cheia de naftalina. Era preciso renovar aquela imagem, era preciso vir para a rua, fazer a revolução que o neo-realismo fizera em Itália. Os anos 60 são fantásticos. Mas o cinema da Nouvelle Vague, o Chabrol, o Truffaut e o próprio Godard, no início, não se desligaram da ideia de que é preciso contar histórias. É preciso é contá-las de outra maneira.
É curioso que recentemente escreveu textos a defender e elogiar o cinema de Eric Rohmer e a manifestar muitas dúvidas sobre o "Avatar".
O "Avatar" é, sobretudo, um exercício de pirotecnia. E é brilhante nesse aspecto. Mas se se reduzir aquilo à história, é apenas um conto de fadas para crianças. Não se compara com o "Titanic"...
Isso significa que contar histórias não é suficiente...
É claro que não. É preciso saber que histórias, e como se contam. E é preciso renovar a linguagem constantemente. Mas há períodos em que é preciso uma reacção conservadora. Foi aquilo, por exemplo, que o Stravinsky sentiu quando deu o impulso da música moderna e depois viu o caminho que se seguiu. Então começa a propor o regresso a Bach e a Pergolesi. Há momentos em que é preciso alguém que diga: "Não vamos por aí".
De que género de filmes precisa o cinema português?
O cinema português precisa de um Clint Eastwood. Hoje em dia, ele é feito por indivíduos que o Estado decide que são cineastas, e que fazem, na maior parte dos casos, um cinema autista, que não é escrutinado por ninguém. Apenas por uma crítica que, por sua vez, ninguém escrutina; não se sabe que impacto é que ela tem sobre o público. E que, financeiramente, não tem que dar conta dos resultados. Há filmes que custam a cada espectador cinco mil euros. É preciso perguntar à sociedade se ela está disposta a pagar isto.
Se vamos perguntar às pessoas que filmes estão dispostas a ver, ou que livros e literatura estão dispostas a ler...
O cinema português tem uma marca, e afunilou completamente num gosto de meia dúzia de críticos, de jurados, que muitas vezes coincidem...
Acompanha o cinema português? Dos filmes mais recentes que viu, de quais gostou?
Não vejo os filmes todos, mas tenho visto bastantes. Gostei, por exemplo, de "Suicídio Encomendado", do Artur Serra Araújo. Gosto muito dos filmes do João Canijo. Não é o meu género, mas gosto, pela importância que ele dá aos actores, principalmente. O seu último filme, "Mal Nascida" [2007], é terrível: ele vai muito longe num certo trabalho, quase sádico, com os actores. É uma história muito forte. Mas o filme dele que prefiro é o que ele fez em Paris, "Ganhar a Vida" [2000]. Gostei muito do último filme do José Fonseca e Costa, "Viúva Rica Solteira Não Fica" [2006]. Tenho pena que ele não tenha podido voltar a filmar. E gostei também muito do "The Lovebirds" [2007], do Bruno de Almeida. Não são necessariamente filmes perfeitos. Mas quantos filmes perfeitos há na história do cinema?... Talvez uma dúzia. Eu gosto dos filmes imperfeitos, dos filmes do Renoir e do Rossellini. O problema é que o cinema europeu destruiu a sua capacidade de sobrevivência e de autonomia. Perdeu o mercado, e não sei se alguma vez o vai recuperar.
O cinema português, por maioria de razão, perdeu público e o mercado. Vale 0,4 por cento do mercado; quando há um filme que bate recordes, chega a atingir 5 por cento, mas mesmo assim é irrelevante. Temos de ganhar quotas de mercado. Temos que impor um "mainstream" do cinema português. E o medo de que isso mate o cinema marginal é completamente absurdo. Onde é que há mais cinema marginal, mais vanguardismo, mais renovação, mais experiência e mais margem se não no cinema americano, onde existe o mesmo que no teatro: a Broadway, a Off-Brodway e a Off-Off-Broadway. Se tivermos o "mainstream", é muito mais fácil que nas margens surjam novos valores. Como é que surgiu o Scorsese, o Spielberg?... Precisamente fazendo filmes quase amadores, e que se impuseram depois. Como é que apareceu o Paul Thomas Anderson? No festival de Sundance, com um filme genial, "Hard Eight" [1996], feito com muito pouco dinheiro.
Onde há uma indústria, há essa capacidade. E a ideia de que o cinema tem que ser protegido, como escreveram alguns dos meus colegas, foi uma coisa que me deixou os cabelos completamente em pé. Como é possível dizer esta barbaridade: que o Estado tem de proteger os cineastas do peso incómodo do público? O cinema, goste-se ou não, é uma arte popular, é uma indústria do "entertainment", e foi por aí que fez a sua história. São cem anos de história absolutamente magnífica. O Chaplin, o Ford, o Fellini, todos esses grandes cineastas, o Truffaut e o próprio Chabrol, que é um realizador que não está ao nível dos grandes mestres... Toda essa gente nunca renegou esse lado do cinema popular. O Truffaut - que não chega ao Renoir nem ao Rossellini - sempre se bateu por isso. Ele foi o primeiro dissidente. Eu tive longas conversas com ele, fiz-lhe duas entrevistas em que ele me disse isso sempre: o cinema não se pode desligar das suas raízes populares, e ter medo do povo é uma aberração.
Quando fala do povo, quer dizer o público.
Sim. Mas o público que paga, que é muito diferente do público passivo da televisão. Por isso é que há uma figura essencial no cinema, que é o produtor. A história do cinema não é só a história dos grandes realizadores e actores, é também a história dos grandes produtores. Como o Zanuck. O grande problema, sobretudo nos anos 70, é que um certo cinema europeu passou a desprezar o produtor e a considerá-lo o mau da fita e o inimigo do realizador. De facto, naqueles anos, os produtores americanos eram uma gente horrível, que perderam o sentido do que o público queria...
É por essa razão que coloca o seu produtor, Tino Navarro, a seu lado numa cena do filme?
É uma forma simpática de dizer que não há cinema, nem teatro, sem produtor nem sem empresário. Como não há sem realizador ou sem encenador. É uma parceria indispensável. Sobretudo se for um produtor activo, e que intervém no bom sentido, que respeita o nosso trabalho, do mesmo modo que nós respeitamos o dele. Ou seja, eu sei que tenho de me comprometer com determinado trabalho, e não o posso ultrapassar. E ele sabe que tem de fazer um plano de trabalho e de acompanhar a produção para garantir que, dentro do orçamento possível, eu tenho o máximo de liberdade para fazer o melhor filme possível. Se não houver essa ligação, não há filme.
O facto de aparecer no filme a encenar Tchekov significa que é algo que gostaria de fazer - encenar uma peça de teatro?
De facto, nunca consegui fazer uma peça de teatro. Adorava fazê-lo. O Haydn teve uma carreira de grande longevidade, em que fez tudo: sinfonias, sonatas, concertos, quartetos... Um dia perguntaram-lhe porque é que nunca tinha feito um quinteto. Ele respondeu: "Porque ninguém mo encomendou". A mim, também nunca ninguém me encomendou uma encenação de teatro.
Mas tem projectos para o palco?
Sim. E nos últimos tempos tenho tentado. Mas não posso montar uma peça, sozinho. Tenho que arranjar um espaço e - lá está - um produtor, que diga que está disposto a comprar a ideia. Tenho um projecto, desde há três anos, que é fazer "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" com a Alexandra Lencastre e a Soraia. Ando a tentar fazê-lo, e até hoje ainda não consegui. Gostaria de experimentar o teatro também por uma razão muito simples. Tenho uma experiência, como público de teatro, que me deixa muitas dúvidas. Queria tirar essas dúvidas a limpo; saber se o teatro consegue, hoje em dia, criar no público o mesmo tipo de emoções que um bom filme consegue. Não estou a falar do riso, porque a comédia em teatro é mais fácil; há o riso contagiante da sala, e é sempre possível afinar, depois da estreia. É como se faz na revista: há números que não funcionam, tiram-se, e há outros que se acrescentam, etc. Agora, as emoções fortes - a compaixão, sobretudo - são coisas mais difíceis de gerir. Gostava de saber até que ponto o teatro é hoje capaz, com as suas convenções, de suscitar essas emoções. Até que ponto o teatro continua, ou não, a ter o papel que já teve na sociedade no século XIX, e nos séculos XVI e XVII. Esse papel social que a ópera também teve, e que entretanto perdeu para o cinema. Gostava de experimentar isso.
Por outro lado, isso permitir-me-ia trabalhar com actores. Gostava muito de fazer o Tchekov. No filme, pus uma cena do Tchekov por uma razão muito simples: o seu teatro é a grande prova para um actor. Tchekov é um dramaturgo que só se percebe quando se começa a encenar e a representar. Nessa cena no filme, há uma ambiguidade... Eu queria que fosse uma prova e não um ensaio. Ou seja, que ela [Mariana] se candidatasse ao papel. Na véspera, estava previsto que a Soraia iria com o guarda-roupa normal, com jeans. Mas pedi para a vestirem com o fato, porque acho impossível representar Tchekov em "blue-jeans". Portanto, ficou uma ambiguidade na cena. Dá a impressão que ela já tem o papel e que está apenas a ensaiar, mas se eu estou a ensaiar, deveria estar no palco e não na plateia. A interpretação dela está a meio caminho entre o amadorismo e a perfeição. Precisamente porque há uma ideia que eu queria deixar, a de que há uma margem de trabalho que se está a fazer. Isso não fica muito claro.
Tem dito que o cinema português não tem nenhuma visibilidade no mundo. No entanto, ainda recentemente, dois filmes de Manoel de Oliveira foram colocados nos "top ten" de duas importantes revistas: "Cahiers du Cinéma", em França, e "The New Yorker", nos EUA. Além de que Pedro Costa tem sido idolatrado nos meios cinéfilos e académicos também em vários países...
Concerteza. É um cinema de nicho. É importante que exista, e que continue a haver condições para existir. Como o Straub, que continua a fazer os seus filmes. O próprio Rohmer... Não é bem a mesma coisa, mas ele percebeu qual era o seu nicho, o seu mercado, e fazia filmes para salvaguardar a sua independência e a sua liberdade, que ele sabia que não podiam ultrapassar determinado orçamento. Ele tinha uma estética, chamemos-lhe assim, e uma forma de filmar e de produzir que eram adequadas àquilo que ele poderia obter como público. E isso fazia parte da sua liberdade. Os filmes do Pedro Costa têm o seu público, que não vai deixar de existir, nunca. Eu não sou contra a intervenção do Estado. Não há cinema português, nem haverá por muitos anos, se não houver essa intervenção. O que digo é que o Estado não deve ter uma política do gosto. A solução é simples: é transformar as taxas em obrigações. Isso faz-se em 24 horas: toda a cadeia de valor - os canais generalistas, as televisões por cabo, os distribuidores, as cadeias de exibição, os editores de vídeo... toda essa cadeia de comercialização dos filmes tem de ser obrigada a reinvestir uma parte do volume de negócios em novos filmes. Como acontece actualmente. Só que isso, em vez de ser entregue ao Estado, para ele arranjar cinco indivíduos que decidem a quem é que se distribui o dinheiro, deve ser decidido pelos produtores, que passam a ter vários "guichets" onde propor projectos.
Não é esse o papel do FICA?
O FICA está mal concebido. Como o ICA. É gravíssimo o que se está a passar. Não tem funcionado nem cumprido os seus compromissos. Tem de ser revisto no quadro de uma revisão global do cinema. Dizer que o FICA é para o cinema comercial e o ICA é para o cinema de autor é um absurdo total. O FICA tem que ser um instrumento de capital de risco, que complemente o investimento que o mercado não é capaz de fazer. Temos de acabar com o sistema de apoios tal como ele existe hoje.