O sexo que elas têm
Vinte anos passaram anos desde que começou a pesquisa para "O Formato Mulher - A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa". Vinte anos necessários para que Anna Klobucka, professora de estudos portugueses na Universidade de Massachusetts-Dartmouth, EUA, conseguisse encontrar um espaço para a sua publicação, espaço pessoal de confronto com o seu projecto de doutoramento iniciado em 1989, mas também com a situação dos estudos feministas em Portugal.
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Vinte anos passaram anos desde que começou a pesquisa para "O Formato Mulher - A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa". Vinte anos necessários para que Anna Klobucka, professora de estudos portugueses na Universidade de Massachusetts-Dartmouth, EUA, conseguisse encontrar um espaço para a sua publicação, espaço pessoal de confronto com o seu projecto de doutoramento iniciado em 1989, mas também com a situação dos estudos feministas em Portugal.
Tentou publicá-lo em Portugal em 1993, mas não conseguiu. Quinze anos depois, revisto e aumentado, o estudo ganha outro fôlego pela mão da Angelus Novus: na tese original, estavam Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner, Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge. Nesta edição, Klobucka inclui Adília Lopes e Ana Luísa Amaral. São cinco capítulos, um sobre Florbela e outro sobre Sophia, e dois estudos comparativos (Maria Teresa Horta e Luiza Jorge, Adília Lopes e Ana Luísa Amaral). Em "O Formato Mulher", Klobucka analisa a "problemática da autoria e da subjectividade no feminino na poesia portuguesa", como explicou ao Ípsilon. Ou seja: ler estas seis poetas não em relação ao contexto literário, mas como sujeitos de escrita que se assumem enquanto seres sexuados. Kloubucka quis ler poemas em que "o sujeito lírico se colocasse como 'gender'", explica. Quer dizer, assumindo a sua sexualidade, biológica e social. "Queria analisar as autoras que se 'gender' a si mesmas. Faz falta essa palavra em português. Que se exprimem como sexuadas."
Klobucka sempre pensou que no seu estudo "havia coisas potencialmente úteis e interessantes que não estavam a ser ditas". Nem em 1993, nem em 2009. Este é "um trabalho inédito" em Portugal, que "supre uma falha", disse Ana Luísa Amaral na apresentação da obra em Lisboa. Se já há estudos de História ou de Sociologia enquadrados na teoria feminista, não há quase nada sobre literatura portuguesa. Klobucka: "No cânone literário português ninguém toca. Não sei por que isto acontece, mas as pessoas falam-me em inércia e tradicionalismo."
Este livro é um "gesto político", admite, porque o "feminismo é uma política". Implica teorias, mas é, "acima de tudo, o imperativo ético de corrigir uma desigualdade". São as margens que lhe interessam, é questionar a motivação política generalizada da "hetero-normatividade, o pressuposto de haver dois sexos complementares, o homem e a mulher, e por esta ordem, e que toda a experiência da humanidade só faz sentido através dessa leitura". Klobucka quer pôr isto em causa, destruir esta lógica binária e assumir o "desdobramento" da autoria. É exactamente assim que apresenta as "suas" poetas, uma "escrita de mulher, específica da mulher, mas que não é necessariamente o reverso ou contraponto da do homem ou a masculina", disse Ana Luísa Amaral.
Sexo e gender na gramática dos nomes
Em inglês, as diferenças entre poeta ("poet") e poetisa ("poetess") caíram, usando-se agora "poet" para os dois sexos. "A gramática portuguesa é 'gendered'", explica Klobucka, mostrando a dificuldade em encontrar conceitos. Ana Luísa Amaral disse na apresentação: "Tive uma fase em que só queria ser poeta, agora já não me interessa." Klobucka acredita que cada língua terá de fazer a sua própria "prospecção histórica dos usos". Mas admite que, em português, esta dicotomia é complexa, porque a gramática é normativa.
Klobucka apresenta, então, os dois maiores ícones da poesia de mulheres do século XX: Florbela e Sophia, porque ambas representam dois exemplos de mulheres escritoras com papéis muito concretos na vida cultural e social portuguesa dos seus tempos. Florbela é uma pioneira, a primeira mulher a escrever que se assumia enquanto tal. Ela era, disse João Gaspar Simões, "antes de mais nada mulher", falando, como explica Klobucka, "a partir da voz que se afirma enquanto feminina". Sophia, pelo contrário, tem uma voz universal, neutra". Florbela seria, então, uma poetisa: escreve como mulher antes de ser poeta, e Sophia é a "primeira mulher que não escreve como tal, mas como poeta".
Sophia é a primeira autora "em pé de igualdade com escritores masculinos na história da literatura portuguesa. Como se fosse de- 'gendered'." Ou seja: apesar de o género entrar no seu no discurso crítico, "é de mau gosto dizer que ela é uma mulher poeta, porque ela é poeta. Dizer que é mulher é menorizá-la." Klobucka admite que poderá haver em Portugal um "arrepio em falar de Sophia" enquanto mulher, apesar de esta incorporar gestos feministas de revisionismo, na revisitação dos mitos da Grécia.
Luiza Neto Jorge versus Maria Teresa Horta: esta era a primeira versão do ensaio, "good cop, bad cop", que depois Klobucka abandonou. Reconhece que Neto Jorge tem uma reputação literária que a torna na maior poeta do século XX: "Em Luiza não se pode tocar." Teresa Hora é uma poeta feminista assumida que usa as teóricas francesas nos seus próprios textos, co-autora de "Novas Cartas Portuguesas", deixando um legado no feminismo em Portugal. Ao lê-la a par de Neto Jorge, Klobucka está a re-analisar a condição histórica da mulher, não ignorando que na poesia de 61 estavam perguntas "sobre as relações entre a sexualidade marcada pela diferença e a textualidade marcada pelo sexo".
Klobucka admite que foi a contínua observação da cena cultural portuguesa e o surgimento de escritoras como Adília Lopes e Ana Luísa Amaral que lhe mostrou que, nos anos 90, eram as poetas, e não os críticos, "que estavam a fazer coisas que se coadunavam" com a sua perspectiva. "O que não estava a ser feito era o discurso crítico correspondente", diz. Daí que autoras como Lopes e Amaral apresentem um revisionismo histórico-literário, estabelecendo "um diálogo com a tradição", em resposta aos autores canónicos (Camões ou Pessoa) ou em relação aos mitos gregos e à condição da mulher na literatura universal. Este é um dos gestos mais emblemáticos do feminismo. "Adília Lopes tem vários poemas que podiam ser artigos, defendendo uma tese revisionista", entre o cânone e o feminismo, opondo, por exemplo, Fernando Pessoa e Sylvia Plath, o "mestre modernista" e a "mestra feminista".
O mesmo se passa com Ana Luísa Amaral, escritora que afirma ser feminista, "mas a sua escrita, não", explica Klobucka. O gesto feminista de Amaral, como "a poetização da domesticidade, não se constrói como uma reivindicação pioneira mas antes como uma prática consciente pós-feminista", escreve.
Ana Luísa Amaral afirmou que, a partir de agora, estas mulheres partilham, enquanto poetas portuguesas do século XX, e através do trabalho de Klobucka, o "sonho de uma língua comum".