Desconstruir, jogar
A história já entrou na mitologia da arte da segunda metade do século XX: em 1976, durante o processo de montagem de uma exposição colectiva no Institute for Architecture and Urban Resources (IAUR), em Nova Iorque, o norte-americano Gordon Matta-Clark decidiu instalar uma série de imagens de edifícios com janelas partidas. A documentação destes prédios vandalizados situados no Sul do Bronx tinha uma intenção crítica: o questionamento de políticas de habitação social, que, mais do que criarem situações de inclusão, acabam por segregar os seus beneficiários da comunidade. Com este trabalho, o artista aproximava-se, uma vez mais, das teses situacionistas acerca do urbanismo unitário, sendo os seus comentários dirigidos ao projecto Twin Parks Northeast Housing, assinado Richard Meier e construído entre 1969 e 1972 - este arquitecto era um dos elementos dos New York Five que participava na mostra; os outros eram Michael Graves e Peter Eisenman.
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A história já entrou na mitologia da arte da segunda metade do século XX: em 1976, durante o processo de montagem de uma exposição colectiva no Institute for Architecture and Urban Resources (IAUR), em Nova Iorque, o norte-americano Gordon Matta-Clark decidiu instalar uma série de imagens de edifícios com janelas partidas. A documentação destes prédios vandalizados situados no Sul do Bronx tinha uma intenção crítica: o questionamento de políticas de habitação social, que, mais do que criarem situações de inclusão, acabam por segregar os seus beneficiários da comunidade. Com este trabalho, o artista aproximava-se, uma vez mais, das teses situacionistas acerca do urbanismo unitário, sendo os seus comentários dirigidos ao projecto Twin Parks Northeast Housing, assinado Richard Meier e construído entre 1969 e 1972 - este arquitecto era um dos elementos dos New York Five que participava na mostra; os outros eram Michael Graves e Peter Eisenman.
Insatisfeito com o seu contributo, Matta-Clark decidiu então pedir autorização para partir definitivamente alguns vidros rachados de janelas do próprio edifício do IAUR. Com este gesto o artista procurava contrariar a "armadilha da mera representação estética", na qual poderia estar a cair se apenas apresentasse as fotografias. Matta-Clark não se ficou por aqui: depois de uma festa tardia, entre a uma e as duas da manhã, regressou ao edifício com uma espingarda de pressão de ar, emprestada por Dennis Oppenheim, e acabou por disparar contra todas as janelas do espaço expositivo, levando à revolta dos outros participantes na mostra - Eisenman chegou mesmo a comparar a acção do artista, mais tarde denominada "Window Blow-Out", com as actividades do exército nazi na Noite de Cristal, de 9 para 10 de Novembro de 1938 -, que, na manhã seguinte, chamaram os vidraceiros para consertarem os estragos.
Num longo ensaio sobre Matta-Clark, o crítico e historiador Thomas Crow escreve acerca deste acontecimento e dos efeitos por ele produzidos, afirmando que o artista tinha a clara intenção de atingir o próprio IAUR, forçando-o a reagir: "(...)se nem por um instante esta deterioração foi tolerável para Eisenman e para os seus colegas, por que razão ela tem de o ser, dia após dia, quer no South Bronx, quer no East Lower Side?" Com esta acção crítica - institucional, social, política -, Matta-Clark expunha as contradições de uma arquitectura com objectivos supostamente sociais, mas que, no fim de contas, acabava por ser mais um dos instrumentos de controle utilizados pelo poder para perpetuar situações de segregação - é conhecida a oposição dos situacionistas a Le Corbusier, que no seu manifesto, "Vers une architecture" (1923), escreve: "Arquitectura ou revolução. Podemos evitar a revolução."
Em "Ponle un Marco...", Belén Uriel (Madrid, 1974) apresenta um trabalho directamente inspirado na acção realizada por Gordon Matta-Clark em 1976: "Dibujar en cristal (Window blow out, 1976)", de 2008. Esta peça, formada por quatro vidros laminados cortados a laser e sobrepostos, toma como ponto de partida uma das fotos usadas pelo norte-americano na sua instalação no IAUR. Neste caso, a artista reproduz o espaço vazio que é visível entre os vidros das janelas partidas, objectualizando-o e tornando-o assim escultura. Na galeria, encostada a uma das janelas, num difícil equilíbrio, quase invisível, a obra estabelece um diálogo com o passado, arriscando-se a cair na "armadilha da mera representação estética", esse perigo já assinalado por Matta-Clark, aquando da sua acção. Contudo, no contexto da exposição, a peça ganha um outro alcance quando confrontada com os restantes objectos produzidos por Belén Uriel, que podem ser analisados a partir de linhas de leitura relacionadas sobretudo com as ideias de jogo e de desconstrução, sendo a arquitectura o tema unificador. A série de aguarelas "Bauspiel, building game", realizadas este ano, toma como referência o conjunto de 64 peças em vidro colorido que formam o "Glasbauspiel", desenhado pelo arquitecto alemão Bruno Taut, em 1920. Com estes sólidos geométricos podem obter-se um sem-número de variações nas quais é omnipresente a ideia de transparência, à luz de uma concepção da época segundo a qual todos os domínios da vida se deviam interpenetrar. Procurava-se dessa forma lançar as bases para uma comunidade definida eticamente pela arquitectura - outra obra patente na exposição relacionada com a ideia de jogo, neste caso um puzzle, é a peça de chão "1 m² laminado", de 2008.
As questões relacionadas com a desconstrução têm origem num catálogo de uma grande superfície comercial, que é transformado em pasta de papel, ampliado, decalcado ou usado enquanto modelo para a grelha que dá forma à instalação "Ponle un marco..." (2009/2010) - as molduras escolhidas para enquadrar as impressões digitais de Belén Uriel são as que se vêem na publicação original a decorar um espaço doméstico. A crítica ao consumo, à massificação do gosto, passa assim, deste modo, por uma exposição que traz ecos longínquos - Taut, Matta-Clark - para o presente, numa actualização pertinente, segura de si.