Balada de Serge e Charlotte

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Tony Frank/Sygma/Corbis

Quando sofreu o primeiro ataque cardíaco em 1973, Serge Gainsbourg, preso numa cama de hospital, pediu a Jane Birkin que lhe levasse um frasco de Old Spice. Preocupação curiosa para quem acabara de ceder pela primeira vez aos excessos de uma vida preenchida. Mas Gainsbourg era Gainsbourg e, mesmo em pijama de hospital e barba de sabem-se lá quantos dias, havia que manter a elegância da pose. Nada disso, como rapidamente descobriu Birkin quando o frasco de desodorizante chegou ao destinatário. Gainsbourg era Gainsbourg. Sofrera um ataque cardíaco?

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Quando sofreu o primeiro ataque cardíaco em 1973, Serge Gainsbourg, preso numa cama de hospital, pediu a Jane Birkin que lhe levasse um frasco de Old Spice. Preocupação curiosa para quem acabara de ceder pela primeira vez aos excessos de uma vida preenchida. Mas Gainsbourg era Gainsbourg e, mesmo em pijama de hospital e barba de sabem-se lá quantos dias, havia que manter a elegância da pose. Nada disso, como rapidamente descobriu Birkin quando o frasco de desodorizante chegou ao destinatário. Gainsbourg era Gainsbourg. Sofrera um ataque cardíaco?

Tudo muito bem. Os cigarros ajudarão a descontrair - e o odor a Old Spice a encobrir o prazer proibido. Quando teve alta, os médicos descobriram nas gavetas do quarto onde esteve internado vários cinzeiros improvisados recheados de beatas.

Entre o extensíssimo álbum de aforismos portáteis que foi construindo ao longo da vida, descobrimos este: "Outros morrem de cancro ou duma crise cardiovascular. Eu morrerei de uma doença muito simples: a exausta retirada da vida". Em 1973, tinha 45 anos, a sua companheira, Jane Birkin, 27, e Charlotte, a filha de ambos, 2. A vida estava longe de exausta.

Nos anos 1970, o dia a dia do casal, tal como contado por Jane Birkin numa extensa reportagem publicada em 2007 na "Vanity Fair", conjugava boémia desbragada com os indispensáveis cuidados paternais. Serge e Jane acordavam às três da tarde. Jane ia esperar Charlotte e Kate, filha do casamento com o compositor John Barry, à saída da escola e levava-as a passear no parque. De regresso a casa, jantavam, Jane e Serge davam banho às filhas, deitavam-nas. Depois, seguiriam para as luzes de Paris, percorrendo os bares e clubes da Rive Gauche. De regresso a casa, esperavam que as filhas acordassem, acompanhavam-nas até à saída para a escola e deitavam-se até que tudo recomeçasse novamente.

Não sabemos qual dos dois Serge e Jane se fixaram na memória de infância de Charlotte. Conhecemos o que veio depois. Gainsbourg, eterno provocador, a oferecer o palco mediático à sua filha pela primeira vez: "Lemon incest", single editado em 1985, quando Charlotte tinha 13 anos.

No vídeo, os dois deitados numa cama, ele em tronco nu, ela de camisa. Escândalo, claro, com acusações de glamorização do incesto e da pedofilia e especulações sobre o conteúdo autobiográfico da letra. Numa entrevista recente ao "Observer", Charlotte não tem paciência para suposições: "eu não era inocente ao cantá-lo. Sabia do que estava falar. Mais, para mim, isso não era um problema. Diverti-me a fazê-lo". Acrescenta: "Mesmo naquela altura estava habituada ao seu entusiasmo com a provocação".

Um ano depois, Charlotte edita o seu primeiro álbum, "Charlotte Forever", produzido pelo pai. "Papa j'ai peur", diz um dos seus versos. No vídeo correspondente, vemo-la num quarto a abrir uma gaveta e a retirar de lá um revólver. Serge surge em cena, acalma-a - são Clyde e a filha de Bonnie.

Recuemos ao momento em que, ano 1986, Charlotte, enquanto protagonista de "L'Effrontée", de Claude Miller, recebe o César para "Actriz Mais Promissora". É anunciada enquanto vencedora. A mãe beija-a, o pai beija-a e ela, lacrimejante, sobe a palco sem conseguir balbuciar nada mais que um "obrigado" envergonhado. Na plateia, Gainsbourg, cigarro na mão, é o único de pé e a pose nervosa denuncia: orgulhoso da filha mas aflito com a aflição dela. Um par de segundos, e a imagem pública mais pungente de Serge enquanto pai.

Gainsbourg, homem de contrastes, ainda é presença fortíssima na vida de Charlotte. Dezanove anos depois da sua morte, o luto ainda não terminou. Ainda hoje lhe é difícil ouvir a sua música, ouvir a sua voz.

Quando regressou aos discos, em 2006, com "5:55", cantou em inglês, não na sua primeira língua, o francês - por causa do pai, pela proximidade que o francês, e a música em francês, traria.

Uma semana antes da sua morte, em Março de 1991, de ataque cardíaco, Serge telefonou a Jane (estavam separados há onze anos, Birkin estava casada com Jacques Doillon, mas na casa dela havia um quarto reservado para o ex-marido). Disse-lhe Serge que planeava ir a Nova Orleães gravar um álbum de jazz. Informou-a que Charlotte iria com ele: "Quer viver comigo. Disse que sou o homem que procurou toda a sua vida", brincou.

Charlotte tinha 19 anos e nunca foi gravar o álbum de jazz com o pai.
O corpo de Serge Gainsbourg foi velado durante quatro dias por quatro mulheres. Jane Birkin, Charlotte, Kate e Bambou, a sua última companheira. Quatro dias porque Charlotte se recusava a deixá-lo ir embora, a vê-lo desaparecer.

Dezanove anos depois, a filha de Gainsbourg acha que talvez consiga começar a ultrapassar o seu desaparecimento: "Agora que vivi metade da minha vida com ele, metade sem ele, talvez seja capaz de crescer um pouco e seguir em frente", confessou ao Observer.

A casa parisiense onde Serge Gainsbourg viveu os seus últimos vinte anos, na Rue de Verneuil, foi entregue a Charlotte. Preservou tudo intacto. Fotos das "suas" mulheres: Birkin, Bardot, Marianne Faithfull ou Françoise Hardy. Caixas de jóias da Cartier vazias. Livros sobre Jean-Paul Belmondo ou Velázquez, uma cassete de Jimi Hendrix. O bar com o "shaker" e as garrafas. A cozinha onde estão barras de chocolate, vinho, latas de comida. Tudo de 1991. Como se o tempo não tivesse passado. Como se Serge Gainsbourg não tivesse morrido. Como se o pai de Charlotte não tivesse ido embora.