Confiar no cepticismo

"Aos vinte e três anos de idade Michael Davenport aprendera a confiar no seu próprio cepticismo" é a notável frase de abertura de "Young Hearts Crying"/ "Jovens Corações em Lágrimas". Quatrocentas e tantas páginas mais tarde, três décadas passadas, fechamos o romance com o cinquentão Michael Davenport "sozinho com o seu cepticismo".

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

"Aos vinte e três anos de idade Michael Davenport aprendera a confiar no seu próprio cepticismo" é a notável frase de abertura de "Young Hearts Crying"/ "Jovens Corações em Lágrimas". Quatrocentas e tantas páginas mais tarde, três décadas passadas, fechamos o romance com o cinquentão Michael Davenport "sozinho com o seu cepticismo".

O penúltimo livro de Richard Yates, publicado em 1984, teve à época péssimas críticas, e muitas referiam a extensão excessiva do texto: tudo aparece exaustivamente reiterado durante quatrocentas e cinquenta páginas, às vezes de modo cansativo [esta tradução também não ajuda, com demasiados deslizes na linguagem coloquial]. Yates é um escritor com grande capacidade de percepção e alguma subtileza, mas a opção narrativa de "Jovens Corações em Lágrimas" atenua essas virtudes. Trata-se, apesar disso, de um retrato convicto da América do pós-guerra. Ou de um duplo retrato: tanto do "casal burguês" como dos "aspirantes a artistas". Sendo que os protagonistas, Michael Davenport e Lucy Blaine, acumulam esses papéis.

Michael, um literato machão (como o próprio Yates), aprendeu na Força Aérea que se deve "fazer com que as coisas difíceis pareçam fáceis", mas esse é um lema que nunca saberá adequar à vida privada. Em Harvard, já com aspirações literárias, conhece Lucy, que não só tem pais milionários como é ela própria muito rica. Casam rapidamente, mas Michael quer afirmar-se pela sua arte, e recusa-se a tocar no dinheiro da mulher. Além da óbvia diferença de classe, a noção de "fácil" e "difícil" depende bastante do dinheiro que se tem, e Michael quer triunfar pelos seus próprios méritos estéticos e viris. Apesar de produzir um poema longo bem conseguido, nunca mais escreve nada que se veja, e ganha a vida, sem gosto, como redactor de uma revista sobre venda a retalho.

Ainda mais do que o desnível social e financeiro, é a imersão na boémia do pós-guerra que vem desestabilizar o casal. Os Davenports vivem nuns subúrbios pacatos e conformistas, paisagem americana por excelência, e passam grande parte do tempo em festas onde que se discute o expressionismo abstracto e o "Yeats da fase mais tardia" [uma boa blague], ajuntamentos onde há álcool em doses abundantes e muitas pessoas por quem Michael se sente fascinado, quer artística quer sexualmente (em especial, uma rapariga elegante e espectral chamada Diana Maitland).

O que aquela gente discute já não é apenas o destino das artes, mas o conceito de "integridade". E embora Michael Davenport seja um homem eminentemente prático, dá muita importância a essa capacidade de se ser "íntegro". Se a existência burguesa é um equilíbrio instável entre uma vida normal e uma vida feliz, por maioria de razão a vocação artística tem de obedecer a uma ética. Há que "ganhar a vida" sem ser "comercial", e isso não é fácil, sobretudo quando se está sob o constante escrutínio daquelas elites cultas e pedantes. O casamento de Michael e Lucy soçobra não apenas pelas tensões e tédios próprios da vida matrimonial, mas por causa do vício original do "dinheiro interdito" e pela incapacidade de ambos vingarem como artistas.

A partir daqui, Yates perde a noção da economia da escrita, e sucedem-se episódios em que Michael e Lucy vão tentando novos projectos artísticos, sendo que a cada tentativa correspondem novos casos amorosos ou sexuais, muitos deles fugazes. Lucy, uma personagem talvez mais simpática, é tratada porém com algum paternalismo. Em compensação, é realmente difícil gostar de Michael. Nele, o fracasso artístico parece menos importante do que o fracasso como homem. Michael tenta uma e outra vez voltar a escrever alguma coisa importante, mas está também viciado naquelas súbitas aparições de raparigas altas, esbeltas, de pele luminosa, cabelos perfumados e seios encantadores. Tendo em conta que vai envelhecendo, cada vez mais essas mulheres parecem mais uma ambição insubstancial ou passageira.

É aliás curioso que depois dos todos os desaires de Michael (incluindo vários ataques psicóticos) é a experiência da impotência que mais o aflige: "Nesse dia ficou tanto tempo sozinho que teve tempo de sobra para começar a pensar sem proveito nenhum em todos os círculos viciosos da impotência. Os outros homens também passavam por isso? E, se era assim, por que razão quase não se falava disso, a não ser por meio de piadas? As raparigas falavam disso e faziam troça entre elas, e em privado pensavam nisso com repugnância e desdém? Era algo que uma palavra ou um olhar ou uma bebida podiam curar, no momento preciso, ou esperava-se que a pessoa passasse anos a fazer psicanálise tentando chegar à raiz do problema?" (págs. 311-312)

Michael detesta a psiquiatria, mas vive uma vida marcada por uma introspecção que recusa a ideia de introspecção. A sua grande ligação com os seus predecessores está em viver numa segunda "geração perdida", e sabemos como os autores americanos contemporâneos de Yates também merecem tristemente esse epíteto. Michael (e Yates) perdeu a sua vez, já não admira que admirava, já não ama quem amava, as amizades caducaram ou nunca foram reais. E ele tem dificuldade em reconhecer os costumes e as ideias da década de 1960. Viveu a vida em expectativa e angústia, impressionado com "a facilidade com que a preguiça o desperdício se tornam um modo de vida". E não sabe, nunca soube, como tornar fácil o que parece difícil.

Yates, como é seu hábito, escreve páginas perspicazes e sentidas sobre a vida doméstica, das atenções e desatenções do quotidiano às alegrias e receios eróticos. E apesar de todos os defeitos do romance, consegue fazer da pulsão artística motivo e alegoria da ambição frustrada, da auto-estima e da autobiografia. É por isso tocante o reencontro final entre Michael e Lucy, e o seu comovente brinde: "- Que se foda a arte! - disse ela. - Quer dizer, de facto, Michael. Que se foda a arte, está bem? Não é estranho como andámos atrás dela durante toda a nossa vida? Morrendo por estar junto de alguém que parecesse saber compreendê-la, como se isso alguma vez ajudasse; nunca parando para pensar que isso estaria para sempre e sem esperança longe do nosso alcance, ou que se calhar nem sequer existia? (págs. 456-457).