O branco maculado

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Quando a conhecemos, no livro, ela é uma menina vestida de branco imaculado no meio da Matola, arredores de Lourenço Marques. "Não havia forma de me libertarem dessa necessidade de me manter imaculadamente branca. Na minha memória estou sempre vestida de branco, preocupada em não me sujar. O vestido branco que não usei nesse dia é a mais clamorosa metáfora da minha vida de pequena colona: uma branca de branco, agarrada à saia que não pode sujar, olhando os sapatos brancos que não pode empoar. É assim que me vejo, na cabina da Bedford branca, encolhida debaixo da roupa, preocupada com a poeira que entra pelas janelas".

Ela era a branca, mas a "branca filha do electricista". Não pertencia às classes altas de Lourenço Marques. "Eu tinha consciência de que havia dois mundos", conta ao Ípsilon: "um que tinha criados mas que não baixava ao nível de ter que os disciplinar, e o mundo do outros, do meu pai, que serviam a classe alta e tinham como função domesticar aqueles que o serviam a ele e à classe alta também."

Mas era também uma menina sozinha, que a mãe quase não deixava sair de casa com medo de que ela fosse brincar com meninos negros. Então Isabela comia piripiris para ficar forte, vendia mangas às escondidas, e lia tudo o que conseguia encontrar. E ouvia os adultos falar. Era assim que aprendia coisas como, por exemplo, que "os brancos iam às pretas".

Como não podia brincar com outros meninos, brincava com o pai. Ele era o seu herói, levava-a para todo o lado, e ela via, e sabia, como ele "corria o dia inteiro, a cidade, de um lado ao outro, a controlar o trabalho da pretalhada, a pô-los na ordem com uns sopapos e uns encontrões bem assentes pela mão larga, mais uns pontapés, enfim, alguma porrada pedagógica". E depois leva-a a beber uma Coca-Cola e deixava-a provar o penalti que ele bebia. E ela começava a não lhe perdoar. "Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior inimiga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vê e escuta e nem pediu autorização. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira.", escreve no livro ao recordar o dia em que percebeu que conseguia ler.

Depois houve em Portugal o 25 de Abril. E em Moçambique os massacres de 7 de Setembro. E de repente: "As cabeças dos brancos roladas no campo da bola iam perdendo o rosto, a pele, os olhos, os miolos, e o que restava da carne amolgada e dos maxilares partidos."
Lourenço Marques era cada vez mais Maputo e cada vez menos um sítio para meninas imaculadamente vestidas de branco. "O tempo dos brancos tinha acabado". Por isso ela partiu. Sozinha, com um odiado anel de esmeraldas da madrinha demasiado largo no dedo, e muitos recados. "Diz-lhes que tudo o que lá ouvem nas notícias é mentira, que o Almeida Santos e o Mário Soares são uns cães, que nos estão a vender por meio tostão. Que ponham o Spínola. Esse é teso. Tragam-nos o Spínola".
Conseguiu lugar num dos voos da TAP "esgotados há meses para qualquer destino". E voou para o país que, conta ao Ipsílon, "imaginava que fosse uma espécie de Suíça, com prados verdes, vaquinhas e onde os portugueses se vestiam de trajes tradicionais e eram todos bonzinhos como a minha avozinha."

Os portugueses não eram assim. "Eram", continua, "realmente pessoas cinzentas, fechadas, pequenas, feias, de ideias pequeninas, conservadoras, muito atrasados, muito cuscuvilheiros, muito interessados na vida alheia." Chegou num dia cinzento de Novembro, foi levada para as Caldas da Rainha, para casa da avó. "Tinha duas assoalhadas, uma cozinha que servia de sala com lareira, um pátio onde havia muitas galinhas e que nós tinhamos que atravessar para chegar ao quarto, e a casa de banho era um ralo que havia à entrada da porta. Aquilo era viver como um preto. Como eu imaginava que os pretos viviam." Isabela já não era a princesa vestida de branco no meio do mato. E um dia, muitos anos mais tarde, haveria de escrever um livro. Um ajuste de contas com toda uma vida. Uma "traição". "O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre."

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Quando a conhecemos, no livro, ela é uma menina vestida de branco imaculado no meio da Matola, arredores de Lourenço Marques. "Não havia forma de me libertarem dessa necessidade de me manter imaculadamente branca. Na minha memória estou sempre vestida de branco, preocupada em não me sujar. O vestido branco que não usei nesse dia é a mais clamorosa metáfora da minha vida de pequena colona: uma branca de branco, agarrada à saia que não pode sujar, olhando os sapatos brancos que não pode empoar. É assim que me vejo, na cabina da Bedford branca, encolhida debaixo da roupa, preocupada com a poeira que entra pelas janelas".

Ela era a branca, mas a "branca filha do electricista". Não pertencia às classes altas de Lourenço Marques. "Eu tinha consciência de que havia dois mundos", conta ao Ípsilon: "um que tinha criados mas que não baixava ao nível de ter que os disciplinar, e o mundo do outros, do meu pai, que serviam a classe alta e tinham como função domesticar aqueles que o serviam a ele e à classe alta também."

Mas era também uma menina sozinha, que a mãe quase não deixava sair de casa com medo de que ela fosse brincar com meninos negros. Então Isabela comia piripiris para ficar forte, vendia mangas às escondidas, e lia tudo o que conseguia encontrar. E ouvia os adultos falar. Era assim que aprendia coisas como, por exemplo, que "os brancos iam às pretas".

Como não podia brincar com outros meninos, brincava com o pai. Ele era o seu herói, levava-a para todo o lado, e ela via, e sabia, como ele "corria o dia inteiro, a cidade, de um lado ao outro, a controlar o trabalho da pretalhada, a pô-los na ordem com uns sopapos e uns encontrões bem assentes pela mão larga, mais uns pontapés, enfim, alguma porrada pedagógica". E depois leva-a a beber uma Coca-Cola e deixava-a provar o penalti que ele bebia. E ela começava a não lhe perdoar. "Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior inimiga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vê e escuta e nem pediu autorização. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira.", escreve no livro ao recordar o dia em que percebeu que conseguia ler.

Depois houve em Portugal o 25 de Abril. E em Moçambique os massacres de 7 de Setembro. E de repente: "As cabeças dos brancos roladas no campo da bola iam perdendo o rosto, a pele, os olhos, os miolos, e o que restava da carne amolgada e dos maxilares partidos."
Lourenço Marques era cada vez mais Maputo e cada vez menos um sítio para meninas imaculadamente vestidas de branco. "O tempo dos brancos tinha acabado". Por isso ela partiu. Sozinha, com um odiado anel de esmeraldas da madrinha demasiado largo no dedo, e muitos recados. "Diz-lhes que tudo o que lá ouvem nas notícias é mentira, que o Almeida Santos e o Mário Soares são uns cães, que nos estão a vender por meio tostão. Que ponham o Spínola. Esse é teso. Tragam-nos o Spínola".
Conseguiu lugar num dos voos da TAP "esgotados há meses para qualquer destino". E voou para o país que, conta ao Ipsílon, "imaginava que fosse uma espécie de Suíça, com prados verdes, vaquinhas e onde os portugueses se vestiam de trajes tradicionais e eram todos bonzinhos como a minha avozinha."

Os portugueses não eram assim. "Eram", continua, "realmente pessoas cinzentas, fechadas, pequenas, feias, de ideias pequeninas, conservadoras, muito atrasados, muito cuscuvilheiros, muito interessados na vida alheia." Chegou num dia cinzento de Novembro, foi levada para as Caldas da Rainha, para casa da avó. "Tinha duas assoalhadas, uma cozinha que servia de sala com lareira, um pátio onde havia muitas galinhas e que nós tinhamos que atravessar para chegar ao quarto, e a casa de banho era um ralo que havia à entrada da porta. Aquilo era viver como um preto. Como eu imaginava que os pretos viviam." Isabela já não era a princesa vestida de branco no meio do mato. E um dia, muitos anos mais tarde, haveria de escrever um livro. Um ajuste de contas com toda uma vida. Uma "traição". "O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre."