Isabela Figueiredo: "O colonialismo era o meu pai"

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Foi no blog Mundo Perfeito (e agora no Novo Mundo) que os textos de Isabela Figueiredo começaram a aparecer. Escrevia sobre aquilo que durante anos não tivera coragem de enfrentar: a infância em Moçambique, o racismo dos colonos portugueses. E, sobretudo, do pai, essa figura que "trazia o mundo" até ela.

"Caderno de Memórias Coloniais", editado pela Angelus Novus, é um ajuste de contas com o pai morto. E com muitos retornados vivos. E com os que em Portugal os receberam e os maltrataram não percebendo que eles já tinham sido maltratados. É uma libertação de muita raiva.

Aquilo que conta no seu livro, a violência quotidiana dos brancos sobre os negros em Moçambique - e da forma crua como a conta - é um testemunho raro?

Nunca li nada sobre este assunto, não penso que tenha sido contado antes. Nós, retornados, não falamos disto uns com os outros, por pudor. Eu não tinha com quem falar. Lembro-me do [escritor angolano José Eduardo] Agualusa há 20 anos, depois de eu ter escrito uma coisa muito folclórica, muito suave, sobre Moçambique no "DN Jovem", me ter dito que eu não tinha contado a verdade. Não lhe disse que achava que ele tinha razão, mas tinha. Eu não estava a contar a verdade, não podia contar a verdade porque havia um pacto de fidelidade com o meu pai. Não podia falar daquelas coisas com o meu pai vivo, sabendo que ele ia ler.

O facto de não pertencer à classe média e média alta da então Lourenço Marques, de ser de uma classe mais baixa, era para si um problema?

A diferença de classes entre portugueses não é uma coisa que me preocupe, é uma coisa que para mim era normal. Eu era a filha do electricista, e gosto dessa ideia. Ouvia o meu pai falar sobre as casas dos senhores da alta, onde ele ia fazer as instalações. O meu pai era um homem pobre, foi para África porque precisava de ganhar dinheiro, estava sempre a dizer-nos que não éramos ricos, éramos remediados. Eu sabia o meu lugar no esquema da sociedade colonial.

Porque é que esse seu mundo, dos brancos mais pobres, nunca foi contado? Os relatos que existem sobre a vida nas ex-colónias são sobretudo sobre a guerra ou então livros mais nostálgicos.

Porque é o que se aceita. Quando chegámos a Portugal fomos muito maltratados. Eu era criança e fui muito maltratada pelos meus colegas, pelos meus familiares. Diziam que o meu pai e a minha mãe eram ladrões, que tínhamos tido pretos para nos lavarem os pezinhos e o rabinho. E que merecíamos ter perdido tudo.

Quisemos esquecer esse nosso passado, quisemos integrar-nos. Queríamos ser iguais aos outros, não queríamos ser retornados, queríamos ser portugueses. Por isso durante muito tempo não falávamos do passado e só dizíamos aquilo que era socialmente correcto. O que é que era aceitável? Participar na guerra colonial, que toda a gente está de acordo em dizer que foi má, morreu muita gente. Ou então relatos que começaram a aparecer há dois ou três anos, sobre os "fait-divers" da vida nas colónias, como era bom, tínhamos a nossa fazenda, a nossa quinta, a vida era suave e doce, tínhamos criados mas tratávamos todos nos nossos criados muito bem.

Existe uma ligação entre nós, retornados, todos vivemos as mesmas coisas. Aquilo que eu vi só eu é que vi? Os outros tinham os olhos tapados? Não pode ser.
Não tratávamos os negros como nos tratávamos uns aos outros. Mas dizer isso é admitir que afinal quando cá chegámos eles tinham razão quando diziam que andámos a tratar mal os negros e merecíamos tudo o que eles nos fizeram a seguir. Isso era verdade, mas quando chegámos cá já tínhamos pago um preço.

Tínhamos todos um acordo tácito para não falar, não revelar a verdade. Eu participava em convívios com o meu pai e a minha mãe, e a conversa sobre os negros era comum. O que é feito dos filhos dessas famílias que também estavam nessa mesa e também ouviam as conversas que eu ouvia? Têm que estar algures. Apagaram isso da memória? Muitas pessoas têm esse conhecimento mas não o revelam porque revelá-lo constitui uma traição aos pais. Para mim isto também não é fácil. Continuo a achar que de alguma forma é uma traição à memória do meu pai.

Tudo isto podia ser contado de uma forma em que não se expusesse tanto, mais ficcionada. Porque é que optou pela autobiografia?

Senti que não podia distanciar-me. A certa altura, teria talvez uns 20 anos, apercebi-me, porque as outras pessoas me diziam, que me tinha tornado uma pessoa violenta. Diziam-me que reagia com enorme violência.
O facto de ter sido testemunha de uma série de acções que me pareciam erradas e não poder dizer nada sobre elas tornou-me uma pessoa violenta. A minha expressão é violenta, escrevo de forma violenta. Não queria ficcionar, queria contar a verdade, a realidade com a crueza com que a vivi.

Diz numa entrevista no fim do livro que a sua escrita não foi sempre assim. Como chegou a esta escrita concentrada?

O primeiro livro que escrevi, há 20 anos, ganhou um prémio literário. Também era sobre África, mas era uma coisa ficcionada, e depois de o ter escrito queria escrever mais, queria tornar-me escritora. Mas não sabia sobre o que escrever, não tinha um tema, não podia escrever sobre aquilo que queria escrever. Foi preciso esperar muito tempo, que o meu pai morresse, que eu fizesse o luto dele, que fizesse uma série de anos de psicanálise, para ter vontade de escrever o que está aí. São coisas que precisava de dizer. Estavam aqui há muito tempo. Desde o tempo que eu cheguei cá aos doze anos e as pessoas me diziam "tu és uma retornada e andaste a roubar os pretos". Pagámos bem caro. Sofremos muito depois da independência lá, vimos muitas atrocidades, amigos da nossa família foram assassinados, vimos os corpos deles. Quando nos trataram mal à chegada esqueceram-se que já tinhamos sido maltratados.

Essa violência contra os brancos não alterou o seu olhar crítico em relação ao colonialismo?

Isso era o problema que eu tinha com o meu pai. Ele só conseguia ver um lado e eu estive dos dois lados ao mesmo tempo. Eu era uma miúda consciente, tive uma educação muito boa, o meu pai era um homem com bons valores, educou-me para compreender o outro, deu-me uma educação católica. Era um homem sensível e inteligente e essa incompatibilidade entre o discurso e a prática do meu pai eu via-a, compreendia-a mas não podia fazer nada, não podia dizer isto ao meu pai, não podia dizer aos amigos dele, não podia dizer a ninguém. Estava lá naquele campo de concentração [no livro, Isabela Figueirado chama a Lourenço Marques um campo de concentração com cheiro a caril] e estava a ver o panorama todo e não podia dizer nada a ninguém e tinha oito anos e compreendia isso.

Quando foram os massacres que se seguiram à independência compreendi que era a justa retribuição. Não era possível o meu pai ter estado lá aqueles anos todos a tratar mal os seus empregados negros e não termos devida paga. E o meu pai teve muita sorte, porque os seus amigos das machambas morreram com uma catanada no pescoço. Claro que eu achava aquilo horrível mas tinha que estar sempre a fazer aquele trabalho de contextualização. Quando me vim embora fiquei muito aliviada. Ficava esquizofrénica se ficasse em Moçambique.

Estavam muito isolados no sítio onde viviam?

Não, tínhamos muitas famílias amigas. O que acontece é que eu não tinha autorização para brincar com outras crianças, era muito protegida pelos meus pais, provavelmente por ter sido uma filha tardia. Vivia muito encerrada com a minha mãe em casa. Lembro-me das festas do meu aniversário, e eu era a única criança, todos os convidados eram adultos, amigos dos meus pais. Por isso eu ouvia muito, porque não tinha nada para dizer, só podia ouvir.

A minha mãe tinha muito medo que eu fosse brincar com meninos pretos, porque sabia que eu não fazia a distinção. Penso que fui uma grande decepção para os meus pais, esperavam que fosse uma menina mais conservadora, mais obediente, que visse o mundo como eles o viam.
Mas no livro tudo se centra na figura do seu pai, que absorve a culpa de todos os colonos.

O meu pai foi um mediador entre mim e a realidade. Eu conhecia a realidade através dele e do mundo que ele trazia até mim. Portanto só posso culpar o meu pai. O colonialismo é o meu pai, a discriminação é o meu pai, porque foi o meu pai que eu vi fazer isso. Eu andava sempre com ele. Ele gostava muito de mim, levava-me para todo o lado.
A minha mãe não é parte activa nisto. Não culpo a minha mãe de nada. A minha mãe era a pessoa que me vestia, me penteava, que cuidava de mim, mas o meu pai era uma pessoa por quem eu tinha enorme admiração. Havia entre nós uma proximidade muito grande, um grande amor. Mas ele decepcionava-me com as suas acções. Eu não suportava ouvi-lo dizer coisas como "os pretos são uns cães".

A vossa relação modificou-se depois do regresso dele a Portugal?

Eu vivi sozinha durante dez anos, sem pais. Andei por vários sítios, estive num colégio, andei ao Deus dará. Ele voltou quando eu tinha 22 anos e julgava que eu tinha 12. A partir dessa altura a nossa relação foi terrível, porque éramos dois seres ideologicamente opostos, ele chamava-me comunista, eu chamava-lhe fascista. Mas ficavamo-nos muito pela política em Portugal.

Acho que nunca falei verdadeiramente com o meu pai sobre como ele me decepcionou por ser um racista. Era mais fácil a conversa sobre a política portuguesa do que perguntar-lhe: "diz-me lá porque é que tu sendo uma pessoa tão católica pudeste tratar um ser humano igual a ti tão mal". Nunca tive coragem para lhe dizer isso.

E continua a não ter resposta para essa pergunta?

Eles achavam que era legítimo. Não há uma resposta lógica, mas o meu pai acreditava que os negros eram inferiores aos brancos, que não eram tão inteligentes, e a força de trabalho deles era uma força bruta, a cabeça deles não dava. Acreditava que os pretos podiam ser homens bons, mas esses eram os que se davam bem com os brancos e obedeciam. O meu pai acreditava que essa era a ordem do mundo, era assim que as coisas eram, e não discutia isso como não discutia a existência de Deus.

Essa mentalidade continua hoje em muitas pessoas?

Acredito que a maior parte dos retornados estão integrados na sociedade portuguesa mas sobretudo os da idade do meu pai ou aqueles um bocadinho mais velhos que eu continuam a pensar exactamente como pensavam antes.

Qualquer esforço de verbalização disso da parte da sua geração implica uma ruptura violenta em relação aos pais.

Neste momento não sei quem, entre familiares e amigos, leu esse livro. Tenho receio do momento em que as pessoas chegarem ao pé de mim e disserem: "Isabel, li o que escreveste sobre o teu pai e Moçambique, estou muito decepcionada contigo, o que disseste é uma carrada de mentiras. Além disso traíste a memória do teu pai e isso é uma coisa muito feia". Mas não são mentiras.

Mas para si dizer a verdade era mais importante? É sempre uma questão de opção, é preciso sacrificar qualquer coisa.

Eu não podia esconder mais isto dentro de mim. Era uma coisa que precisava de dizer. Nem sequer foi uma opção. Sei que isto é verdade, e essa minha consciência da verdade basta-me.
Os livros que alimentam a nostalgia e a imagem idílica de Angola e Moçambique têm tido um grande sucesso.

Fico muito zangada sempre que vou a uma livraria e sou confrontada com um livro sobre essa imagem [idílica de África] - e depois começo a ler como era bom comer papaia, e como tínhamos uns criados que tratavamos muito bem, e como as roupinhas dos nossos filhos iam todas para eles. Acredito que haja pessoas que não tenham participado activamente em acções destas [de discriminação e violência], mas foram cúmplices, como na Alemanha.

Depois de escrever o livro sentiu-se liberta?

Sim, sobretudo depois de o enviar para a editora. Senti algum medo daqueles retornados que estão calados nos seus gabinetes de sucesso a dar ordens e a fazer de conta que nunca estiveram lá e que nunca foram como o meu pai, mas foram. Mas por outro lado senti-me muito aliviada.

O que sente em relação ao seu pai não tem também a ver com essa mágoa de ter sido deixada sozinha num país desconhecido aos doze anos?

Porque é que eu bato tanto no meu pai aqui? É pela questão do abandono? Não, é porque ele foi mesmo um grande filho da mãe. E porque fez coisas que não devia ter feito, porque as fez à minha frente, porque me magoou, e porque eu nunca lhe disse isso directamente e devia ter dito. E se digo com alguma violência é porque essa violência ainda não está totalmente gasta. Sinto ainda alguma raiva, mas é uma raiva boa porque se exprime, não está cá dentro a corroer-me.

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Foi no blog Mundo Perfeito (e agora no Novo Mundo) que os textos de Isabela Figueiredo começaram a aparecer. Escrevia sobre aquilo que durante anos não tivera coragem de enfrentar: a infância em Moçambique, o racismo dos colonos portugueses. E, sobretudo, do pai, essa figura que "trazia o mundo" até ela.

"Caderno de Memórias Coloniais", editado pela Angelus Novus, é um ajuste de contas com o pai morto. E com muitos retornados vivos. E com os que em Portugal os receberam e os maltrataram não percebendo que eles já tinham sido maltratados. É uma libertação de muita raiva.

Aquilo que conta no seu livro, a violência quotidiana dos brancos sobre os negros em Moçambique - e da forma crua como a conta - é um testemunho raro?

Nunca li nada sobre este assunto, não penso que tenha sido contado antes. Nós, retornados, não falamos disto uns com os outros, por pudor. Eu não tinha com quem falar. Lembro-me do [escritor angolano José Eduardo] Agualusa há 20 anos, depois de eu ter escrito uma coisa muito folclórica, muito suave, sobre Moçambique no "DN Jovem", me ter dito que eu não tinha contado a verdade. Não lhe disse que achava que ele tinha razão, mas tinha. Eu não estava a contar a verdade, não podia contar a verdade porque havia um pacto de fidelidade com o meu pai. Não podia falar daquelas coisas com o meu pai vivo, sabendo que ele ia ler.

O facto de não pertencer à classe média e média alta da então Lourenço Marques, de ser de uma classe mais baixa, era para si um problema?

A diferença de classes entre portugueses não é uma coisa que me preocupe, é uma coisa que para mim era normal. Eu era a filha do electricista, e gosto dessa ideia. Ouvia o meu pai falar sobre as casas dos senhores da alta, onde ele ia fazer as instalações. O meu pai era um homem pobre, foi para África porque precisava de ganhar dinheiro, estava sempre a dizer-nos que não éramos ricos, éramos remediados. Eu sabia o meu lugar no esquema da sociedade colonial.

Porque é que esse seu mundo, dos brancos mais pobres, nunca foi contado? Os relatos que existem sobre a vida nas ex-colónias são sobretudo sobre a guerra ou então livros mais nostálgicos.

Porque é o que se aceita. Quando chegámos a Portugal fomos muito maltratados. Eu era criança e fui muito maltratada pelos meus colegas, pelos meus familiares. Diziam que o meu pai e a minha mãe eram ladrões, que tínhamos tido pretos para nos lavarem os pezinhos e o rabinho. E que merecíamos ter perdido tudo.

Quisemos esquecer esse nosso passado, quisemos integrar-nos. Queríamos ser iguais aos outros, não queríamos ser retornados, queríamos ser portugueses. Por isso durante muito tempo não falávamos do passado e só dizíamos aquilo que era socialmente correcto. O que é que era aceitável? Participar na guerra colonial, que toda a gente está de acordo em dizer que foi má, morreu muita gente. Ou então relatos que começaram a aparecer há dois ou três anos, sobre os "fait-divers" da vida nas colónias, como era bom, tínhamos a nossa fazenda, a nossa quinta, a vida era suave e doce, tínhamos criados mas tratávamos todos nos nossos criados muito bem.

Existe uma ligação entre nós, retornados, todos vivemos as mesmas coisas. Aquilo que eu vi só eu é que vi? Os outros tinham os olhos tapados? Não pode ser.
Não tratávamos os negros como nos tratávamos uns aos outros. Mas dizer isso é admitir que afinal quando cá chegámos eles tinham razão quando diziam que andámos a tratar mal os negros e merecíamos tudo o que eles nos fizeram a seguir. Isso era verdade, mas quando chegámos cá já tínhamos pago um preço.

Tínhamos todos um acordo tácito para não falar, não revelar a verdade. Eu participava em convívios com o meu pai e a minha mãe, e a conversa sobre os negros era comum. O que é feito dos filhos dessas famílias que também estavam nessa mesa e também ouviam as conversas que eu ouvia? Têm que estar algures. Apagaram isso da memória? Muitas pessoas têm esse conhecimento mas não o revelam porque revelá-lo constitui uma traição aos pais. Para mim isto também não é fácil. Continuo a achar que de alguma forma é uma traição à memória do meu pai.

Tudo isto podia ser contado de uma forma em que não se expusesse tanto, mais ficcionada. Porque é que optou pela autobiografia?

Senti que não podia distanciar-me. A certa altura, teria talvez uns 20 anos, apercebi-me, porque as outras pessoas me diziam, que me tinha tornado uma pessoa violenta. Diziam-me que reagia com enorme violência.
O facto de ter sido testemunha de uma série de acções que me pareciam erradas e não poder dizer nada sobre elas tornou-me uma pessoa violenta. A minha expressão é violenta, escrevo de forma violenta. Não queria ficcionar, queria contar a verdade, a realidade com a crueza com que a vivi.

Diz numa entrevista no fim do livro que a sua escrita não foi sempre assim. Como chegou a esta escrita concentrada?

O primeiro livro que escrevi, há 20 anos, ganhou um prémio literário. Também era sobre África, mas era uma coisa ficcionada, e depois de o ter escrito queria escrever mais, queria tornar-me escritora. Mas não sabia sobre o que escrever, não tinha um tema, não podia escrever sobre aquilo que queria escrever. Foi preciso esperar muito tempo, que o meu pai morresse, que eu fizesse o luto dele, que fizesse uma série de anos de psicanálise, para ter vontade de escrever o que está aí. São coisas que precisava de dizer. Estavam aqui há muito tempo. Desde o tempo que eu cheguei cá aos doze anos e as pessoas me diziam "tu és uma retornada e andaste a roubar os pretos". Pagámos bem caro. Sofremos muito depois da independência lá, vimos muitas atrocidades, amigos da nossa família foram assassinados, vimos os corpos deles. Quando nos trataram mal à chegada esqueceram-se que já tinhamos sido maltratados.

Essa violência contra os brancos não alterou o seu olhar crítico em relação ao colonialismo?

Isso era o problema que eu tinha com o meu pai. Ele só conseguia ver um lado e eu estive dos dois lados ao mesmo tempo. Eu era uma miúda consciente, tive uma educação muito boa, o meu pai era um homem com bons valores, educou-me para compreender o outro, deu-me uma educação católica. Era um homem sensível e inteligente e essa incompatibilidade entre o discurso e a prática do meu pai eu via-a, compreendia-a mas não podia fazer nada, não podia dizer isto ao meu pai, não podia dizer aos amigos dele, não podia dizer a ninguém. Estava lá naquele campo de concentração [no livro, Isabela Figueirado chama a Lourenço Marques um campo de concentração com cheiro a caril] e estava a ver o panorama todo e não podia dizer nada a ninguém e tinha oito anos e compreendia isso.

Quando foram os massacres que se seguiram à independência compreendi que era a justa retribuição. Não era possível o meu pai ter estado lá aqueles anos todos a tratar mal os seus empregados negros e não termos devida paga. E o meu pai teve muita sorte, porque os seus amigos das machambas morreram com uma catanada no pescoço. Claro que eu achava aquilo horrível mas tinha que estar sempre a fazer aquele trabalho de contextualização. Quando me vim embora fiquei muito aliviada. Ficava esquizofrénica se ficasse em Moçambique.

Estavam muito isolados no sítio onde viviam?

Não, tínhamos muitas famílias amigas. O que acontece é que eu não tinha autorização para brincar com outras crianças, era muito protegida pelos meus pais, provavelmente por ter sido uma filha tardia. Vivia muito encerrada com a minha mãe em casa. Lembro-me das festas do meu aniversário, e eu era a única criança, todos os convidados eram adultos, amigos dos meus pais. Por isso eu ouvia muito, porque não tinha nada para dizer, só podia ouvir.

A minha mãe tinha muito medo que eu fosse brincar com meninos pretos, porque sabia que eu não fazia a distinção. Penso que fui uma grande decepção para os meus pais, esperavam que fosse uma menina mais conservadora, mais obediente, que visse o mundo como eles o viam.
Mas no livro tudo se centra na figura do seu pai, que absorve a culpa de todos os colonos.

O meu pai foi um mediador entre mim e a realidade. Eu conhecia a realidade através dele e do mundo que ele trazia até mim. Portanto só posso culpar o meu pai. O colonialismo é o meu pai, a discriminação é o meu pai, porque foi o meu pai que eu vi fazer isso. Eu andava sempre com ele. Ele gostava muito de mim, levava-me para todo o lado.
A minha mãe não é parte activa nisto. Não culpo a minha mãe de nada. A minha mãe era a pessoa que me vestia, me penteava, que cuidava de mim, mas o meu pai era uma pessoa por quem eu tinha enorme admiração. Havia entre nós uma proximidade muito grande, um grande amor. Mas ele decepcionava-me com as suas acções. Eu não suportava ouvi-lo dizer coisas como "os pretos são uns cães".

A vossa relação modificou-se depois do regresso dele a Portugal?

Eu vivi sozinha durante dez anos, sem pais. Andei por vários sítios, estive num colégio, andei ao Deus dará. Ele voltou quando eu tinha 22 anos e julgava que eu tinha 12. A partir dessa altura a nossa relação foi terrível, porque éramos dois seres ideologicamente opostos, ele chamava-me comunista, eu chamava-lhe fascista. Mas ficavamo-nos muito pela política em Portugal.

Acho que nunca falei verdadeiramente com o meu pai sobre como ele me decepcionou por ser um racista. Era mais fácil a conversa sobre a política portuguesa do que perguntar-lhe: "diz-me lá porque é que tu sendo uma pessoa tão católica pudeste tratar um ser humano igual a ti tão mal". Nunca tive coragem para lhe dizer isso.

E continua a não ter resposta para essa pergunta?

Eles achavam que era legítimo. Não há uma resposta lógica, mas o meu pai acreditava que os negros eram inferiores aos brancos, que não eram tão inteligentes, e a força de trabalho deles era uma força bruta, a cabeça deles não dava. Acreditava que os pretos podiam ser homens bons, mas esses eram os que se davam bem com os brancos e obedeciam. O meu pai acreditava que essa era a ordem do mundo, era assim que as coisas eram, e não discutia isso como não discutia a existência de Deus.

Essa mentalidade continua hoje em muitas pessoas?

Acredito que a maior parte dos retornados estão integrados na sociedade portuguesa mas sobretudo os da idade do meu pai ou aqueles um bocadinho mais velhos que eu continuam a pensar exactamente como pensavam antes.

Qualquer esforço de verbalização disso da parte da sua geração implica uma ruptura violenta em relação aos pais.

Neste momento não sei quem, entre familiares e amigos, leu esse livro. Tenho receio do momento em que as pessoas chegarem ao pé de mim e disserem: "Isabel, li o que escreveste sobre o teu pai e Moçambique, estou muito decepcionada contigo, o que disseste é uma carrada de mentiras. Além disso traíste a memória do teu pai e isso é uma coisa muito feia". Mas não são mentiras.

Mas para si dizer a verdade era mais importante? É sempre uma questão de opção, é preciso sacrificar qualquer coisa.

Eu não podia esconder mais isto dentro de mim. Era uma coisa que precisava de dizer. Nem sequer foi uma opção. Sei que isto é verdade, e essa minha consciência da verdade basta-me.
Os livros que alimentam a nostalgia e a imagem idílica de Angola e Moçambique têm tido um grande sucesso.

Fico muito zangada sempre que vou a uma livraria e sou confrontada com um livro sobre essa imagem [idílica de África] - e depois começo a ler como era bom comer papaia, e como tínhamos uns criados que tratavamos muito bem, e como as roupinhas dos nossos filhos iam todas para eles. Acredito que haja pessoas que não tenham participado activamente em acções destas [de discriminação e violência], mas foram cúmplices, como na Alemanha.

Depois de escrever o livro sentiu-se liberta?

Sim, sobretudo depois de o enviar para a editora. Senti algum medo daqueles retornados que estão calados nos seus gabinetes de sucesso a dar ordens e a fazer de conta que nunca estiveram lá e que nunca foram como o meu pai, mas foram. Mas por outro lado senti-me muito aliviada.

O que sente em relação ao seu pai não tem também a ver com essa mágoa de ter sido deixada sozinha num país desconhecido aos doze anos?

Porque é que eu bato tanto no meu pai aqui? É pela questão do abandono? Não, é porque ele foi mesmo um grande filho da mãe. E porque fez coisas que não devia ter feito, porque as fez à minha frente, porque me magoou, e porque eu nunca lhe disse isso directamente e devia ter dito. E se digo com alguma violência é porque essa violência ainda não está totalmente gasta. Sinto ainda alguma raiva, mas é uma raiva boa porque se exprime, não está cá dentro a corroer-me.