A secreta revolução rave já não é tão secreta

Foto

Diz-se um privilegiado por ter podido fotografar um fenómeno que foi uma revolução numa Inglaterra de rígidos costumes. Gavin Watson, fotógrafo, e o seu irmão, Neville, são os autores de "Raving '89", um livro editado pela DJHistory.com que reúne dezenas de fotografias (de Gavin) e alguns pequenos textos (de ambos os autores).

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Diz-se um privilegiado por ter podido fotografar um fenómeno que foi uma revolução numa Inglaterra de rígidos costumes. Gavin Watson, fotógrafo, e o seu irmão, Neville, são os autores de "Raving '89", um livro editado pela DJHistory.com que reúne dezenas de fotografias (de Gavin) e alguns pequenos textos (de ambos os autores).

É um dos raros documentos que fixam o ano de 1989, um capítulo dourado, mas desconhecido de muitos, da história da música de dança. As 192 páginas mostram pessoas a dançar totalmente entregues ao som (com a ajuda do ecstasy, que então chegava em força ao Reino Unido e à Europa), armazéns e estábulos transformados em enormes discotecas, gente de todas as classes sociais e raças em harmonia, com um mesmo objectivo: dançar até que chegasse o dia.

Antes de ser um "raver", Gavin Watson foi um "skinhead" (os aclamados livros "Skins" e "Skins and Punks" documentam esses tempos). No entanto, rapidamente se deixou contaminar pela folia libertária das raves, de onde emergiram músicos como 808 State, Soul II Soul e A Guy Called Gerald.

A euforia durou pouco tempo (no início dos anos 1990, as leis tornaram-se mais duras e a música de dança dividiu-se em várias cenas), mas deixou marcas irreversíveis, defende Gavin Watson, ao telefone com o Ípsilon. O fotógrafo quer que ninguém se esqueça que houve uma espécie de segunda revolução "hippie" em Inglaterra. "Durante um ano, tivemos uma janela para todos sermos livres", conta.

Passaram 20 anos sobre 1989. "Raving '89" foi uma forma de assinalar esse marco?

É engraçado, mas não foi planeado. O que me levou a fazer este livro foi ter constatado que nos últimos anos era conhecido apenas por "Skins" e "Skins and Punks". Não queria ser conhecido por isso para o resto da minha vida. Passei dois anos, enquanto andava a fazer publicidade aos outros livros, a dizer que ia fazer o "livro das raves", ainda sem editora. O Neville, que é produtor e DJ, contactou a DJHistory.com. E eles disseram que editavam o livro.

Quando ia às festas com uma câmara fotográfica, tinha já como objectivo documentá-las?

Sou um fotógrafo desde os 16 anos. Odiava levar a câmara - queria dançar, não queria tirar fotografias. Mas entrava sem pagar quando a levava porque os organizadores queriam fotografias para os "flyers". Por vezes, fotografava para a [agência inglesa] Camera Press. Publicaram algumas imagens ao longo dos anos.

O que é que o fez passar de "skinhead" a "raver"?

De repente, ser um "skinhead" parecia estupidamente irrelevante, quando tinha a oportunidade de conhecer pessoas, de sentir alegria e diversão - não apenas diversão arruaceira, de andar à porrada e fingir que isso é fixe. Depois de ir a uma rave, ser um "skin", um "rudeboy" ou um "rasta" preto parecia irrelevante; o que parecia relevante era chegar a estas festas e ser livre, não prestar atenção às botas, à forma como te vestias, como vivias.

"Raving '89" resgata do esquecimento uma espécie de utopia. Como é que nasceu um fenómeno daquela dimensão de um momento para o outro?

A Inglaterra é uma sociedade muito reprimida. O que quer que digam na comunicação social, o que quer que o mundo ache de Inglaterra, isto é a merda de Berlim Leste em 1974, há câmaras em todo o lado. Sempre fomos muito duros com quem luta pela liberdade. Durante um ano, tivemos uma janela para todos sermos livres, mas não durou muito até a polícia descobrir e isto ficar como é hoje - controlado. Tivemos a oportunidade de ser amigos de antigos inimigos e relaxar a sério pela primeira vez. As pessoas não se odiavam, estavam a gostar umas das outras. Toda a gente queria isso, sabendo ou não.

Parece uma segunda revolução "hippie", mas de curta duração. Quando é que as raves perdem o fulgor original?

1989, 1990... Quando as pessoas pensam em raves pensam em 1991, caras sorridentes, pessoas em "trips", mas o ano em que deviam pensar é 1989. Um ano. Depois, espalhou-se pelo mundo, as pessoas procuraram outros sítios, foram para a Índia... E a música de dança passou a estar em todo o lado: filmes, anúncios...

Uma coisa que desperta a atenção nas fotografias é a forma como as pessoas se vestem. Vêem-se fatos-macaco, "t-shirts" largas, roupas baratas, tudo muito diferente do que se passa actualmente nas discotecas. Não havia interesse em moda?

A pressão para aparecer bem em público tinha desaparecido. Antes havia os "yuppies", as marcas faziam milhões, toda essa merda dos anos 80 - pressão, pressão, pressão. "Que se foda a Armani, que se foda a Dolce & Gabbana, vou ali ao mercado por cinco libras e compro umas calças. São confortáveis para dançar". O que queríamos era estar confortáveis e a melhor forma de o fazer é com peças largas. Ainda hoje, o "mainstream" não suporta a cena rave porque não há nomes. Nos anos 60 havia o Mick Jagger, a Twiggy. Nas raves não há nomes, não há moda, nada saiu de lá a não ser a música. É por isso que pessoas como tu vêem o livro e dizem "Foda-se, isto aconteceu?".

Há uma fotografia em que vemos uma bola de espelhos montada num estábulo. É uma metáfora de toda a cena?

Os tipos que estavam nessa festa eram os tipos que iam para Londres, que gastavam centenas de libras em roupa, que andavam com BMW, para quem eu olhava e pensava "idiotas!", que nunca seriam meus amigos - porque eram ricos e eu era um "skinhead" da classe operária. Seis meses depois estávamos todos a dançar no mesmo estábulo! Foi um fenómeno, mudou o mundo e é preciso que se escreva sobre ele. Não foi uma piada, não eram putos em discotecas, foi tão maior do que isso.

As drogas, nomeadamente o ecstasy, tiveram importância nesse ambiente?

Não foram só as drogas. Toda a gente estava farta. Os seres humanos não foram feitos para andar sempre zangados e à luta. Queríamos divertir-nos sem lutar. Podíamos ter estado em gangues e andado à pancada, mas não demorou muito até apertarmos as mãos e dizer "Que se foda isso".

Os efeitos secundários do ecstasy ainda eram pouco conhecidos?

Mas ainda nem os provaram totalmente... Alguns idiotas começaram a tomar muitos por noite ou a misturar com outras coisas, com speed... Durante alguns meses foi puro e toda a gente experimentou. Mais tarde, a heroína e a cocaína voltaram, voltou a violência e toda a cena se dividiu outra vez - eu sou do drum'n'bass, ele é do hard house, isto é Detroit, a lista continua. Antes disso era apenas rave.

Porque é que isso aconteceu?

Não faço ideia. A um certo nível tudo se homogeneizou: vou a Portugal ou a Helsínquia e vejo as mesmas lojas, a mesma música, tudo; mas, noutro nível, toda a gente está no seu compartimento. Acho que as pessoas não estavam preparadas para ser tão abertas, tão humanas. De repente, tu, que tinhas sido abusado toda a vida - a Inglaterra pode ser muito dura e violenta -, estavas num campo algures a libertar todas as tuas emoções, todo o amor por toda a gente. É assustador se nunca tiveres sentido tal coisa [risos].

O que é que aconteceu às raves, depois de 1989?

Tornaram-se outra coisa: legais, organizadas, parte do sistema. Há uma coisa boa em serem legais: sabes que entras, que são bem organizadas e podes divertir-te sem a polícia. E tudo mudou: os "pubs" abrem até às quatro da manhã. Há mais opções, as pessoas ficaram mais europeias e mais confortáveis na rua.

Ainda há raves com o espírito de 1989?

Ainda. Fui a uma rave debaixo de uma auto-estrada. Era muito pequena, a música estava baixa. O espírito original ainda lá está. Sobretudo no interior, onde as raves te dão algo para fazer em vez de ires para o "pub". Mas não há festas gigantescas porque isto tornou-se um estado policial.

Aproveitaram-se do facto de os políticos não imaginarem que um fenómeno destes pudesse surgir de um dia para o outro?

Os políticos estão sempre dez anos atrás da rua. Não faziam ideia do que se passava. Os "skinheads" lutavam com a polícia, mas nas raves eu não queria saber da polícia. A polícia era algo que evitavas com o objectivo de chegar à rave.

No livro referem que, por vezes, a polícia até ficava contente: as ruas ficavam desertas, toda a gente estava nas raves. O que é que aconteceu, então, para que as raves acabassem?

Enviaram unidades de polícia especial para destruir as raves. Não foi a polícia local - isso seriam seis tipos a tentar parar 20 mil pessoas. E quando eras apanhado [pela polícia local], pensavas 'Bem, fizemos o nosso melhor'. Ambos sabíamos que era um jogo.

Que consequências sociais tiveram as raves?

Agora podemos ficar nos bares até às cinco da manhã. Quando as raves e a música de dança foram para Portugal ou Itália, foram uma extensão das discotecas, porque vocês sempre puderam festejar até depois das dez da manhã. Mas em Inglaterra foi uma revolução enorme porque os "pubs" fechavam às dez da noite antes das raves. As raves tornaram-nos mais europeus.

Foi o contexto inglês que deu às raves tamanho impacto?

As pessoas queriam algo diferente, mas não sabiam o que ia acontecer. Tudo estava a mudar, a Europa estava a mudar. Os ingleses iam à Grécia ou a Espanha e quando voltavam só podiam ir tomar um copo.

Os "ravers" chegaram a manifestar-se em Trafalgar Square por horários para festas menos apertados. Como é que conseguiram algumas mudanças nas leis?

As raves não eram uma coisa de putos mal amanhados: havia lordes, filhos de políticos, as classes mais altas, pessoas com ligações ao centro do Governo. Logo, algo que tinha que mudar. Gostava de ver um livro sobre a forma como isto mudou as coisas. O meu livro é só um primeiro passo. Em 1989, tudo mudou: o muro [de Berlim] caiu, aconteceu o massacre de Tiananmen...

Esse clima de mudança reflectiu-se nas raves?

Por trás das festas estava uma consciência universal da liberdade. Ao longo da história, as criaturas procuraram liberdade de movimentos, a coisa que os governos mais tentam parar. Isto foi a nossa expressão de liberdade, noutra altura poderia ter sido uma revolução violenta.

Poder-se-ia pensar que, depois dos skinheads e dos punks, apareceu outra subcultura, a dos "ravers". Mas o que o livro demonstra é que esteve muito longe de ser uma subcultura. O que é que a diferenciou?

Não eram adolescentes. Os putos com 14, 15, 16 anos olhavam para os irmãos mais velhos com inveja por não poderem ir às "raves". Foi um fenómeno dos 19 aos 35 anos. Não foi uma cultura juvenil, de maneira nenhuma. Eu tinha 23 anos. E não me sentia novo aos 23 anos.