Macau veio com os portugueses que regressaram

Foto
Manuel Vicente no seu apartamento em Lisboa Daniel Rocha

E hoje o espelho ali está, no seu apartamento no centro de Lisboa. Como está um "niño imperador" em madeira, que trouxe das Filipinas, uma tapeçaria Jean Lurçat que era dos bisavós, com borboletas azuis esvoaçantes, ou um crucifixo de prata usado em procissões que veio de casa dos seus pais. A lista poderia fazer-se bem mais longa.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

E hoje o espelho ali está, no seu apartamento no centro de Lisboa. Como está um "niño imperador" em madeira, que trouxe das Filipinas, uma tapeçaria Jean Lurçat que era dos bisavós, com borboletas azuis esvoaçantes, ou um crucifixo de prata usado em procissões que veio de casa dos seus pais. A lista poderia fazer-se bem mais longa.

Não se esperava, por isso, ouvir o que dirá a seguir: "A minha relação com o passado é um pouco solta. Não é desencanto, vivo bem rodeado por estas coisas todas. Mas coisas são coisas. Não há nada meu que não seja partilhável." E também: "Gosto dos objectos por eles próprios e não necessariamente pela memória que carregam. Não ligo à carga das coisas."

Isto não é um pormenor quando se trata de alguém que viveu com um pé na Ásia e outro em Portugal. Manuel Vicente gosta de viver o presente, "o futuro inventa-se". "Tenho desgostos e lutos como toda a gente, mas acabo por sobreviver." Não fica preso aos acontecimentos, como não fica amarrado aos objectos que estão à sua volta.

E assim se explica porque não há um antes e um depois na sua relação com Macau. Para o arquitecto, hoje com 75 anos, Macau foi sendo. A palavra "adaptação" não se lhe aplica. "Em qualquer sítio sinto-me em casa."

Veio para Lisboa depois da transferência - "em 1999 havia pouco trabalho e a minha mulher estava em conflito com Macau" -, mas se esta conversa tivesse decorrido há dois anos "ia dizer que nunca tinha regressado. Continuava a andar muito por lá". Tal como andava por cá, quando vivia em Macau. "Agora o atelier [que mantém com os seus sócios] está mais em crise."

Crise como, de certa forma, também está o território, e não estamos a falar de males financeiros. "Está a viver um período de medo: medo de fazer o que não deve, e por isso decide-se que o melhor é não fazer nada. Mas isso é só um período e Macau é como os gatos, tem várias vidas e recupera sempre."

Manuel Vicente saberá o que diz, porque em 1962, tinha ele 27 anos, assentou em Macau, já depois de uma estadia em Goa, e por ali foi ficando.

"Na Índia tinha sido um deslumbramento. Mas vivíamos à margem de um acampamento militar; em Macau não. A tropa era a tropa e ninguém era importante por ser a mulher do capitão." Ou melhor: "Ninguém era muito importante porque os ricos eram os chineses."

Era um sítio "menos transbordante" que Goa. "Tudo era poucochinho, pouco denso." Mas com muito pragmatismo. "Acabou-se o ópio, veio o ouro" - "Macau viveu sempre do que não era lícito. Isso é muito engraçado. É uma cidade de traficância, como Veneza também deve ter sido." E uma cidade dada a marginalidades.

Objectos são objectos, e há outros sinais de pertença. Que não o português. "A minha pátria não é a minha língua. A minha pátria é o bacalhau cozido com batatas", ri. Aprendeu cantonense, o "suficiente para apanhar um táxi". E inventou uma língua própria para comunicar com a empregada, meio português, meio chinês.

Manuel Vicente tem dezenas de obras construídas na cidade - incluindo um conjunto de prédios de habitação social que irá ser demolido, em Fai Chi Kei. Mas, em termos arquitectónicos, não se pode falar numa contaminação evidente. "A minha arquitectura pode ter feito com que os meus colegas lá tentassem fazer melhor, por haver um ponto de referência." De resto, e em sentido inverso, "a influência de Macau em mim não é muito consciente".

Mas revela-se. Como nesta casa, onde vive e onde a sua sogra, mal entrou, afirmou logo: "Nunca estive na China, mas este apartamento lembra-me a China." Provavelmente pelo encarnado que está presente em estantes, prolongando-se até às janelas e à lareira, nos pilares que separam a zona de estar da mesa de jantar. Uma cor que inevitavelmente transporta para os templos budistas.

"Gosto muito dos templos, dos corredores entre os espaços onde nada acontece: são exteriores ao templo, mas ainda estão dentro, fora do contexto, mas em contacto com o santuário... O silêncio e o barulho em simultâneo, os fumos negros, a mediação entre a rua e o pátio. Provavelmente, foram-me figurando o imaginário."

A espiritualidade urbana de Macau, diz, encontra-se nos templos e nas ruelas da cidade velha. "A arquitectura chinesa é mais de espaço do que de forma, ou desenho. Tem uma capacidade de configurar o espaço com recursos muito económicos, são poemas compostos sempre pelas mesmas palavras. O todo é que é importante e as partes são subsidiárias. Isso é que me marcou."

É raro o ano que não vai a Macau - 2009 será a excepção; em 2008 foi três vezes. "Sempre que volto, penso: "Que pena não ter ficado." Mas não sei se foi. Foi importante ter estado cá. É preciso estar atento à vida que passa por nós e ao que a intuição diz ser a coisa certa."

Se a vida lhe colocasse à frente um novo trabalho em Macau, Manuel Vicente - que ainda não sente que tenha regressado definitivamente a Lisboa - sabe qual seria a sua intuição. "Lá me metia num avião e ia."

"E cá estamos!"

Família Braga Gonçalves


José Alexandre, Celeste e João


Há caixotes e pacotes, obras na casa da família Braga Gonçalves, e por isso a conversa deslocou-se para um café. Em todo o caso, é como diz João, o filho, de 33 anos: "O meu Macau está comigo, está aqui."

"Aqui" é no coração dele, nas suas memórias, nos seus afectos. E se é verdade que João voltou a Portugal, também é verdade que muitos amigos vieram com ele. E "Macau é feito das pessoas". Por isso, foi um tempo que passou, de que tem saudades, mas ainda que a sua vida se transferisse de novo para lá, aquele já não seria o seu Macau.

Chegou ao território com 15 anos, deixando em Portugal um rapaz inadaptado, tímido, com dificuldade em estabelecer relações pessoais. Talvez porque tivesse passado algum tempo a saltar de um lado para o outro com os pais, José Alexandre e Celeste. "Em Macau surgiu a estabilidade. Foi onde eu ganhei as minhas capacidades sociais."

Ajudou o facto de a cidade ser pequena, de todos os portugueses se concentrarem nos mesmos espaços: "Havia um liceu português e pronto. Essa era a principal base [de encontro] mesmo quando não havia aulas." As alternativas eram o McDonald"s e os jardinas públicos. "Estávamos sempre juntos, de manhã na escola, e à tarde e à noite" noutro sítio qualquer. "Foi bom para criar bases."

Muitos adolescentes não pediriam mais. Uma cidade onde há "liberdade, segurança, muito acesso ao desporto: os espaços desportivos eram gratuitos". E onde não era obrigatório estar sempre com uma nota no bolso, porque inevitavelmente se encontrava alguém que pagava um copo.

A língua nunca foi uma barreira. Os colegas eram portugueses, ou macaenses, e aprende-se sempre qualquer coisa. De tal forma que, ainda hoje, pode haver alguma dificuldade em perceber que língua fala quando fala com os seus amigos: uma mistura de português, inglês e chinês.

Foi por decisão familiar que partiram - falta juntar ao quadro a filha, Inês, de 27 anos, que, já depois de ter tirado o curso em Inglaterra, estuda agora na Suécia. "Fomos todos em Dezembro de 1991", diz Celeste, médica, que despoletou a ida para a Ásia quando foi convidada para ir para o Hospital Conde São Januário.

Para José Alexandre, era como se o destino se estivesse a cumprir. "O meu pai era militar e tinha estado em Macau num momento crítico, durante a consolidação de Mao [Tsetung] no poder, na década de 1960. Havia muita tensão na fronteira [com a China]. Acabou por regressar e morreu pouco depois. Fiquei sempre a achar que seria bonito ir a Macau."

Começou por trabalhar no controlo e fiscalização farmacêutica, mas como não sabia chinês sentia-se "a fazer figura de parvo". Em 1993 foi para o Turismo, e foi ele o curador do Museu do Vinho.

Mãe e filha regressariam três anos depois da chegada. Pai e filho ficariam por mais tempo, já que havia trabalho para um e estudos para o outro.

"Não fomos para Macau atrás da árvore das patacas. E todos os benefícios económicos foram investidos na educação dos filhos", diz José Alexandre. Celeste acrescentará: "Somos uma família de funcionários. Macau não nos levou para negócios ou investimentos."

João tirou lá o curso de Educação Física, no Instituto Politécnico. E com a transferência de Macau para a China só via duas possibilidades de carreira: "Ficar a dar aulas na Escola Portuguesa, ou aulas de ginástica em hotéis." Preferiu regressar, em 2000.

Hoje pode dizer: "Estou perfeitamente adaptado a Portugal." Mas não foi fácil. "Estive seis meses em casa, até a minha mãe dizer "pronto, já chega". Muitos colegas, da minha geração, tiveram muita dificuldade, houve problemas com drogas, suicídios."

A ele ajudou-o ter uma base familiar forte. Conseguiu transplantar as suas raízes para aqui. Vários amigos aproveitaram a oferta de trabalho criada pelo boom dos casinos para voltar.

Para Celeste, "Macau ficou visto, ficou arrumado", diz. O filho é menos peremptório, até porque visita a cidade com frequência - prepara-se para lá ir passar o Natal com a namorada, macaense. "Macau deu-me aquilo que tenho hoje. Acho que me recriei lá. Ganhei asas. Mas consigo viver sem lá ir."

José, que regressou apenas há dois anos, lança para a mesa a carta de condução e o cartão de eleitor com caracteres chineses a acompanhar o português para provar: "Sou um cidadão de Macau." Depois ri, porque no fundo não é bem assim. "A família, que nos levou para lá, também nos trouxe de volta. E cá estamos!"

Fui retornada duas vezes

Deolinda Portela


A casa pode ser uma visita guiada ao passado. Mesas, cadeiras, caixas, caixinhas, animais, cestos, e budas, vários budas. Deolinda Portela guarda o seu mundo dentro da sala de estar, num apartamento em Lisboa. Índia, Tailândia, Nepal, mas sobretudo Macau.

Voltou para Portugal pouco depois da transferência do território para a China, já em 2000. "Foi um choque tremendo", diz esta engenheira de 54 anos. Como já tinha sido em 1975, quando trocou Luanda pelo Porto, para fazer o curso superior - "não vim para fugir de lá, vim para estudar", faz questão de sublinhar. O clima era difícil, as mentalidades muito diferentes. "Acabei o curso e só queria fugir dali." Não fugiu para longe, e deteve-se em Lisboa.

Tinha emprego, tinha marido, tinha um filho de seis anos quando, em 1983, surgiu a possibilidade de irem para Macau. "Fui e fiquei 15 anos. Aquilo tem muito mais a ver comigo."

Macau - "as luzes e o cheiro a especiarias, as cores, vermelho, dourado" - não é só Macau. É um ponto de partida. "Conheci a Ásia toda, e conheci mesmo, não passei por lá. Fazia duas, três viagens por ano, às vezes mais, juntando os feriados chineses e portugueses."

Foi uma relação de amor ódio, como gosta de ter com tudo. "Não há meios termos, e nisso sou como os chineses, yin e yang, sim, não, branco e preto. Daí a dificuldade que tenho em me encaixar neste esquema" de relações em Portugal. "Fala-se conforme as ligações, só fala quem tiver padrinhos, porque por mérito próprio ninguém vai lá."

Macau não é grande, e em pouco tempo conhecia a cidade como a palma da sua mão. É especialista em planeamento, e foi requisitada pelo governo local para os Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, e o Norte do território estava por sua conta. "Em Macau trabalhava-se e muito. [Os chineses] são pragmáticos e objectivos. Trabalhar é trabalhar, divertir é divertir. Cá trabalha-se muito pouco, há muita burocracia instalada, e há uma falta de responsabilidade e rigor de todas as "faces ocultas" que não deixam que Portugal siga o seu caminho."

São várias as críticas. "Muitos portugueses iam para lá com toda a arrogância, a achar que tinham muito para ensinar. Alguns até vinham das aldeias e chegavam ali e apanhavam um choque. Eu dizia-lhes: "Ensinem tudo o que puderem, mas primeiro aprendam.""

Foi lá que Deolinda aprendeu tudo o que sabe. Que se realizou profissionalmente, e que deu ao seu filho uma educação que ajudou a que hoje esteja a trabalhar como consultor da FIFA, em Zurique, especialista em propriedade intelectual. "Lá os miúdos eram muito mais bem formados. Recebiam outro background. O absentismo não existia, ninguém faltava. Havia todas as condições."

Rendeu-se ao confucionismo, passou a admirar a religião budista - "traz muito mais paz interior do que o cristianismo em que fui criada". Em Macau, estava no seu habitat.

"Macau é para retornados. São pessoas que têm muito mais abertura. Eu já fui retornada duas vezes." Corrige: "Aliás, eu não sou retornada. Só seria retornada se estivesse a voltar à minha terra, que é Angola." Não sente Portugal como terra sua. "Absolutamente nada."

Mas chegou um momento em que teve de tomar a decisão de voltar para Lisboa. "Vim por razões emocionais [separou-se]. E porque o meu contrato acabou e não foi renovado por Rocha Vieira, que foi o pior governador [e o último] que passou por Macau. No fundo, impediu que eu ficasse no território. Tudo junto, pensei: "Então, vou regressar." Foi a pior coisa que fiz. Estou arrependidíssima. Não tenho nada a ver com isto, aqui nada me dá alegrias."

Pôs todas as suas coisas num contentor - "houve gente que encheu vários, e o meu era dos pequenos" - e fez a viagem de volta exactamente no dia em que partira para Macau 15 anos antes: 29 de Agosto.

Não se colocava a questão de encontrar trabalho porque, tendo sido requisitada pelo governo de Macau, o seu lugar na EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa) estava à sua disposição. A cabeça vem fresca, cheia de "vontade de poder intervir, dando ideias de como se pode fazer diferente". Dura pouco. "Começavam a olhar, espantados primeiro, depois pensavam "está-se a armar". Senti logo que ia sofrer, que não me iria adaptar."

Em Fevereiro, e pela primeira vez desde que partiu, vai visitar Macau. Com uma certeza: tal como os "portugueses que partiam das aldeias", também ela irá apanhar um choque. "Mas tenho a certeza de que vou gostar muito. Ou vou odiar."Os Braga Gonçalves (só falta a Inês): José Alexandre, Celeste e o filho João. "Somos uma família de funcionários. Macau não nos levou para negócios ou investimentos"Deolinda Portela voltou para Portugal pouco depois da transferência do território para a China, já em 2000. "Foi um choque tremendo", diz esta engenheira de 54 anos.