Jogo

Imaginemos o ciberpunk vintage de William Gibson (fase "Neuromante") revisto e regurgitado em 16ª mão por um filtro misto de "trash" e "exploitation" de baixo orçamento de Hong Kong e desconstruído pela câmara virtual de um video-jogo de luxo - e nem assim chegamos perto do absoluto esgrouviamento xunga-ultra-violento de "Jogo".

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Imaginemos o ciberpunk vintage de William Gibson (fase "Neuromante") revisto e regurgitado em 16ª mão por um filtro misto de "trash" e "exploitation" de baixo orçamento de Hong Kong e desconstruído pela câmara virtual de um video-jogo de luxo - e nem assim chegamos perto do absoluto esgrouviamento xunga-ultra-violento de "Jogo".


A dupla Neveldine/Taylor, vinda da publicidade, já tinha avisado ao que vinha em "Veneno no Sangue" (2006): misto de acção cinética non-stop e uma boa ideia explorada para lá do cansaço, literalmente a esgotar o espectador - mas, aqui, esse virtuosismo hiperactivo cola-se a uma excelente ideia como um "shot" de adrenalina que se estica para lá do que é aceitável e revela como quem não quer a coisa o lado negro da emoção barata. Tudo se passa num futuro próximo onde os jogadores, em vez de controlarem avatares virtuais, controlam seres humanos verdadeiros através de nano-tecnologia implantada no cérebro, numa espécie de circo romano global declinado nas versões "gladiador" e "bordel".

Neveldine e Taylor instalam neste universo sórdido e hipócrita (que é suposto evocar o nosso mundo) uma espécie de "remake" xunga do "Gladiador" de Ridley Scott sobre um militar otário falsamente condenado (Gerard "Leónidas" Butler), obrigado a matar ou morrer e disposto a tudo para escapar ao controle do mestre-marionetista (Michael "Dexter" Hall) e salvar a esposa e a filha. O que torna "Jogo" de simples exercício inane de "trash" derivativo-descartável num dos mais intrigantes objectos saídos do cinema americano recente é a força niilista de uma premissa que vai directa aos extremos e não modera nem adoça a sua escuridão, que tem tanto de sátira escuríssima à sociedade do espectáculo como de "voyeurismo" gratuito e perturbante, como quem quer jogar ao mesmo tempo em dois tabuleiros incompatíveis e se marimba se a coisa corre bem desde que se tenha tentado. Digamos que nos faz um bocado confusão como é que um filme pode ser tão deliberadamente estúpido - a não ser que essa estupidez seja apenas uma fachada deliberada. E talvez estejamos a (tres)ler mais do que "Jogo" tenha para dar. Mas num momento em que a comédia se afina cada vez mais pelo diapasão do humor aparentemente desengraçado e desconfortável e em que as fitas de acção mainstream estão cada vez mais sanitizadas e edulcoradas, um objecto feio, mal-encarado, mal-disposto, violento e que não só não pede desculpa de o ser como o assume com um orgulho quase inconsciente como "Jogo" é qualquer coisa digna de registo.