A longa caminhada de Francisco Ribeiro

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"Desiderata" mistura instrumentos clássicos com uma sonoridade mediterrânica

Francisco Ribeiro andou desaparecido 12 anos. Desaparecido do olhar público, entenda-se. Violoncelista, fundador dos Madredeus, acompanhou-os até 1997. Depois disso, deixámos de o ver. Passara os "vintes" com a banda de "Espírito da Paz", compondo, gravando e tocando mundo fora. Durante esses anos, a vida dele foi aquela banda. Não havia tempo para mais nada. Com "Desiderata A Junção do Bem", a sua estreia a solo, agora editada, acontece precisamente o contrário. Digamos que o álbum é filho destes últimos 12 anos, que é filho do tempo.

Que aconteceu entretanto? Francisco Ribeiro foi para Bath. Recomeçou os estudos: "Música e tecnologia", uma especialização em "violoncelo e composição". Chegou lá "miúdo com talento", descreve ao Ípsilon numa esplanada lisboeta, absorveu "a racionalidade, o método e a coerência dos ingleses" e chega-nos agora "munido de técnicas e formação" que lhe permitem explorar melhor o tal talento que tinha em miúdo. "Voltei em 2006 e foi como se uma vela estivesse apagada. Só tive de acender o pavio outra vez". Ou seja, compôs. Durante quatro meses, disciplinado: "Acordava, trabalhava de manhã, almoçava, tomava café e voltava a casa. Trabalhava durante a tarde e, à noite, saía um bocado, via amigos, punha-me em contacto com a realidade". Tudo muito metódico: "Nem pensar em grandes festas. Isso é um mito. Além disso, já o fiz no passado e não me interessa. Já tive a fase rock'n'roll e muita euforia com os Madredeus". Ouvimos "Desiderata A Junção do Bem" e não duvidamos.

Mesquita e casa de fados

Gravado com a Orquestra Nacional do Porto, dirigida pelo maestro britânico Mark Stephenson, "Desiderata" conta com a participação das cantoras Filipa Pais, Natália Casanova e Tanya Tagaq (intérprete canadiana de "throat singing" celebrizada pelas colaborações com Björk), do fadista José Perdigão e do guitarrista José Peixoto, também ele um ex-Madredeus. É um álbum de digressões interiores, grito íntimo que ecoa à distância: "O caminho que percorri é o do autoconhecimento. Foi isso que tive de fazer quando me retirei do país. Quase um retiro espiritual que a música reflecte". Com um ponto comum: "o amor", a palavra mais repetida ao longo do disco, "que é realmente a linguagem universal" e surge reflectido nas suas diversas formas. "A mais baixa de todas, a obsessão", a "tristeza da rejeição", "o amor do perdão como acto de compaixão" e a "'Junção do Bem', que é o título do álbum e que representa a verdadeira comunhão". Francisco Ribeiro juntará outro a estes amores: "O amor sacro, quase monástico". Fá-lo para acrescentar, como que em aparte, "que Portugal é um país de expiação, que andamos a expiar pecados há muitas gerações e por isso é que isto não muda".

Aqueles apartes são habituais na entrevista. Esteve 12 anos distante, está entusiasmado com este recomeço e tem muito que contar. Por isso, a conversa salta de um assunto para o outro e ganha rumos inesperados. Como quando nos diz que "Entrega" segue a tradição dos adágios de Mahler, que em "Ritual novo" explorou as notas de uma raga indiana, para depois se firmar em território rock: "Apareceu tanta música nova a partir de 2000. Foi tão bom, tão generoso". Que música? "Pós-rock, só estou a falar de pós-rock", esclarece peremptório. "Do resto, para mim, já chega. Já nem se pode ouvir". Prossegue: "Neste disco, em termos de estrutura, fui buscar muitas influências ao pós-rock de A Silver Mt. Zion, aos Godspeed You! Black Emperor, que adoro, mesmo aos Sigur Rós. Experiências musicais que de certa forma já vivi nos anos 1970 com os Genesis. Esta é uma segunda vaga dessas ideias, mas melhor pela variedade e com mais qualidade de som".

Se há algo que lhe agrada no novo século é precisamente "a diluição de fronteiras e o cruzamento de estilos". O disco é precisamente isso. Falou-nos antes do pós-rock, fala-nos agora de "Desiderata" como uma mescla de "instrumentos clássicos com uma sonoridade mediterrânica", onde cabem "modos portugueses e ibéricos". Porque Francisco Ribeiro conta-nos de druidas e de peregrinações a Glastonbury, da ideia de "saudade" como a "necessidade de voltar ao descanso materno, à fonte" mas, quando dizemos que a forma como canta está algures entre minarete de mesquita e casa de fados de Alfama, sorri: "Tem o gargarejo moçárabe, não é? Há uma intenção de ter presente esse lado mediterrânico, também pela língua portuguesa, mas nesse caso é para onde me dirijo naturalmente. Não há nada a fazer, são as minhas raízes algarvias".

"Desiderata" tem como mote o poema homónimo, única obra do americano Max Ehrmann. Francisco Ribeiro inscreveu os primeiros versos no CD: "Vai placidamente no meio do barulho e da confusão, lembrando-te de quanta paz existe no silêncio". Placidamente, metodicamente, Francisco Ribeiro regressou 12anos depois. Sem saudades do passado: "Os Madredeus foram uma odisseia e formaram-me em muitos aspectos, mas naquela altura tinha de parar. Houve mesmo zanga. Egos, dinheiros, escolhas musicais diferentes... Parecíamos os Beatles. Adorei, mas ainda bem que acabou. Pude seguir o meu caminho, pude aprofundar-me".
Eis então "Desiderata", o primeiro ponto de paragem no longo caminho percorrido por Francisco Ribeiro desde que, no século passado, deixámos de ouvir falar dele.

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Francisco Ribeiro andou desaparecido 12 anos. Desaparecido do olhar público, entenda-se. Violoncelista, fundador dos Madredeus, acompanhou-os até 1997. Depois disso, deixámos de o ver. Passara os "vintes" com a banda de "Espírito da Paz", compondo, gravando e tocando mundo fora. Durante esses anos, a vida dele foi aquela banda. Não havia tempo para mais nada. Com "Desiderata A Junção do Bem", a sua estreia a solo, agora editada, acontece precisamente o contrário. Digamos que o álbum é filho destes últimos 12 anos, que é filho do tempo.

Que aconteceu entretanto? Francisco Ribeiro foi para Bath. Recomeçou os estudos: "Música e tecnologia", uma especialização em "violoncelo e composição". Chegou lá "miúdo com talento", descreve ao Ípsilon numa esplanada lisboeta, absorveu "a racionalidade, o método e a coerência dos ingleses" e chega-nos agora "munido de técnicas e formação" que lhe permitem explorar melhor o tal talento que tinha em miúdo. "Voltei em 2006 e foi como se uma vela estivesse apagada. Só tive de acender o pavio outra vez". Ou seja, compôs. Durante quatro meses, disciplinado: "Acordava, trabalhava de manhã, almoçava, tomava café e voltava a casa. Trabalhava durante a tarde e, à noite, saía um bocado, via amigos, punha-me em contacto com a realidade". Tudo muito metódico: "Nem pensar em grandes festas. Isso é um mito. Além disso, já o fiz no passado e não me interessa. Já tive a fase rock'n'roll e muita euforia com os Madredeus". Ouvimos "Desiderata A Junção do Bem" e não duvidamos.

Mesquita e casa de fados

Gravado com a Orquestra Nacional do Porto, dirigida pelo maestro britânico Mark Stephenson, "Desiderata" conta com a participação das cantoras Filipa Pais, Natália Casanova e Tanya Tagaq (intérprete canadiana de "throat singing" celebrizada pelas colaborações com Björk), do fadista José Perdigão e do guitarrista José Peixoto, também ele um ex-Madredeus. É um álbum de digressões interiores, grito íntimo que ecoa à distância: "O caminho que percorri é o do autoconhecimento. Foi isso que tive de fazer quando me retirei do país. Quase um retiro espiritual que a música reflecte". Com um ponto comum: "o amor", a palavra mais repetida ao longo do disco, "que é realmente a linguagem universal" e surge reflectido nas suas diversas formas. "A mais baixa de todas, a obsessão", a "tristeza da rejeição", "o amor do perdão como acto de compaixão" e a "'Junção do Bem', que é o título do álbum e que representa a verdadeira comunhão". Francisco Ribeiro juntará outro a estes amores: "O amor sacro, quase monástico". Fá-lo para acrescentar, como que em aparte, "que Portugal é um país de expiação, que andamos a expiar pecados há muitas gerações e por isso é que isto não muda".

Aqueles apartes são habituais na entrevista. Esteve 12 anos distante, está entusiasmado com este recomeço e tem muito que contar. Por isso, a conversa salta de um assunto para o outro e ganha rumos inesperados. Como quando nos diz que "Entrega" segue a tradição dos adágios de Mahler, que em "Ritual novo" explorou as notas de uma raga indiana, para depois se firmar em território rock: "Apareceu tanta música nova a partir de 2000. Foi tão bom, tão generoso". Que música? "Pós-rock, só estou a falar de pós-rock", esclarece peremptório. "Do resto, para mim, já chega. Já nem se pode ouvir". Prossegue: "Neste disco, em termos de estrutura, fui buscar muitas influências ao pós-rock de A Silver Mt. Zion, aos Godspeed You! Black Emperor, que adoro, mesmo aos Sigur Rós. Experiências musicais que de certa forma já vivi nos anos 1970 com os Genesis. Esta é uma segunda vaga dessas ideias, mas melhor pela variedade e com mais qualidade de som".

Se há algo que lhe agrada no novo século é precisamente "a diluição de fronteiras e o cruzamento de estilos". O disco é precisamente isso. Falou-nos antes do pós-rock, fala-nos agora de "Desiderata" como uma mescla de "instrumentos clássicos com uma sonoridade mediterrânica", onde cabem "modos portugueses e ibéricos". Porque Francisco Ribeiro conta-nos de druidas e de peregrinações a Glastonbury, da ideia de "saudade" como a "necessidade de voltar ao descanso materno, à fonte" mas, quando dizemos que a forma como canta está algures entre minarete de mesquita e casa de fados de Alfama, sorri: "Tem o gargarejo moçárabe, não é? Há uma intenção de ter presente esse lado mediterrânico, também pela língua portuguesa, mas nesse caso é para onde me dirijo naturalmente. Não há nada a fazer, são as minhas raízes algarvias".

"Desiderata" tem como mote o poema homónimo, única obra do americano Max Ehrmann. Francisco Ribeiro inscreveu os primeiros versos no CD: "Vai placidamente no meio do barulho e da confusão, lembrando-te de quanta paz existe no silêncio". Placidamente, metodicamente, Francisco Ribeiro regressou 12anos depois. Sem saudades do passado: "Os Madredeus foram uma odisseia e formaram-me em muitos aspectos, mas naquela altura tinha de parar. Houve mesmo zanga. Egos, dinheiros, escolhas musicais diferentes... Parecíamos os Beatles. Adorei, mas ainda bem que acabou. Pude seguir o meu caminho, pude aprofundar-me".
Eis então "Desiderata", o primeiro ponto de paragem no longo caminho percorrido por Francisco Ribeiro desde que, no século passado, deixámos de ouvir falar dele.