Jello Biafra, o Capitão América
Para falar ao telefone com Jello Biafra é preciso ouvir um discurso de quase dois minutos em que o ex-Dead Kennedys recita quantos mil milhões foram gastos (ou desperdiçados) em guerras (da Coreia ao Iraque) e em empreendimentos como a corrida espacial e a salvação dos bancos falidos nos últimos tempos de crise financeira. É apenas a mensagem do atendedor de chamadas, mas confirma o que já suspeitávamos: tudo em Biafra é político. Jello estreia-se hoje em Portugal, num concerto em Corroios com a sua nova banda, os Guantanamo School of Medicine.
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Para falar ao telefone com Jello Biafra é preciso ouvir um discurso de quase dois minutos em que o ex-Dead Kennedys recita quantos mil milhões foram gastos (ou desperdiçados) em guerras (da Coreia ao Iraque) e em empreendimentos como a corrida espacial e a salvação dos bancos falidos nos últimos tempos de crise financeira. É apenas a mensagem do atendedor de chamadas, mas confirma o que já suspeitávamos: tudo em Biafra é político. Jello estreia-se hoje em Portugal, num concerto em Corroios com a sua nova banda, os Guantanamo School of Medicine.
"Flashback" até ao início da década de 1980. Os Dead Kennedys eram uma das bandas fundamentais da cena punk/hardcore de São Francisco e Biafra um jovem que descobria os encantos da agitação política. Em 1979, um ano antes do primeiro disco dos Dead Kennedys, o vocalista concorreu a "mayor" de São Francisco. Entre as propostas estavam ideias como pôr os homens de negócios a vestirem-se de palhaços. Ficou em quarto lugar entre dez candidatos.
Os Dead Kennedys eram punk, mas criticavam os dogmas da subcultura ("A alegria e a esperança de uma alternativa tornaram-se no seu próprio cliché", cantava em "Chickenshit conformist") com a mesma violência e a mesma ironia com que batiam na maioria moral americana (que lhes respondeu com um processo em tribunal por causa de um poster obsceno, da autoria de H. R. Giger), o fundamentalismo religioso ou a política made in USA.
Hoje, Biafra tem 51 anos, mas não está mais mole ou conformado. Está de regresso com a primeira banda "normal" desde há muito tempo, depois de colaborações com os Melvins, membros dos Ministry nos Lard e grupos "ad hoc". "Sempre quis ter uma banda, mas aparecem sempre coisas. Boas aventuras, aventuras más, aventuras mesmo feias com os ex-membros de Dead Kennedys [Biafra e a banda opuseram-se em tribunal devido a pagamento de "royalties"] - sinto que me casei com a máfia. Mas vi os Stooges no 60.º aniversário do Iggy Pop, gostei muito do concerto e pensei: 'Merda, no próximo ano vou ter 50 anos. Tenho de fazer alguma coisa", conta ao Ípsilon.
E fez. Juntou-se a Billy Gould, baixista do Faith No More, aos guitarristas Ralph Spight e Kimo Ball e ao baterista Jon Weiss e fez "The Audacity of Hype", disco que navega no rock hiperactivo que marca quase todo o seu percurso pós-Dead Kennedys. O título brinca com um livro de Barack Obama ("The Audacity of Hope") e a capa é uma óbvia alusão ao cartaz de Shepard Fairey que foi usado na campanha do actual Presidente. Surpresa: é o próprio Fairey que assina a capa. "Achei óptimo que o Shepard tenha concordado em fazê-la. Só queria a permissão dele para gozar com a imagem, já que é um amigo meu. Telefonei-lhe a perguntar 'Posso gozar com a tua imagem?'. Ele respondeu-me: 'Posso ser eu a fazê-lo?'".
Será este o primeiro manifesto anti-Obama de uma cena musical que no ano passado embarcou no entusiasmo em torno do então candidato? Jello diz que é mais um abanão na consciência colectiva. "É suposto fazer pensar, pôr as pessoas a verem para além da propaganda e da miragem. Se realmente queremos a mudança não podemos esperar que seja um Messias tipo estrela rock que a traga, temos que lutar por ela. O perigo é o mesmo que quando apareceu Bill Clinton: 'Bush foi embora, podemos dormir calmamente'. E toda a gente adormeceu".
"Talvez ele [Obama] seja um tipo melhor. Gosto de vê-lo na televisão, é um óptimo orador", concede. Mas "as pessoas ainda estão fixadas na ideia de Obama, sem estarem a fazer a sua parte para o obrigar a fazer as coisas certas. Temos a primeira oportunidade em 20 anos para corrigir o nosso sistema de saúde e Obama está a desperdiçá-la e a ceder demasiado às companhias de seguros".
O louco no fundo do bar
A idade costuma amaciar muitos ex-punks empedernidos. Biafra está, porventura, mais politizado do que nunca. "Há mais razões para estar zangado", confirma. A década que agora termina tem-lhe dado razões para isso: a América pós-11 de Setembro tornou-se paranóica com a sua segurança, empreendeu duas guerras sem fim à vista e, como se tal não bastasse, sofre uma crise económica motivada pelos excessos do capitalismo (Obama, "em vez de pôr os banqueiros na prisão, deu-lhes mais dinheiro", critica).
Seriam motivos de sobra para do outro lado da linha encontrarmos um homem amargurado. Mas há um óbvio prazer, quase didáctico, na forma como Jello explica o que vai mal e porquê (e quer também aprender: pergunta-nos coisas sobre Salazar e mostra-se conhecedor de Spínola e do seu monóculo desde tenra idade, quando devorava notícias). "Ficaria muito deprimido se não tivesse um sentido de humor doentio. E tenho veículos para as minhas ideias estranhas e para a minha raiva: tenho a banda, tenho a 'spoken word', as pessoas ainda me ouvem. De outra forma seria apenas o louco no fundo do bar que ninguém quer ouvir", diz, a rir-se.
Biafra não é o louco no fundo do bar. À boa maneira punk, cavou o seu espaço, onde opera segundo as suas regras. Em 2000, foi candidato à presidência norte-americana pelo Green Party (e há quem defenda na Internet que concorra às eleições presidenciais de 2012); dirige a Alternative Tentacles, importante editora independente; os seus espectáculos e discos de "spoken word", que o têm levado a auditórios e universidades, são dos mais representativos da vertente política desta forma de arte; e envolveu-se em movimentos como o Punk Voter, uma plataforma para pôr os jovens, punks ou não, a votar contra George W. Bush.
"Não votar é o mesmo que votar nos republicanos. Porque permite-se que eles cheguem lá", refere. Biafra aposta no apelo ao voto (ponto em que se distancia da tendência anarquista do punk), mas também na acção directa. Exemplifica com algo que lhe dá "alguma esperança" no cenário de crise nos EUA, em que os despejos por dívidas ao banco se tornaram habituais: "Há brigadas organizadas em algumas cidades para proteger as pessoas dos bancos: se o banco ameaça tirar as pessoas de casa, os vizinhos aparecem, põem a mobília outra vez dentro de casa e chamam os 'media' para que os bancos fiquem com má imagem".
A política, continua, tem de voltar a estar na rua: "A insurreição e a rebelião têm de acontecer nas ruas, nas cabinas de voto e com o nosso dinheiro. Digo constantemente isto às pessoas nos meus espectáculos de 'spoken word' e na letra de 'I won't give up': 'Não dês o teu dinheiro às más pessoas, tenta dar o menos possível às grandes empresas'. Por vezes, funciona. A Nestlé foi muito prejudicada por boicotes, a Coca-Cola não está a ser prejudicada tanto quanto devia".
"I won't give up", a última canção de "The Audacity of Hype", é um manifesto de intenções, o "primeiro tiro" de Biafra "na administração e na era Obama". "À minha modesta maneira, prefiro fazer história do que vê-la na televisão", proclama na canção. "Quero influenciar a história no meu pequeno raio de acção. Foi por isso que fiz muito barulho quando tentaram censurar uma imagem de um disco dos Dead Kennedys", diz.
No "spoken word" sente-se particularmente recompensado quando actua em universidades de "cidades pequenas e remotas", em que dois terços da plateia estão lá porque "não havia nada para fazer". Nos concertos dos Guantanamo School of Medicine, tem ficado surpreendido pelo interesse nas novas canções, e não apenas nos clássicos dos Dead Kennedys. "O punk tornou-se conservador musicalmente e artisticamente medricas. Isto não se aplica a todo o punk, mas aplica-se a muito. As pessoas que querem nostalgia ou ouvir punk de uma só forma vão ficar surpreendidas", adianta Biafra, um assumido viciado em discos de vinil (com gostos que vão dos psicadélicos Hawkwind à música "outsider"): "É a vantagem de eu ser ainda um fã: tens punk, psicadelia, surf, música mais pesada, tudo misturado num só grupo".
Em Corroios, os Guantanamo School of Medicine não vão, definitivamente, ser os Dead Kennedys que nunca tivemos, avisa Biafra: "Esta não é um banda de nostalgia - claro que vou tocar algumas canções de Dead Kennedys, mas isto é uma banda nova. Vou tocar canções novas porque sou de um tempo em que não queríamos ser da 'velha escola'". E conclui, com uma referência aos Eagles, símbolo dos monstros do rock que Biafra, como bom punk, tanto odeia: "Estávamos a destruir a 'escola', estávamos a queimar o 'Hotel California'".