Reportagem: Aminatu passeou e brincou numa noite sem lua

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Borja Suarez/Reuters

Segunda-feira de manhã, por exemplo, horas depois da visita dura do juiz, reagiu ficando mais forte. Ontem não se sabe o que foi. Mas depois de um dia quase sem movimento e de duas saídas para ir à cada de banho, às oito da manhã e às dez da noite, Aminatu teve vontade de dar um passeio.

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Segunda-feira de manhã, por exemplo, horas depois da visita dura do juiz, reagiu ficando mais forte. Ontem não se sabe o que foi. Mas depois de um dia quase sem movimento e de duas saídas para ir à cada de banho, às oito da manhã e às dez da noite, Aminatu teve vontade de dar um passeio.

O acampamento montado no parque de estacionamento do aeroporto de Lanzarote já tinha acalmado. A paella, trazida em braços por Pepe e pela mulher - o aeroporto decidiu encerrar o parque, não permitindo a entrada a quaisquer viaturas durante a noite, ao contrário do que costuma acontecer - já tinha sido comida e elogiada. O pudim, dulcíssimo, também. Os jornalistas já tinham regressado a casa, aos hotéis. Alguns voluntários também. Outros terminavam as conversas do dia, descobriam parentescos, amigos comuns, contavam como na aldeia galega onde nasceram há 900 habitantes e todos são primos.

E foi então que a porta se abriu. Fernando Peraita pôs-se em posição, agarrando na cadeira de rodas que sempre está do lado de fora. Do outro lado da porta, Edi Escobar ajudava Aminatu Haidar a sentar-se. Viraram a cadeira e ela ficou sentada de frente para quem estava. Nem todos se aperceberam de imediato. Ninguém o esperava.

Primeiro, sorriu, muito, muitas vezes. Acenou a uns e a outros. Puxou a manta castanha comprida mais para cima. Lanzarote é a ilha das Canárias mais próxima da costa africana. O clima lembra o deserto: sol quente de dia, frio de rachar ao anoitecer.

Fernando e Evi ficaram ali, de volta dela, durante alguns momentos. Aminatu disse qualquer coisa ao Fernando, depois a Omar, representante da Frente Polisário.”Queres dar uma volta?”, perguntou Edi. “Vamos ver a lua”, disse alguém.

“A lua não vê.” Um homem dá saltos, espreita para lá do telheiro das paragens de autocarro. “Pois não se vê, está escondida. Mas ali ao fundo vêem-se estrelas.” Não há lua. “Que apareça a lua!”, pede uma das voluntárias e ri.

Aminatu não viu a lua, mas passeou. Edi e Fernando levaram-na até ao fundo do parque de estacionamento, desde o lugar 40, onde fica o seu quarto, até ao 48, o último do lado do parque onde ficam as divisões que serviam de escritórios aos motoristas e agora servem de apoio a Aminatu. Passando pelo telheiro onde dormem alguns saruís, que pelas 22h58 já tinham montado o iglu rosa e verde e pendurado duas bandeiras do Sara Ocidental por cima dos colchões. O passeio prosseguiu, deram a curva ao fundo do parque, chegando quase até ao portão onde um guarda assegurava que os carros não entravam. Detiveram-se. Alguns sarauís seguiram-nos, mas pararam a meio, dando-lhe espaço, aguardando pelo regresso. Um dos documentaristas de serviço, vestido para o frio, com uma túnica beduína e um lenço enrolado à cabeça, filmou-a de longe.

Em Sintra, como em Hollywood

De regresso, pelo mesmo caminho, os sarauís voltaram a cercar a cadeira de rodas e reiniciam a marcha. Aminatu ainda não quer voltar para dentro. Pára diante do seu quarto. Edi começa a empurrar a cadeira na outra direcção, a caminho do terminal 1 do aeroporto. Há mais gente que se aproxima, os voluntários que até esse momento tinham assistido ao passeio à distância. Quem está não resiste a aproximar-se. Fernando: “Aminatu, esta é Sofia, uma jornalista portuguesa”. “Encantada”, diz, enquanto estende as mãos. Fernando: “Lembras-te quando estiveste em Lisboa? Levaram-te à praia para te tirarem fotografias. Parecia que estavas em Hollywood.” Sim, “foi em Sintra”, acrescenta alguém.


“Não me disseste que havia paella”, diz Aminatu. Todos se riem. Uns metros à frente está a mesa montada em cima de três pernas de estirador, por cima estão os restos, poucos. Aminatu sorri e tapa o nariz, o rosto. “Para ali não, o cheiro faz-lhe impressão”, diz alguém.

Meia volta, ainda não é tempo de voltar a entrar. Ela quer parar já ali. Agora todos a rodeiam, ninguém se afasta. “Dêem-lhe espaço”, pede Edi.

“Não lhe toquem muito, nem lhe dêem beijos, por favor.” Todos têm medo que Aminatu apanhe mais alguma doença, gripe A, por exemplo. Os quatro anos de prisão, quando tinha apenas 20 anos, o regresso ao cativeiro, em 2005, aos 38 anos, deixaram-na com problemas de coluna e de estômago suficientes. E está em greve de fome, claro, a água e açúcar, já lá vão, hoje, 24 dias.

Omar começa a apresentar algumas pessoas que ela não conhece. “Aminatu, este chegou aqui no primeiro dia e disse ‘posso trazer-vos comida todas as noites, para quantas pessoas for preciso. Aquele também, come muito, mas ajuda. Àquele chamo-lhe sargento” Risos, muitos. “Cozinham tão bem. A paella estava rica, tão boa. E como tu não comes, ficamos com a tua parte, eu e a Carmen, não te preocupes”, continua Omar. “Já chega de falar de comida. Que maus.”

“São os homens que estão a fazer coisas, mas é uma mulher que está em greve de fome.”

“Ouviste o que disse Aminatu?”, pergunta Edi a Omar. Aminatu repete: “São os homens que estão a trabalhar, mas é uma mulher que está em greve de fome”.

“Pois, sim”, diz Omar. “Agora ficaste calado”, diz alguém. “Aminatu, não comeces com a conversa dos homens e das mulheres”, pede Fernando, entre risos.

Há quem lhe diga “força”, tocando-lhe ou não. “Vamos ficar.” Alguém diz que ela não se consegue virar na cama nem andar sozinha, mas que continua forte e lúcida. Alguém pergunta se não quer que lhe traga um colchão verdadeiro. Este onde ela dorme, onde todos dormem por aqui, é um colchão de tenda, um pedaço de espuma dura forrado a tecido. Ela precisa de um colchão duro, por causa dos problemas de coluna.

O Nobel da Paz

Já chega de passeio. Sorridente, como saiu, Aminatu volta a entrar no seu habitáculo. Está cansada, mas não tanto assim. Pede que lhe deixem a porta entreaberta. A luz baixa e fraca, do candeeiro no chão, fica acesa por mais algum tempo.


Cá fora, os voluntários espontâneos e os activistas sorriem entre si. “Que presente, este.” Como é possível, como é que pode ter forças para sorrir assim? Juan Luis, estivador que tem ido e vindo mas que desta vez decidira ficar para dormir, tem os olhos a brilhar, cheios de lágrimas que não chegarão a escorrer pelo rosto. “Esta mulher vai ganhar o Nobel da Paz, digo-te eu. Que feliz estou! Sabes, tenho dois filhos, são tudo para mim. E ela só quer voltar a ver os filhos.”

Edi volta a sair. Senta-se a conversar. “Humor negro, não?”, comenta. “Tem estes momentos em que muda. Passou todo o dia enjoada e agora arrebitou, assim.” Quando já estava menos gente, os jornalistas já se tinham ido quase todos embora e não havia nenhum autocarro no parque. “Ela tem muita vitalidade. E está muito consciente da sua força. Se pensasse que isto seria uma luta estéril, não a faria, penso. Tem um grande autocontrolo.”