Incansável melancolia

Depois da morte de Eurídice, mordida por uma serpente, Orfeu procurou em vão dar alívio ao desgosto espalhando pelas montanhas da Trácia os sons da sua lira. Não conseguindo viver sem a ninfa, resolveu resgatá-la do mundo inferior, tendo para isso amolecido com música o coração de Hades. Este impôs-lhe uma condição: Orfeu teria de caminhar sempre diante de Eurídice, sem olhar para trás, até atingirem o mundo superior. Mas a inquietude do amor perdeu o amante, pois Orfeu voltou-se e esse breve olhar fez com que perdesse Eurídice para sempre.

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Depois da morte de Eurídice, mordida por uma serpente, Orfeu procurou em vão dar alívio ao desgosto espalhando pelas montanhas da Trácia os sons da sua lira. Não conseguindo viver sem a ninfa, resolveu resgatá-la do mundo inferior, tendo para isso amolecido com música o coração de Hades. Este impôs-lhe uma condição: Orfeu teria de caminhar sempre diante de Eurídice, sem olhar para trás, até atingirem o mundo superior. Mas a inquietude do amor perdeu o amante, pois Orfeu voltou-se e esse breve olhar fez com que perdesse Eurídice para sempre.

Na novela (tem pouco mais de 70 páginas) "E Então Vai Entender", Claudio Magris (Trieste, 1939) retoma o mito de Orfeu para explorar as relações entre homem e mulher nos dias de hoje e - isto deduz-se de algumas entrevistas dadas - para "acertar contas" com a sua experiência amorosa com a escritora Marisa Madieri, de quem enviuvou há mais de dez anos. A narradora é uma mulher (sem nome) que sabe que vai viver para sempre encarcerada numa grande e estranha Casa de Repouso (uma espécie de "mundo dos mortos" sem conotação religiosa), onde os "corredores escadas galerias caves salões e sótãos parecem nunca mais acabar", e que num monólogo trágico e melancólico - propositadamente teatral, em tom declamativo - conta a um "senhor Presidente" espectral, algures oculto na penumbra da Casa, as razões que a levaram a querer continuar ali, apesar de o homem que ela ainda ama ter conseguido a difícil permissão, dada obviamente pelo "senhor Presidente", para a resgatar daquela "Casa de Repouso". Ao mesmo tempo, pedaços dessa sua conturbada história de amor - que sabemos ter sido vivida com um poeta aclamado e adorado por muitos - vão assomando neste discurso lúcido e exuberante de força, mostrando as leviandades, as traições, a mesquinhez, a vacuidade da fama, as humilhações e as incapacidades.

Claudio Magris - sem dúvida um dos maiores autores europeus vivos, e desde há vários anos apontado como merecedor do Nobel - parece não querer fazer uma releitura do mito de Orfeu e Eurídice, e com isso escusa-se também ao risco de tornar superficiais os arquétipos que o sustêm; antes pretende sujeitar o singular (e pessoal) texto narrado a esse mito, mesmo que no final acabe por lhe inverter o ponto de vista, pois diz esta Eurídice que o seu Orfeu "não viera para salvar mas para ser salvo". A melancolia e a tristeza amorosa acabam por contagiar todo o texto.

Mas é também a revelação atroz da ausência de verdades absolutas na "Casa de Repouso" (o outro lado do espelho do "mundo dos vivos") - facto que perturbaria para sempre este Orfeu de Magris (um poeta inseguro), conduzindo ao fim da sua arte - que leva a mulher a separar-se dele definitivamente. Para não dar a conhecer ao poeta a aridez de uma desmesurada incerteza, a personagem feminina comete o sacrifício amoroso que leva ao seu encarceramento eterno. "Não, não foi como disseram, que se voltou por demasiado amor, incapaz de paciência e de ficar à espera, e portanto por falta de amor. E nem sequer porque, se eu voltasse com ele, para casa dele, já não poderia cantar aquelas canções melodiosas e comoventes que falavam da dor da minha perda (...) vai entender, senhor Presidente, porque é que quando já estávamos próximo das portas, o chamei com voz forte e segura (...) eu sabia que ele não iria resistir". O desejo de solidão acaba por vencer o sentimento de nostalgia de um mundo solar.

O humor, que por vezes assoma com alguma ironia ao longo da narração, acaba por ser a novidade deste texto de depurada simplicidade que corta com a seriedade tão "mitteleuropa" dos anteriores livros de Magris.