Estudos de caso
Autor central de um suposto "segundo modernismo" português, José Régio teorizou de forma bem pouco modernista, ou em todo o caso nada vanguardista, e a certa altura representava já uma espécie de "reacção". O que nos afasta de muitos textos de José Régio, sobretudo os mais doutrinários, é a excessiva ênfase na obra escrita como expressão de uma psique individual. Cada caso literário era para Régio um caso humano, e ele via esses "casos" à luz de conceitos tão discutíveis como a "originalidade" e a "sinceridade". Noutras culturas europeias, a crise da linguagem tinha destruído essa concepção algo ingénua de uma correspondência exacta entre o mundo e o texto, mas Régio persistia. Décadas passadas, as suas doutrinas estéticas parecem definitivamente situadas e ultrapassadas.
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Autor central de um suposto "segundo modernismo" português, José Régio teorizou de forma bem pouco modernista, ou em todo o caso nada vanguardista, e a certa altura representava já uma espécie de "reacção". O que nos afasta de muitos textos de José Régio, sobretudo os mais doutrinários, é a excessiva ênfase na obra escrita como expressão de uma psique individual. Cada caso literário era para Régio um caso humano, e ele via esses "casos" à luz de conceitos tão discutíveis como a "originalidade" e a "sinceridade". Noutras culturas europeias, a crise da linguagem tinha destruído essa concepção algo ingénua de uma correspondência exacta entre o mundo e o texto, mas Régio persistia. Décadas passadas, as suas doutrinas estéticas parecem definitivamente situadas e ultrapassadas.
E no entanto, lemos os textos de Régio sobre certos autores e encontramos em acção uma das mais finas sensibilidades críticas da nossa contemporaneidade. É claro que as suas "dialécticas aplicadas" (parafraseando Sena) derivam de "dialécticas teóricas"; mas Régio é demasiado inteligente e subtil para se vergar ao peso das suas próprias ideias gerais. Se os "Ensaios de Interpretação Crítica" parecem o Régio mais vivo e actual é porque lêem com atenção e destreza os clássicos e quase clássicos, independentemente da estética de Régio.Este volume da Obra Completa editada pela Imprensa Nacional reúne conjuntos de textos de diferentes décadas. Comecemos pelos "Ensaios de Interpretação Crítica" propriamente ditos, colectânea publicada em 1964. A costela classicista de Régio está aqui patente nos estudos sobre Camões e sobre Camilo. Se Camões é para Régio o mais alto poeta, é em grande medida pela capacidade de ter aliado como ninguém uma "personalidade" e uma "expressão". A integridade de Camões, digamos assim, derivaria da sua capacidade de superação de antinomias (o sensual e o metafísico, o nacional e o estrangeirado) num todo coerente. Exemplo perfeito de uma cabeça que transfigura uma multiplicidade de inclinações, Camões é o protótipo do classicismo.
O ensaio sobre Camilo Castelo Branco é um dos mais notáveis que já se escreveram acerca do bruxo de Seide. Se Régio só tivesse escrito isto, teria ainda assim lugar entre os grandes ensaístas portugueses. Partindo de um conhecimento profundo da densa floresta camiliana, Régio alerta para vários equívocos persistentes. Camilo foi um génio do melodrama e da língua vernácula? É verdade, mas não é toda a verdade. Os folhetins de Camilo, realistas pela descrição, sentimentais pelas peripécias, saborosos pela linguagem, não são obras escolarmente românticas. O nosso romancista era uma pluma caprichosa, e a sua oficina narrativa estava constantemente a ser interrompida por divagações, boicotes, desabafos, divertimentos. Andamos pelos livros de Camilo, diz Régio, pela mão de um cicerone, que é o próprio Camilo. Podemos por isso dizer que tanto o realismo como o romantismo são ultrapassados por um elemento estilístico, que é a subjectivização que vem através da teatralidade. Essa teatralidade passa de uma penada do choro ao riso, e Régio sustenta aliás que são impulsos gémeos. Tanto a tragédia como a troça sublimam as paixões, são caricaturais e catárticas. Camilo, escreve Régio, tem uma infinita verve e uma incomparável capacidade de efabulação, mas quase sempre caminha furiosamente em direcção ao elegíaco e ao patético. Há nele um fatalismo, aliado a uma estilização poética, que o fazem procurar o amor, não porque o amor seja pitoresco, mas porque nele convergem os abismos da loucura e da santidade. O amor camiliano, diz Régio, não tem um tipo específico, já que podemos chamar camiliano a todo o tipo de amor sofrido. Todo o amor que encontre salvação na perdição: "(...) o amor-paixão rectilíneo e fatal; o amor-devaneio que a imaginação cria, a realidade mata; o amor-dedicação sublimado até ao sacrifício; o amor-ardência-dos-sentidos que um dado objecto particularmente excita; o amor que se enfastia e persiste para lá do fastio; o amor animal da fêmea pelo seu dono, do dono pela sua presa; o amor aéreo que a desgraça apura em sede de absoluto; o amor-vaidade que se refaz no brilho do objecto amado; o amor-amizade na forja da vida doméstica (...)" (p. 97-98).Mas nem só de classicismo vive Régio, pois os "Ensaios" defendem veementemente Sá-Carneiro, e o seu esteticismo insólito e ambíguo, e impõem Florbela, com o seu narcisismo insaciável. Estes dois ensaios, juntamente com "António Botto e o Amor" (1938), mostram um outro Régio, mais longe do estereótipo. Em cada um destes autores, o que Régio defende é o tal "caso", independentemente das regras do gosto e da moral dominantes. Régio escreve sobre o hermafroditismo sexual de Sá-Carneiro como se fosse um tema aceitável naquela época, e quanto a Botto declara o seu desdém por todos aqueles que põem objecções ao homo-erotismo em poesia. Ou seja, Régio invoca uma autonomia do estético, longe das cartilhas ideológicas, e assim é capaz de em plenos anos 30 escrever longamente sobre o distanciamento entre o amador e a coisa amada em Botto, sobre a sua frieza sensual, toda envolvida em naturalidade pagã e génio rítmico. Não parece que se possa chamar reaccionário a quem escrevia isto em 1938.
A útil embora rápida "Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa" (1941) [versão refundida de uma dissertação de licenciatura aqui também republicada] demonstra que os conceitos e pré-conceitos não são um obstáculo a um leitor perspicaz. Podemos sentir um certo incómodo nas páginas dedicadas a Pessoa, especialmente quando Régio detecta um "uso e abuso do cálculo intelectual na expressão estética", mas como esquecer que foi Régio um dos responsáveis pela publicação de Pessoa? Régio, é verdade, desconfia em excesso do que é "novo", mas com isso parece também imune ao entusiasmo beato das falsas "novidades". Em geral, ele tem razão, e fundada razão. Não é verdade que Garrett e Herculano não podem ser grandes poetas românticos visto não serem nem românticos nem grandes poetas? Não é Junqueiro um panfletário dotado de génio verbal? Não será a poesia cósmica de Pascoaes uma ficção intelectual? E não são apenas as restrições que fazem sentido. Não é Gomes Leal, na sua fantasia alucinada, o nosso grande romântico? E não foi a invenção verbal de Cesário que fez do parnasianismo enfim poesia? Não será Nobre um caso extremo de empatia humana que condiciona a nossa adesão? E a grandeza de Pessanha não estará nesse "mundo poético todo entretecido de íntimas alusões e vagas lembranças, fragmentárias correlações e esboços de sentimentos irreais, evocações inacabadas e anómalas, sensações intensas e fugidias" (p. 316)?
Em cada caso, em cada um dos casos, Régio ensaia, interpreta, critica. Tem quase sempre razão. E quando não tem razão, incomoda as nossas razões. Não se pode pedir mais a um crítico.