O best of da década

A entrada é gloriosamente xunga, que os escoceses são gente de bom humor. Ouve-se um épico sinfónico digital a ressoar pelo Campo Pequeno, vê-se o nome Franz Ferdinand inscrito em caracteres góticos. Quase onze da noite e ei-los que chegam.

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A entrada é gloriosamente xunga, que os escoceses são gente de bom humor. Ouve-se um épico sinfónico digital a ressoar pelo Campo Pequeno, vê-se o nome Franz Ferdinand inscrito em caracteres góticos. Quase onze da noite e ei-los que chegam.

Esta década, fomo-los acompanhando no tempo certo. Vimo-los quando saiu o homónimo álbum de estreia, vimo-los quando You Could Have So Much Better, o segundo, revelou Do you want to? e prolongou o êxtase. Até os vimos em Julho em Paredes de Coura, quando já havia um terceiro passo na discografia - Tonight. Mas agora, pela primeira vez, não surgem em cartaz de festival. É quarta-feira e isto é tudo deles. Literalmente.

Nada de perder tempo com conversa: No you girls, ritmo apontado às ancas (aprenderam com os Chic), aquele equilíbrio perfeito entre imediatismo pop e a sensação de descalabro do rock"n"roll e refrão tão contagiante que o moço despeitado que nele figura se transforma em poço de orgulho sem fundo.

Nas próximas duas horas, não haverá descanso. Os Franz Ferdinand inventaram uma forma de expressão, uma fórmula criteriosamente aprimorada. Não precisam de mais - o resto é saber pop e noção das iconografias da história.

Enquadremos. Antes deles, actuaram os setubalenses The Doups, a caminho do primeiro álbum: são o início de algo, mas ainda é demasiado evidente a ascendência - os próprios Ferdinand, Rapture, um pouco de Bloc Party. Depois, chegou a nova-iorquina Phenomenal Handclap Band. Com o seu groove Sly Stone, os seus psicadelismos 70s e as barbas Black Crowes, seriam perfeitos para boémia de clube às duas da manhã. Acontece que, no limite, são banda que divulga música. Ou seja, óptima porta de entrada para aqueles que referenciam. Os Franz Ferdinand, como sabemos, são outra coisa.

Durante duas horas, single atrás de single. No you girls a início. Viagem ao primeiro álbum logo a seguir: Matinée e o espírito de Ray Davies (guia espiritual das letras de Kapranos) a espreitar no "interlúdio". Quer se ouçam os sintetizadores de Twilight omens, quer se solte o andar gingão de Do you want to?, algo sobressai: nesta música, do baixo e bateria em tangente ao "disco" à guitarra de Nick McCarthy, corrente eléctrica de altíssima voltagem, tudo é ritmo. Os Franz Ferdinand atiram-se ao nosso ponto fraco, atiram-se à carne para dar corda ao esqueleto. O resto é arquitectura sónica habilmente construída sobre esse alicerce.

Quando, antes do encore, vemos entrar em palco uma segunda bateria, rapidamente rodeada pela banda, que se entrega então a um prolongado festim de percussão, era como se tudo fosse reduzido à essência: o povo, naturalmente, dançou a batucada primordial tal como antes tinha dançado aquilo que os Franz Ferdinand inventaram sobre ela.

Alex Kapranos falou diversas vezes de como gosta dos portugueses que o vêem, do quanto a banda ansiava estar cá por conta própria, que somos fantásticos e etc. Parece-nos mais interessante saber que Kapranos aprecia queijo de Azeitão e o bom vinho verde da terra, como relevou na colectânea de artigos de gastronomia Snacks & Outros Sons - isso sim, mostra-nos que é boa gente; os elogios ao pessoal são rotina habitual. Agradecem-se e seguimos em frente. E os Franz Ferdinand não se cansaram de seguir em frente.

Ainda o explosivo Take me out, iluminado por uma tocha que irrompeu na plateia (sim, uma tocha, daquelas da bola), ressoava nos ouvidos e já nos atiravam com Ulysses, primeiro single de Tonight. Mas não era só essa cascata interminável de pop impoluta. É fazer de um concerto um espaço em aberto e atirar para o meio do vertiginoso psicadelismo de 40 ft um afrobeat cyborg. É, já em encore, fazer justiça a quem a merece a tocar uma versão de All my friends, dos LCD Soundsystem. É mandar às malvas o protocolo e, para despedida, escolher não a canção que poria toda a plateia em euforia, mas o Lucid dreams que se prolonga em divagações de sintetizador e ambiente de rave ilegal de meados de 1980.

Não há segundo encore. Os Franz Ferdinand regressam a palco, curvam-se em vénia perante o público. São gentlemen - e a melhor banda pop que as Ilhas Britânicas viram nascer esta década.