Facebook: desamigar é a nova palavra
Primeiro estranhou, achou que era um erro. Ops! Afinal não era. O amigo tinha mesmo clicado para a afastar. Ela resolveu reagir. Esse amigo era seu amigo na vida real. Ligou-lhe. Atendeu o atendedor de chamadas. Falou para um gravador. Deixou-lhe uma mensagem bastante desesperada. Ele percebeu então que no Facebook também se magoa. Tudo se resolveu, mais tarde, entre os dois numa conversa telefónica. Ele disse por que tinha tomado aquela atitude, ela deu explicações. Ele voltou a adicioná-la como amiga. Ela aceitou.
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Primeiro estranhou, achou que era um erro. Ops! Afinal não era. O amigo tinha mesmo clicado para a afastar. Ela resolveu reagir. Esse amigo era seu amigo na vida real. Ligou-lhe. Atendeu o atendedor de chamadas. Falou para um gravador. Deixou-lhe uma mensagem bastante desesperada. Ele percebeu então que no Facebook também se magoa. Tudo se resolveu, mais tarde, entre os dois numa conversa telefónica. Ele disse por que tinha tomado aquela atitude, ela deu explicações. Ele voltou a adicioná-la como amiga. Ela aceitou.
Esta história poderia ter acontecido com qualquer pessoa inscrita numa rede social. Os pormenores podem ser diferentes, o final da história não ser tão feliz, mas esta coisa de unfriend ou desamigar alguém entrou definitivamente nas nossas vidas. Mesmo aqueles que não fazem parte dos mais de 350 milhões de utilizadores em todo o mundo sabem que no Facebook se pergunta a alguém se quer ser nosso amigo; que essa pessoa pode dizer que sim ou ignorar-nos e que depois, se a coisa não corre bem, há sempre a possibilidade de desamigar. Tal como na vida real? Quase.
Tudo isto vem a propósito da entrada, em Novembro, da palavra unfriend no New Oxford American Dictionary. Foi aliás escolhida como a palavra do ano: unfriend, o verbo desamigar, que significa retirar alguém de uma rede social da Internet, abolindo o seu estatuto de "amigo".
Basta uma busca rápida nos fóruns ligados às discussões sobre esta rede social para se perceber que a pergunta "How do you unfriend someone?", como é que se desamiga alguém, gera um grande interesse. Deanna Keahey, de São Francisco, explicava: "Já tive de fazer a mesma coisa. Clica-se no perfil dessa pessoa, vai-se até ao fim da página e lá existe um link onde se lê: "Remove from friends."
É exactamente assim. Depois de se fazer clique ainda aparece a pergunta: "Tem a certeza que quer retirar esta pessoa da sua lista de amigos?" Se sim, ela desaparece da nossa vista/lista para sempre. E através da aplicação UnFriender ficamos a saber se fomos desamigados.
No início deste ano a Burger King fez a campanha Whopper Sacrifice no Facebook e causou polémica. Quer ganhar um Whopper, um hambúrguer, grátis? Então desamigue dez pessoas no Facebook. Este era o tema da campanha publicitária da agência Crispin Porter + Bogusky (CPB) de Miami e que foi suspensa. Está já a ver qual a frase escolhida para slogan: "Friendship is strong, but the Whopper is stronger."
Não se sabe se pela cabeça dos fundadores do Facebook, Mark Zuckerberg e Eduardo Saverin, passou alguma vez a ideia de que os utilizadores do site iriam estar preocupados com esta coisa de desamigar. É que o Facebook nasceu porque eles queriam conhecer outras pessoas. "Eles só queriam conhecer algumas miúdas..." é a frase que Ben Mezrich, autor do livro Milionários Acidentais - A Criação do Facebook: Uma História de Génios, Sexo, Dinheiro e Traição (que irá ser publicado em Janeiro pela Lua de Papel), mais tem utilizado para explicar como é que nasceu esta rede social em 2004.
Na verdade tudo começou com o sucesso repentino de um site tosco que Mark Zuckerberg criou. Aí os universitários de Harvard podiam ver fotografias das colegas, colocadas lado a lado, e votar naquelas que considerassem mais giras. Foi por isso que Mark Zuckerberg percebeu que as pessoas queriam ir à Internet para saber mais sobre os amigos e entre imensas peripécias nasceu o Facebook.
Para Ben Mezrich, que esteve em Maio na Book Expo America, em Nova Iorque, este site foi pensado para ser uma comunidade de amigos online e cumpriu o objectivo. "Embora estivesse no ar há tão pouco tempo, realmente estava a mudar a vida em Harvard. Insinuava-se na rotina de toda a gente; levantávamo-nos, verificávamos a conta do Facebook para ver quem tinha feito um pedido de amizade e quais os nossos convites que tinham sido aceites ou recusados", lê-se no livro Milionários Acidentais.
"Quando chegávamos a casa, se tínhamos visto uma determinada rapariga na aula - ou apenas no refeitório -, simplesmente procurávamos por ela no Facebook e fazíamos um pedido de amizade. (...) Quando a miúda abrisse a sua página, ia receber o nosso convite e ver a nossa fotografia e talvez aceitasse o convite." Era assim em 2004, quando o Facebook surgiu e se destinava apenas a estudantes (só desde Setembro de 2006 é que é aberto a toda a gente). Desde então muitas coisas mudaram, outras nem por isso.
Laços mais fortesSetenta por cento dos amigos do veterinário António Carlos-Ribeiro, 55 anos, no Facebook são mulheres. Ele acha isso estranho, mas diz que é "outra estória". Por agora o que interessa é o desamigar e ele desamiga com a maior das facilidades. António, que vive em Aveiro, já conheceu mais de metade dos seus amigos no Facebook e não se desiludiu. Fazem tertúlias periódicas e almoços pela época festiva que se avizinha. "[Mas] se dentro de uma semana não interagem ou não postam e não comentam, desamigo-os com a maior das facilidades."
O problema surge com aqueles com quem António interage diária ou periodicamente, porque "em pouco tempo criam-se laços de amizade muito fortes, muito mais fortes do que na vida real".
Clara, 42 anos, bibliotecária em Lisboa, uma das pessoas que responderam ao pedido do P2 para contar a sua experiência, tem uma visão completamente diferente desta rede social. Nunca aceita convites de pessoas que não conhece, só porque são "amigos de amigos". No entanto, houve um indiano, colega de profissão, cujo convite de amizade aceitou pela curiosidade de trocar impressões com alguém da sua profissão e de cultura diferente. "Começou a deixar umas mensagens muito elogiosas nas minhas fotos e eu deixei passar, exactamente por ele ser de uma cultura diferente e eu não saber até que ponto esse comportamento (para mim, desajustado, já que tenho bem claro no meu perfil que sou casada) seria normal para ele. Mas um dia deixou-me a frase: "I love you." Ainda assim, condescendi, dizendo-lhe apenas que não gostava dessa abordagem e pedindo-lhe que não repetisse. O fulano então disse-me que tinha sido outra pessoa a deixar essa mensagem no computador dele durante a sua ausência. Já nem lhe respondi, bloqueei-o logo."
No Facebook há uma certa tendência para coleccionar amigos que depois, na prática, acabam por não o ser. "É engraçado ver como o uso das palavras se vai transformando. A amizade tem-se no imaginário cultural como uma coisa que se adquire, que se trabalha. No Facebook carrega-se num botão e é-se amigo de alguém. As palavras vão ganhando contextos e contornos diferentes", explica Daniel Cardoso, do projecto EU Kids Online, que investiga o uso da Internet entre os jovens do espaço europeu. "E porque se trata de uma rede social procura-se um certo nível de intimidade. É por isso que desamigar alguém - a palavra funciona muito melhor em inglês, o unfriend é muito forte - não deixa de ser um acto inconveniente, revestido de uma certa agressividade social."
Aquilo que a investigação tem mostrado é que as pessoas acabam a repetir na Internet o mesmo tipo de dinâmicas sociais que têm habitualmente. "O meio tecnológico muda, mas o fenómeno social acaba por ser mais ao menos o mesmo." É essa também a opinião de Gustavo Cardoso, sociólogo do ISCTE, autor de Para Uma Sociologia do Ciberespaço. "A maneira como usamos o Facebook é aquela como nos relacionamos face a face. É mais uma ferramenta nessa estratégia de relacionamento."
Margarida Gaspar de Matos, psicóloga - e coordenadora, em Portugal, do estudo Health Behaviour in School-Aged Children, da Organização Mundial da Saúde (OMS), no âmbito do qual são regularmente recolhidos dados sobre os hábitos e comportamentos dos adolescentes -, lembra que recentemente um estudo mostrou que, ao contrário do que é senso comum, os jovens que mais tempo estão na Internet a falar em redes sociais e em chat - sem ser a jogar - são aqueles que mais amigos têm na vida real.
Estes jovens saem da escola, vão para casa dos pais e ligam o computador. "Houve uma altura em que iam para o telefone, depois passaram a mandar SMS e agora estão no Facebook. Não é aquela coisa de estarem na escola com uns amigos e em casa com outros, são os mesmos. Têm uma extensão da sua relação real na Internet."
E, embora Margarida Gaspar de Matos considere que esta questão de desamigar terá sido pensada por causa dos assediadores e das pessoas que nos perturbam além daquilo que queremos, lembra que entre os jovens já é praticado o bullying, naquela modalidade em que uma pessoa é excluída. "Acontece quando todos estão numa rede de amigos por exemplo, no Facebook, e de repente toda a gente resolve excluir determinada pessoa. Esse miúdo sai da escola, chega a casa, liga-se ao Facebook e percebe que foi bloqueado, desamigado por um grupo de amigos."
Chatos, ex, desconhecidosRita Gaveta, 25 anos, trabalhadora-estudante, desamigou há pouco alguém cujo pedido de amizade aceitou sem conhecer pessoalmente. "Acontece que esta pessoa faz posts de todas as campanhas de salvar animais do mundo (quase sempre em termos irados), dos cursos que frequenta e que dá e comenta alguma actualidade (vídeo da Maitê, por exemplo) a um ritmo infernal, levando-se sempre muito a sério."
Feitas as contas, metade das actualizações do News feed da Rita, que vive em Lisboa, eram dele. Há algum tempo comentou uma fotografia dela - "fê-lo sem grande maldade", explica Rita, que achou que era uma invasão que não tinha de aturar. "Pensei no assunto e ainda hesitei em "desamigá-lo" sem dar cavaco, mas por que não? Fi-lo ontem, sem remorsos, e voltei a ter o Facebook outra vez só com os meus colegas de curso, familiares e amigos reais."
Na verdade, o Facebook usa a palavra "amigo" da mesma forma que a usamos para dizer que conhecemos alguém, explica o sociólogo Gustavo Cardoso. Mas essas pessoas podem não ser os nossos amigos mais próximos. Como o Facebook utiliza a lógica de funcionamento das redes, surgem nas nossas listas pessoas que são amigas ou conhecidas dos nossos amigos e assim sucessivamente. Por isso, não raras vezes "desamigar alguém no fim de contas é dizer que um conhecido passou a desconhecido", defende.
Quando conhecemos alguém que não queremos encontrar, evitamos cruzar o olhar com ela. Em espaços públicos comuns fazemos algum tipo de gestão para não passar por determinado sítio. "No caso do Facebook a única coisa que nos liga a essas pessoas é estarem associadas à nossa listagem de contactos."
É por isso mais rápido desfazermos relacionamentos interpessoais através da Internet e não tem o mesmo peso fazê-lo em frente a um computador (sem olhar para a pessoa) ou fazê-lo ao vivo. "Na Internet não temos o feedback da expressão emocional das outras pessoas. Há uma grande impessoalidade e isso torna tudo mais fácil", afirma o psicólogo clínico Américo Baptista.
Por outro lado, no Facebook ou se é amigo ou se não é. "Não há graus de amizade, o que faz uma diferença muito substantiva para a vida fora daquela rede social", explica o psicólogo clínico Telmo Baptista. "Quando se corta, corta-se. É uma coisa sim ou não. Por isso não repete o processo normal de aproximação e de desaproximação."
Ana Paula Alves Ribeiro é professora universitária, antropóloga, e vive no Rio de Janeiro. Já se descobriu "desamigada no Facebook duas vezes". Uma por causa de uma relação que terminou e a outra por causa de uma amiga com quem deixou de falar. "Na primeira eu sabia que seria "deletada". Na segunda foi pior", explica. Estar sem falar com a amiga era uma fase; achava que, em algum momento, voltariam a conversar. "Aliás, a briga que não houve (por que não houve briga) começou com um comentário desnecessário no Facebook. Ter sido "deletada" foi uma forma de ela dizer (ou que eu tenha entendido) que nossa amizade tinha acabado. O mais louco dessa história é que ela era uma das minhas amigas mais queridas e, bom, não somos mais crianças e deveríamos ter resolvido as coisas mais adultamente."
Ana Paula, 32 anos, já desamigou pessoas com quem tentava estabelecer "algum tipo de comunicação" e pareciam só querer saber da sua vida e ter acesso ao que ela andava a fazer. "Por fim, para não deletar mais ninguém, me deletei no Orkut [uma rede social muito popular no Brasil]. Avisei que estava saindo, dei meu e-mail e celular, disse que estaria disponível no gtalk e no skype, caso precisassem, e mantive minha conta no Facebook. Para minha surpresa, pessoas que não falavam comigo há anos me escreveram, me ligaram e estão mais próximas agora." Só adiciona pessoas no Facebook com quem tenha afinidade: dos blogues que lê ou então leitores do seu blogue, amigos reais e colegas de trabalho: "Pessoas com as quais eu quero manter real contacto."
Parece haver uma tendência grande para transpor para a Internet a nossa vida social e, embora haja nuances, a maior parte dos amigos que as pessoas têm nas listas são pessoas que conhecem. A não ser que façam parte daquele grupo que aceita toda a gente. "Nas redes sociais há uma certa pretensão ou mesmo um certo nível de status que ocasionalmente se adquire por se ter bastantes amigos. E desamigar alguém em contexto acaba por ser a ameaça do corte da relação social. É como chegar ao pé de outra pessoa e dizer: "Se continuas a fazer isso, deixo de falar contigo"", explica o investigador Daniel Cardoso, do EU Kids Online.
"Se eu tiver uma discussão com alguém online, vou ficar irritado. Não interessa que tenha sido ao telemóvel ou no computador. É real na mesma", continua. Talvez seja por causa disto que uma das preocupações nos fóruns é a de saber se os desamigados recebem uma notificação. "Se fosse só a fingir, se fosse como pegar na Playstation e matar os mauzões que me vão aparecendo à frente, então não havia essa preocupação com esconder."
Problemas não-virtuaisMargarida Vaqueiro Lopes não aceita no Facebook ninguém que não conheça. Acha que é a melhor forma de acautelar que depois não vai precisar de desamigar alguém. Mas aceitou uma colega e entretanto já a desamigou. "No decorrer da convivência essa pessoa começou a tornar-se totalmente insuportável para mim. No dia-a-dia o esforço é enorme para conseguir trabalhar e conviver com ela. Mas como as circunstâncias exigem, tenho de partilhar com ela várias horas do meu dia, embora tenha vontade de a esmurrar a cada minuto. Ora, que tal começar pela parte fácil e vedar-lhe a minha "amizade" no Facebook? Pareceu-me bem, e é daquelas coisas de que a pessoa acaba por se aperceber com o passar do tempo. Ela ainda não me disse nada, mas eu tenho a secreta sensação de que já cortei parte das relações com ela. Atitude cobardola, mas fica a sensação, à falta de melhor", afirma a jornalista portuguesa, 24 anos, que desde Janeiro vive no Brasil, onde está a fazer o curso intensivo de Jornalismo Aplicado do jornal Estado de São Paulo, ao mesmo tempo que termina um mestrado em Ciências Políticas e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa.
E esta história parece ir ao encontro daquilo que diz o sociólogo Gustavo Cardoso. "Na maior parte dos casos, o desamigar no espaço virtual parte de problemas que ocorreram no espaço não-virtual." O que acontece dentro da esfera da rede social que é o Facebook, tirando alguma situação muito complicada de insulto ou de ameaça, não é suficiente para que as pessoas deixem de se relacionar.
"Um homem que eu conhecia vagamente, por ser aluno do meu marido, lançou-me o convite de amizade no Facebook e eu aceitei", conta a cantora Vera de Vilhena, que vive em Mafra. Sugeriu-lhe que visitasse o seu blogue, que se tornasse sua seguidora e que deixasse comentários. Vera, 40 anos, assim fez. "Chegámos a trocar e-mails, nos endereços privados, num tom amigável, repleto de mútuos elogios às nossas respectivas artes e ofícios. Um dia enviou-me um e-mail, a estranhar o meu silêncio: eu não comentara um certo post. Expliquei-me em público, no blogue. No entanto, em privado, por e-mail - e porque já nos tratávamos por tu - acrescentei, meio a sério meio a brincar, que relaxasse, que não se mostrasse tão ansioso em relação ao feedback dos seus posts, que deixasse a coisa correr naturalmente, pois não tinha razões para se sentir inseguro, já que o seu trabalho tinha valor."
Não correu bem. "Ficou ofendido! Respondeu-me por e-mail, insultando-me com duas luvas brancas, chamando-me, nas entrelinhas, desde invejosa a hipócrita e infantil, terminando assim: "A menina escusa de responder, que será pura perda de tempo." Não respondi. Foi, de facto, uma perda de tempo. Aprendi que há pessoas que podem dar uma primeira boa impressão e mais tarde revelam-se verdadeiros idiotas. Evidentemente que apagámos o rasto um do outro nos nossos respectivos contactos, o que para mim foi um alívio..."
Nas redes sociais temos páginas pessoais dentro de um espaço público. "Temos os nossos passos privados dentro de uma esfera que é extremamente pública. E por isso surgem estes pequenos jogos, em que queremos ter um acto privado (como desamigar) dentro de um contexto público", explica Daniel Cardoso. "Então andamos um bocadinho à socapa a ver se dá para disfarçar de alguma maneira. Queremos afastar aquela pessoa, mas não queremos mostrar o nosso lado menos simpático."
Estamos no Facebook como se estivéssemos no café. Mas aqui, quando se desamiga alguém, não temos de enfrentar os seus olhos, nem lhe damos possibilidade de fazer uma grande fita.