Joana muito à frente
Há uma cidade na Califórnia onde toda a gente quer aprender a pronunciar "Car-nei-ro". A maestrina de 33 anos é a nova estrela de Berkeley. Foi recebida de braços abertos, com um entusiasmo pouco comum. "Tive uma recepção calorosa", diz-nos no início da conversa longa que tivémos na Fundação Gulbenkian. Começou a dirigir a Sinfónica de Berkeley em Janeiro de 2009, depois de ter ganhado o concurso com uma perna às costas. O júri não teve dúvidas: "Ela é a pessoa certa no lugar certo. A interacção com os músicos, o nível a que os levou em quatro ensaios foi notável".
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Há uma cidade na Califórnia onde toda a gente quer aprender a pronunciar "Car-nei-ro". A maestrina de 33 anos é a nova estrela de Berkeley. Foi recebida de braços abertos, com um entusiasmo pouco comum. "Tive uma recepção calorosa", diz-nos no início da conversa longa que tivémos na Fundação Gulbenkian. Começou a dirigir a Sinfónica de Berkeley em Janeiro de 2009, depois de ter ganhado o concurso com uma perna às costas. O júri não teve dúvidas: "Ela é a pessoa certa no lugar certo. A interacção com os músicos, o nível a que os levou em quatro ensaios foi notável".
Até ver, só elogios: os músicos da orquestra adoram-na e elogiam-lhe o rigor tanto quanto a sua calorosa presença; Esa-Pekka Salonen, que ela tem como "mentor" desde que foi sua maestrina assistente na superorquestra Filarmónica de Los Angeles, disse "tu tens de concorrer àquela orquestra, é ideal para ti"; o compositor John Adams (que vive em Berkeley) gaba-lhe a combinação de rigor e descontracção e anuncia ao mundo que "a coisa maravilhosa em vê-la ensaiar é que ela faz toda a gente sentir-se à vontade, e domina completamente a partitura"; o concertino, que ela já conhecia de Los Angeles, garante que quase nunca viu nada assim - "empenho e entusiasmo e paixão". "Uau!", exclamam unanimemente músicos e críticos que assistiram aos primeiros concertos dirigidos por ela em Berkeley. "Ela encaixa", "ela é extraordinária", "fantástica", "jovem, enérgica, inteligente, e com bom humor", "a orquestra segue a sua enorme exigência"... e por aí fora. Um violoncelista da orquestra resumiu: "O coração dela é todo música".
Imaginar sem fronteiras
O anterior maestro Kent Nagano deposita toda a confiança nela para continuar o trabalho de uma das orquestras mais à frente dos Estados Unidos da América: "A orquestra já existia antes de eu vir e vai sem dúvida continuar a florescer depois de mim", disse Nagano. "Ele deixou um legado que me inspira", retribui Joana Carneiro. Que legado é esse? Uma dinâmica coexistência de nova música e de grandes clássicos, uma relação íntima com a comunidade artística local e com toda a sociedade. "Uma tradição de inovação", diz-nos a maestrina. "Programar música que está no nosso imaginário desde há séculos mas também aquilo que é o futuro da música", continua.
Joana Carneiro terá agora de ser muito mais do que maestrina: tem a responsabilidade de dirigir artisticamente a orquestra. "É uma faceta que desconhecia: programar, fazer escolhas para um, dois anos, e porventura para dez anos se ainda lá estivermos". Fala com o entusiasmo de quem quer mesmo estar lá daqui a dez anos. Mas a sua missão em Berkeley não é só programar: ela estará "na escolha dos músicos, nas decisões de como a orquestra se relaciona com a comunidade". Sente o peso da responsabilidade de ter uma "visão artística, porque a orquestra é um veículo musical daquela cidade". Todos acreditam que ela tem essa visão, e têm a certeza de que não vai desiludir. Já é muito trabalho? Não, ainda não é tudo. Joana Carneiro também tem de se preocupar com a sobrevivência da orquestra: "Estamos a falar de uma orquestra americana, é preciso pensar no ‘fundraising'". É preciso dar "confiança" aos mecenas locais, mantendo altíssimos padrões de qualidade e rigor e um largo público que se reconheça na orquestra, e sobretudo convencê-los a financiar a estrutura, mesmo em tempos de crise. Joana garante que não é fácil: "Quando a crise começou, o financiamento da orquestra sofreu um abate de dez por cento. Isso tem implicações nos programas, e é preciso distribuir melhor o que há." Aí entra a imaginação, que hoje "é ainda mais necessária do que noutros tempos", diz Joana Carneiro, olhos postos na realidade: "Com aquilo que temos, fazer o melhor que podemos".
Mas ela não quer só a realidade, quer levar os limites da beleza mais longe. Por isso diz que não há limites. "Posso programar o que quiser, apresentar novos compositores, novos instrumentos, novos solistas. Posso imaginar sem fronteiras".
O segredo está nos gestos
A orquestra de Berkeley tem os pés bem assentes na efervescente comunidade local e ganhou com Nagano reputação internacional, a fazer música de Mozart ao século XXI. Agora é a vez de Joana Carneiro, aliás "Kar-nigh-row". Ela já sentiu "uma química" com a orquestra: "Tenho aprendido muito. Já conhecia alguns músicos, houve uma familiaridade e a música unia-nos. Parece que temos os mesmos valores." Que valores são esses? "Procuramos as mesmas coisas musicalmente, há um entendimento na forma como a orquestra ensaia." E há interesses semelhantes: a música contemporânea, o interesse pela criação de agora, como prova o constante trabalho com compositores e artistas residentes realizado pela orquestra desde que Nagano fez dela uma orquestra de primeira. O entendimento com os músicos foi imediato: "Falamos e as coisas são reproduzidas em música", diz ela. Mas o segredo está nos gestos: "É também a linguagem não-verbal. A forma física como a orquestra toca. Ela reage de forma física". Reage aos gestos da maestrina, leia-se.
Aos nove anos Joana Carneiro disse aos pais que queria dirigir orquestras como aqueles senhores fazem com a batuta na mão. E os pais lá lhe ofereceram uma batuta. O que a fascinava era precisamente a ligação do gesto à música. "Parecia magia", diz ela, "a ligação do gesto com o que eu ouvia". Agora, à distância, diz Joana: "Se uma criança de nove anos quer ser maestrina, é porque tem no seu imaginário aquela figura". Isso tem a ver com "duas pessoas fundamentais" diz ela. "Somos nove irmãos e todos estudámos música 12 anos. O que faço hoje tem a ver com essa decisão fundamental dos meus pais de considerar a música tão importante como as outras disciplinas". Devia ser assim para toda a gente? Claro. "Tenho a certeza absoluta que a música devia ser aprendida por todos na escola como o Português e a Matemática. O papel que a música tem no ser humano, na imaginação, no raciocínio, na disciplina, é essencial. Há estudos que mostram que a música ajuda as crianças na Matemática, mas também a ter um comportamento mais positivo."
O sonho dos nove anos cumpriu-se - com "muita sorte". É claro agora para Joana Carneiro que "é um privilégio muito grande ter uma vida profissional que tem a ver com a criação e a recriação do belo. Dar ao nosso mundo afecto e paz é uma obrigação no sentido mais profundo - a transformação da alma do ser humano." Nada mais, nada menos. E ainda, ao mesmo tempo, "servir os compositores e quem nos vem ouvir".
Tudo graças aos pais? Não convém esquecer o talento que ela tem e desenvolveu por si mesma. E uma atitude perante a vida, que é não separar as coisas: "A Joana maestrina não é diferente do que sou. Não sou diferente na música." Mas competem a paixão da música e o amor familiar? Nada disso: "Aprendo muito e aplico muito o que aprendo na música. A música é um pilar fundamental mas a família é o centro. Coexistem com felicidade. Não teria a felicidade que sinto se só tivesse uma." Ou, dito de outra forma, "alimentam-se", como ela gosta de dizer na sua visão orgânica da vida. Deve ser isso a felicidade.
Como fazer a diferença
Na cidade que espera dela invovação, Joana Carneiro vai tentar fazer a diferença, continuando a aprender e aplicando o que aprendeu, sobretudo em Los Angeles, ao lado do seu mentor Esa-Pekka Salonen. O que fazia ali a diferença, diz ela, era "ter um instrumento extraordinário" (a orquestra de Los Angeles), mas também o "empenho diário dos músicos", "a sala em que tocavam", "a preparação do conteúdo", a atitude que uma orquestra tem de ter se quiser "transformar a cena musical, fazer música contemporânea, tocar a mais relevante da criação musical dos últimos 20 anos, estar à frente da inovação musical". É isso que Joana Carneiro quer fazer em Berkeley. O que faz a diferença é também "a existência de projectivos educativos que realmente transformam", e a criação de "um laboratório" musical, seguindo a lição de Salonen. E há ainda uma questão de fundo que faz toda a diferença para quem põe a música e a criação actual em primeiro lugar: "Reflectir sobre o mundo contemporâneo, ajudar a compreender o que é a nossa realidade." Para isso é preciso criar relação com novos compositores, os "Beethovens" de hoje.
O resto é o trabalho minucioso com a música, escolher rigorosamente uma arcada ou uma sequência de arcos num ensaio, decidir "uma respiração" em diálogo com os músicos. "A preparação é 90 por cento do trabalho", subinha. O estudo antes dos ensaios. Chegar a "um ideal de como deverá soar e depois nos ensaios aproximar o desejo do compositor da realidade". Como se equilibram as vozes, qual deve sobressair? Como é aquele acorde? Aquela respiração? É assim que se concretiza o ideal de Joana Carneiro: "Através da beleza ajudar o próximo a compreender melhor o que o rodeia".
E tem vontade de compor? "É uma arte muito difícil. Tenho muita admiração pelos compositores. Tentei mas não era a minha vocação, não tenho talento." Insistimos, incrédulos. A maestrina esquiva-se e dá-nos uma resposta mais prática: "Exige uma entrega e um tempo que não tenho, estou muito ocupada." Para compor não sabemos. Mas que tem talento, tem.
Um disco que dança
No meio de tantas ideias sobre a música, um disco. A primeira gravação de Joana Carneiro, que pode surpreender por se centrar apenas em obras de Tchaikosvky. É quase certo que haverá outras gravações, podemos arriscar, mas para já este disco, com música do compositor russo estreitamente ligada à dança - os bailados "O Quebra-Nozes" (Suite , op.71a) e "O Lago dos Cisnes" (Suite, op 20a) - e a abertura-fantasia de "Romeu e Julieta". Tem tudo a ver com ela: "Fiz ballet durante anos da minha vida, desde criança que ligava dança e música". A música move e comove Joana Carneiro, que gosta da ideia de "contar uma história com gestos de dança".
E também ela dança agora, de uma outra forma, batuta na mão, como se a música alimentasse a dança. Como se tivesse outra vez nove anos. Como se fizesse magia.