Eu sou a fotografia
O mestre gosta de acompanhar o processo. Gosta da revelação e do contacto com os líquidos do laboratório. O mestre Fernando Lemos, 83 anos, nome maior do surrealismo português, veio do Brasil com os negativos na mala para tirar deles fotografias inéditas dos tempos em que, ao lado de Fernando de Azevedo e Vespeira, abriu caminho na escuridão criativa dos anos 50. O minúsculo laboratório em Lisboa, de onde saíram retratos nunca antes vistos publicamente, faz-lhe lembrar o Japão, de tão pequeno e atafulhado que está. O mestre avisa o impressor: "Cuidado com o retoque! Não se esqueça daquilo que lhe disse". O mestre disse que gosta do preto como se fosse preto tinta-da-china e do branco como se fosse branco papel. Os meios-tons ficam para o impressor.
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O mestre gosta de acompanhar o processo. Gosta da revelação e do contacto com os líquidos do laboratório. O mestre Fernando Lemos, 83 anos, nome maior do surrealismo português, veio do Brasil com os negativos na mala para tirar deles fotografias inéditas dos tempos em que, ao lado de Fernando de Azevedo e Vespeira, abriu caminho na escuridão criativa dos anos 50. O minúsculo laboratório em Lisboa, de onde saíram retratos nunca antes vistos publicamente, faz-lhe lembrar o Japão, de tão pequeno e atafulhado que está. O mestre avisa o impressor: "Cuidado com o retoque! Não se esqueça daquilo que lhe disse". O mestre disse que gosta do preto como se fosse preto tinta-da-china e do branco como se fosse branco papel. Os meios-tons ficam para o impressor.
Conversámos com Fernando Lemos no dia em que estava marcada a viagem para Vila Nova de Famalicão, onde a Fundação Cupertino de Miranda expõe a série realizada nos primeiros anos da década de 50 que o tornaram incontornável na história da fotografia portuguesa. E não só. Ao lado dessas imagens já conhecidas, há novos retratos de amigos feitos "por amor, amizade, respeito intelectual e aprendizagem".
Ainda fotografa?
Muito pouco. Considero a fotografia já em mim. Já me perguntaram também se eu era fotógrafo. Respondo: "Não. Eu sou a fotografia". Em tudo o que vejo, é como se fosse a fotografia a ver essas coisas. Tenho a fotografia na minha cultura visual.
As imagens sobrepostas em duplas exposições são um dos traços mais distintivos do seu trabalho. Qual é papel do acidental nas imagens que captou?
Tenho-me garantido mais por juízos de gente nova. Ultimamente tenho-me dado até mais com fotógrafos. Aos artistas plásticos nem quero vê-los à frente - todos chatos e intimistas. O que os mais novos me dizem é que estas fotografias parecem ter sido feitas hoje. E isso para mim foi uma revelação espantosa.
Mas quando está a fazer a dupla exposição não está à espera que o acidental também faça o seu trabalho?
Sem dúvida. Como não tinha uma máquina automática, era preciso passar o rolo manualmente, aquilo a que se chamava "mão na roda". O que queria preparar na composição era um pensamento mais pictórico e gráfico. Quando imaginava certa situação para um retrato, ocultava parte da captura da imagem já preparando a outra, como se estivesse pintando, fazendo com que a matéria fosse aderindo uma à outra, transformando esta pele deste corpo na mesma pele do outro corpo que é o mesmo repetido. Há aqui alguma herança cubista, na medida em que de uma posição vemos vários ângulos do objecto. Os meus corpos também se foram mostrando dos vários lados. Os retratos não são uma coisa estática. Há uma mudança de gesto, de olhar. Dentro disto, é claro que há o flagrante, há o instante. Saber se a luz está boa ou não, tudo isso para mim é secundário. O desafiante é esse "flagra".
É verdade que às vezes prefere o resultado do que aparece no negativo do que a imagem que é ampliada a partir dele?
Sim, é verdade. Prefiro a imagem do negativo no sentido da surpresa do registo. A fotografia para mim é um percurso meio aquático. Na hora de tirar uma cópia da banheira, dá ideia que se está a pescar um peixe, fresquinho. A fotografia para mim também é a transparência. A transparência é uma forma de espionagem. Apanhamos certas coisas e nem sabemos que as apanhámos. Como um furto.
Como fotógrafo, tenho directrizes já bem definidas e que passei várias vezes para o laboratório e tentei passar para o António [impressor de Lisboa]: "Os pretos são pretos porque são feitos com tinta-da-china, os brancos são os brancos do papel. Considere sempre que estou desenhando, e você inventa nos meios-tons, nos cinzentos. Isso é um trabalho seu, do laboratório".
E incomoda-o o retoque?
Acho que o retoque é como a última solução, uma coisa a que não se pode fugir. É como as nossas rugas. No retoque que se faz por causa dos danos do tempo correm-se riscos, demora muito para ficar bem feito e é sempre um remendo, uma maquilhagem, um botox. É melhor deixar como está.
É raro alguém conseguir apontar a "sua" primeira fotografia. Tem esse momento bem presente na vista tirada da sua casa, na Rua do Sol ao Rato, em Lisboa. O que é que recorda desse momento?
No grupo surrealista ninguém estava interessado em usar a fotografia. Havia umas colagens, mas não se usava para reproduzir. A fotografia aproximou-se de mim por causa do rosto, do nosso rosto como portugueses. Até aí, achava que não havia nada que nos desse a cara da nossa gente. Lembrei-me da fotografia e pensei que a cara das pessoas com quem tinha amizade já era algo que valia a pena, um começo para essa colecta de retratos, por amor, por amizade, por respeito intelectual, por aprendizagem.
Resolvi comprar uma câmara, a mais barata que consegui. Felizmente tinha uma lente fenomenal e a vantagem de não ser automática. Morava num quinto andar. No dia seguinte, assim que acordei, peguei nela e fui à cozinha que tinha uma janelinha pequena. Não resisti. Era a minha rua, o meu bairro, o sítio onde nasci. Decidi: é aqui que vai acontecer a minha primeira fotografia. E sempre a coloquei assim.
No catálogo da exposição da Casa Jalco [exposição surrealista com Fernando de Azevedo e Vespeira, 1952], António Pedro dizia que "pintava com a máquina fotográfica e com os pincéis". Este é talvez o resumo perfeito para explicar a indiferenciação entre o pintor e o fotógrafo. Revê-se nesta descrição enquanto criador?
Não há distinção. Sou muito gráfico. Executei a fotografia como se estivesse pintando, usando matéria para ela se fundir, para adquirir as qualidades da pintura, mais do que as qualidades da fotografia, como o recorte. O Manuel Bandeira, que fez um texto para a minha primeira exposição no Rio de Janeiro também se refere a esta questão...
... dizia que se "sente o pintor nas suas fotografias"...
Porque a fotografia não foi feita para imitar a pintura, mas para ser a técnica da fusão.
O desafio de chegar ao campo do surrealismo pela fotografia é maior do que pelas outras artes, como pela pintura ou pela poesia?
Sim, é verdade. Os trabalhos que me impressionaram mais no surrealismo foram aqueles que usaram a fotografia.
Fala-se sempre da influência de Man Ray na sua obra fotográfica. Que alcance teve o surrealismo de Ray nas imagens que produziu?
Vim a conhecer o Man Ray depois de fazer aquelas fotografias. Não tínhamos assim tanta informação sobre o que se passava lá fora. Quando descobri o trabalho dele achei que era um gajo porreiro. Mas a influência de Man Ray - que conheci em Paris - nem foi pela fotografia. Foi mais por essa postura multifacetada perante os vários suportes de criação. Ele era um artista total. Deu lições radicais sobre várias coisas. Considero-o importante, mas diria que me senti mais influenciado pelo Max Ernst, por exemplo.
Quer dizer que a sua fotografia foi mais influenciada pela pintura?
Sim. Na fotografia vi muitas coisas, e ainda vejo, mas tenho ideia que as origens são sempre as mesmas. Esse surrealismo de figurinha sifilítica herdada do Dalí, essa coisa do erotismo, da masturbação e dos corpos estragados são meio "demodé". Para mim, a fotografia do Man Ray é música de câmara, quer dizer, é muito laboratório.
Já disse que a sua fotografia era "sensorial e quase primitiva". Quer aprofundar esta descrição?
Tenho insistido muito nesta ideia para afastar qualquer pretensão de que sirvo de exemplo para alguma grande teoria da fotografia. Nem o efeito das exposições, nem os prémios me convencem que sou um caso excepcional. Entrei na fotografia como um primitivo. Esta descrição é como uma defesa. É também sinal de alguma cobardia ao não querer assumir um estatuto. Entrei na fotografia por acaso. Parece que deu certo. Ainda bem.
É apresentado como o único fotógrafo surrealista português dos anos 50. No entanto, no ano passado, um leilão em Lisboa revelou um outro fotógrafo que encontrou inspiração na mesma corrente artística no final dos anos 50, Victor Palla. Já viu essas imagens?
Sim. Gostei do trabalho dele. Admirava-o muito por causa das capas de livros que criava. Era das poucas coisas que se faziam bem em Portugal. Eram novas, não provincianas. Estive uma ou duas vezes com ele, mas não falámos de fotografia. Havia entre nós uma apreciação meio secreta...
Havia uma admiração mútua?
Sem dúvida. Ele sabia que o admirava e eu sabia que ele me admirava.
Na prática, o seu exemplo não foi seguido de maneira consequente nos anos seguintes. O Estado Novo venceu o surrealismo?
Não sei. Sob certos aspectos talvez tenha vencido. Mas não se pode falar em vitória. Um Estado que não teve capacidade para outra coisa que não fosse instaurar medo, destruição. Ele não destruiu só o surrealismo, destruiu o próprio processo histórico. Fez a feira popular com aquelas coisas todas feitas de estafa e gesso. Estragaram toda a festa. Os discursos do Salazar foram uma anedota, meio hilários, meio dementes. Só um povo humilde como o nosso podia aceitar aquela situação. Até a polícia política era a mais atrasada delas todas. Eram todos uns sacanas sem categoria nenhuma.
O livro "Lisboa, Cidade Triste e Alegre" [álbum com fotografias de Victor Palla/Costa Martins, poemas de vários autores portugueses editado em 1959 e considerado um dos melhores livros de fotografia portugueses] vai ser reeditado em Dezembro. Partilha do entusiasmo que gira à volta desta obra?
Partilho. É uma boa notícia. O livro tem uma reputação enorme. Dá uma versão de Lisboa absolutamente adequada. É uma fotografia que eterniza certas coisas de Lisboa, que é das poucas cidades no mundo com características que não são palpáveis em outros lugares.
E o livro reflecte isso...
Reflecte e dá uma lição humanista. Lisboa é a minha cidade. O livro do Palla/Martins dá-nos uma Lisboa que não pode ser igualada por mais ninguém.
A exposição inaugurada na Fundação Cupertino de Miranda tem fotografias inéditas. Quando andou a mexer de novo nos seus negativos o que é que procurou?
Muito pouca coisa. Não fui à procura de nada que fosse exclusivo. Há uma ou outra imagem que já podia ter sido ampliada. Mas não me preocupei muito com isso. Não sou pesquisador.
No novo conjunto prevalece um tipo de retrato psicológico, mais voltado para a sugestão. O que é que procura transmitir com este estilo?
Procuro mostrar que somos vários. Quando aparecemos em qualquer situação, não temos uma cara fixa, não somos uma máscara. Quis captar os retratos desta forma para se perceber que temos na nossa cara um mundo de coisas para explodir, para esconder. Não se fica a conhecer uma pessoa ao olhar para a calça, para o sapato. Conhecemos, quando olhamos para o rosto das pessoas.
Continua a tentar "adivinhar a idade do futuro"?
Ouvi essa expressão numa entrevista ao Philip Glass. Ele dizia que não sabia a idade do futuro. Achei interessante. Sabe-se a idade do passado, do presente, mas qual é a idade do futuro? Fiquei a pensar nisso. Depois do livro do Saramago, "As Intermitências da Morte", chego a ter medo que a morte me esqueça. Tomamos tudo muito a sério. É a questão também do surrealismo, o não tomar a sério. Mas é preciso levar as pessoas a entenderem que só gente séria é que pode brincar.
Versão alargada desta entrevista em http://blogs.publico.pt/artephotographica