A cintilação do azul
Poucas cidades terão sido tão marcantes na literatura europeia do século XX como Trieste, que até à queda do império austro-húngaro foi o único porto de mar dos Habsburgos. Apesar de toda a influência imperial - tendo o alemão como língua oficial -, a cidade manteve sempre laços culturais e linguísticos com Itália (eslovenos e croatas tinham também uma presença significativa na região). Italo Svevo e Umberto Saba são dois dos nomes maiores do que ficou conhecido como "literatura triestina", que teve ainda ligações a Joyce, Rilke e Kafka. Ainda hoje, Trieste marca uma fronteira literária com a "Mitteleuropa", tendo em Claudio Magris - um dos grandes autores contemporâneos - o seu maior representante.
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Poucas cidades terão sido tão marcantes na literatura europeia do século XX como Trieste, que até à queda do império austro-húngaro foi o único porto de mar dos Habsburgos. Apesar de toda a influência imperial - tendo o alemão como língua oficial -, a cidade manteve sempre laços culturais e linguísticos com Itália (eslovenos e croatas tinham também uma presença significativa na região). Italo Svevo e Umberto Saba são dois dos nomes maiores do que ficou conhecido como "literatura triestina", que teve ainda ligações a Joyce, Rilke e Kafka. Ainda hoje, Trieste marca uma fronteira literária com a "Mitteleuropa", tendo em Claudio Magris - um dos grandes autores contemporâneos - o seu maior representante.
No começo do século passado, lutando contra um certo espírito de desintegração social e cultural, um grupo de jovens triestinos alimentou o sonho de transformar a cidade num ponto de ligação entre as civilização do Mediterrâneo e da Europa Central, unificando-a culturalmente. Mas com a chegada da I Guerra Mundial, alguns desses intelectuais brilhantes, como Scipio Slataper, Enrico Mreule e Carlo Michelstaedter, sucumbiram durante o conflito. Um dos que tiveram a difícil tarefa de carregar (e prosseguir) a herança deixada foi Giani Stuparich (1891-1961), que veio a tornar-se um ponto de referência ético e cultural. As grandes obras de Stuparich inscrevem-se, mais do que na literatura ficcional, na memorialística, fundindo inspiração moral com criatividade; nas palavras de Claudio Magris, "Guerra del ''15" é "um dos mais sublimes testemunhos europeus dessa [Primeira] Grande Guerra". Mas Giani Stuparich ficou sobretudo conhecido pela autoria de uma pequena obra-prima, a novela (ou conto longo) "A Ilha", publicada originalmente em 1942 pelo lendário editor italiano Giulio Einaudi - e agora editada pela primeira vez em Portugal numa excelente tradução de Margarida Periquito.
Em "A Ilha", Stuparich narra-nos a história de um homem muito doente que pede ao filho para deixar, por quinze dias, o seu lugar nas montanhas onde vive para que o acompanhe numa viagem, provavelmente a última, à ilha adriática onde nasceu. Será uma derradeira peregrinação. A meditação sobre a morte, que é uma essência da literatura triestina desses anos - note-se o recorrente tema da "doença" e do mal-estar existencial em Italo Svevo -, é nesta novela transformada num sentimento vital, essencial e positivo, sem aquela tensão maligna que sublinha e entroniza o seu lado obscuro. Há ao longo de toda a história como que um movimento em que, se por um lado a vida vai fugindo, por outro é como se fosse caminhando para uma qualquer plenitude necessária. A ilha, que funciona ao mesmo tempo como realidade e metáfora (que se vai construindo página a página) - conforme nota Elvio Guagnini no posfácio -, é um cenário para a melancolia e para a esperança das personagens. Mas um cenário que o autor transforma várias vezes, consoante lhe é necessário, para ilustrar os vários estados de espírito pelos quais os protagonistas vão passando: "A sóbria vegetação ao longo das costas rochosas e os alvos povoados à flor da água davam um quê de frescura e de encantamento àquela terra que emergia do mar." Ou então: "A ilha pareceu-lhe abandonada no meio de uma vastidão intransponível. Teve pela primeira vez a sensação estranha e angustiante de se encontrar numa solidão isolada de todo o convívio humano."
São vários os aspectos que fascinam o leitor deste texto curto (e que talvez tenham levado Enrique Vila-Matas, num texto recente publicado no jornal "El País", a escrever que este "é um livro perfeito, uma obra-prima"): a capacidade de síntese poética de Stuparich para nos dar a conhecer os estranhos, e por vezes contraditórios, sentimentos que atravessam a mente dos dois protagonistas; a serenidade que vai crescendo debaixo daquela luz desapiedada e agreste que envolve a ilha em cintilantes tons de azul; a fluidez dos gestos e dos olhares dos dois homens apesar das reflexões, por vezes cruas, sobre os grandes temas existenciais; mas sobretudo a aparente simplicidade da escrita, elementar, límpida e despojada.
Esta é uma história que fica na memória, um livro para ler e tornar a ler.