Isabel Carlos: O Centro de Arte Moderna é uma Bela Adormecida que tem de ser acordada

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Isabel Carlos Miguel Manso

Entre 1996 e 2001 foi membro da direcção do hoje desaparecido Instituto de Arte Contemporânea. Comissária da representação portuguesa na Bienal de Veneza de 2005 e responsável artística de bienais como Sydney (2004) e Sharjah (2009), Isabel Carlos, 48 anos, está agora à frente do emblemático Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (CAM). É o espaço onde, como tantos portugueses, teve o seu primeiro contacto com arte contemporânea. Um espaço que faz 30 anos em 2013 e que, sob sua direcção, nos próximos cinco anos assumirá como desafio voltar a encontrar "um lugar próprio".

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Entre 1996 e 2001 foi membro da direcção do hoje desaparecido Instituto de Arte Contemporânea. Comissária da representação portuguesa na Bienal de Veneza de 2005 e responsável artística de bienais como Sydney (2004) e Sharjah (2009), Isabel Carlos, 48 anos, está agora à frente do emblemático Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (CAM). É o espaço onde, como tantos portugueses, teve o seu primeiro contacto com arte contemporânea. Um espaço que faz 30 anos em 2013 e que, sob sua direcção, nos próximos cinco anos assumirá como desafio voltar a encontrar "um lugar próprio".

Há um dado fundamental em relação ao CAM: ter sido durante muito tempo a grande referência da arte contemporânea em Portugal e, nos últimos anos, parecer ter perdido não só esse lugar como a capacidade de se reposicionar face a um contexto em transformação cada vez maior a partir de meados da década de 1990, nomeadamente com o aparecimento de outras instituições - Serralves, o Centro Cultural de Belém...

Concordo com o diagnóstico.


E agora?

O CAM faz 30 anos em 2013. Deve ter a noção desta herança, de ter sido a primeira instituição a lidar com arte moderna e contemporânea, nomeadamente arte moderna e contemporânea portuguesa, [área de actuação] onde foi de facto fundamental. Encontrar um lugar próprio, em que as pessoas sintam que há uma identidade é um dos desafios para os próximos anos. Para mim, a identidade CAM, o seu ADN, tem duas ou três linhas muito claras. Uma liga-se ao facto de ser uma casa onde a maior parte dos artistas portugueses fizeram a sua primeira antológica ou retrospectiva, [assumindo-se], portanto, [como] um lugar que não é só de exposições, mas que faz catálogos, investigação, trabalho mais invisível mas importante. É uma das linhas que acho que deve continuar a desenvolver.


Esse não é um lugar, hoje, de certa forma ocupado pela Culturgest, o braço operativo da Caixa Geral de depósitos na cultura?

A Culturgest tem feito esse trabalho sobretudo com artistas da década de 1980 e 1990, mas há artistas para trás que nunca foram trabalhados como deve ser, de quem nunca se produziu uma exposição ou um catálogo com investigação e reflexão. Estou a pensar, por exemplo, no Escada, a quem quero dedicar uma retrospectiva nos próximos anos, ou na Ana Vieira, que vamos fazer em 2011 em cooperação com o museu [Carlos Machado] de Ponta Delgada.


O CAM não é como Serralves, que situou a sua colecção em circa de 1968. A colecção do CAM começa em 1910, tem arte moderna. É uma especificidade a cumprir de modo mais sistemático. Em 2012: Josef Albers, importantíssimo como referência para imensos artistas portugueses mas nunca mostrado em Portugal. E outros nomes de que os professores de Belas-Artes falam aos seus alunos ano após ano, mas que nunca se viram.


Portanto, chegados a uma fase de certa maioridade do tecido da arte em Portugal, o CAM adopta uma perspectiva mais historiográfica - se é que esta ideia se pode formular assim.

Pode formular-se assim mesmo.


Para ser válido por mais do que meia dúzia de anos, um museu deve ter capacidade de olhar para si de modo crítico e aperceber-se das necessidades [do contexto em que se inscreve]. Se falo desta necessidade, é porque, precisamente, olho em volta e sinto que é o que falta.


Há uns anos faltava promover os jovens artistas portugueses. Hoje os jovens artistas portugueses têm imensos espaços para mostrar o seu trabalho. O que falta é, se calhar, [espaço para] os artistas de geração intermédia, os que têm 40 ou 50 anos. Isto deve ser o que um museu faz permanentemente: perceber em que mundo está, o que lhe falta e fazer. Essa dimensão historiográfica, convivo muito bem com ela e acho que é importante que aconteça neste momento. E não só em Portugal.


Não sou uma original, sei que muitos colegas internacionalmente estão a sentir o mesmo, a conceber programações que vão buscar o que foram "os pioneiros" do que hoje se faz e que, com um mundo rápido, por vezes as novas gerações nunca viram.


Por exemplo, Anos 70: Atravessar Fronteiras [agora inaugurada, mas programada ainda por Jorge Molder, anterior director do CAM]: toda a geração da década de 1990 foi retomar ideias que os artistas da década de 1970 já tinham trabalhado, mas isso nunca tinha sido mostrado. Estavam por sistematizar os conceitos. Mostrar as primeiras pessoas que fizeram performance, vídeo... É a primeira experimentalidade portuguesa! E o que vemos com esta exposição é uma mistura de públicos óptima: por um lado, pessoas que, até com algum saudosismo, se recordam do que foi pintar certo painel em 1974; por outro lado, uma geração muito nova que não viu nada disto e precisa de ver, que não sabe quem é Silvestre Pestana, Túlia Saldanha, Rui Órfão. [Mostrá-los] é fundamental: vai contra uma falha portuguesa, nomeadamente nas artes plásticas, que é uma espécie de não memória, em que cada geração começa como se não houvesse nada para trás. Houve. Houve coisas para trás.


E o que separa esse CAM do que poderia ser, por exemplo, o Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea?

Eu sei que nos últimos anos as aquisições [do Museu do Chiado] vieram muito para o século XX, mas a colecção começa no final do século XIX e há aí um trabalho a fazer. Por outro lado, o Museu do Chiado é um museu nacional e tem uma colecção nacional. O CAM tem uma componente internacional, uma colecção britânica que, das décadas de 1950 e 1960, é um verdadeiro tesourinho.


Digamos que em 2010, que é o meu primeiro ano de programação, quero deixar as pistas do que serão os próximos cinco anos, o meu tempo aqui, em termos contratuais e, se começo com [a dupla britânica] Jane e Louise Wilson, é precisamente para tornar claro que acho que faz parte da identidade do CAM esta relação privilegiada com a arte britânica.


Ao mesmo tempo que se mostra a maior exposição até hoje dessas artistas, vai-se mostrar a colecção britânica. É algo que vou fazer ao longo destes anos: retirar da exposição temporária o tema ou o conceito para trabalhar a colecção, neste caso a figuração humana e a abstracção. Jane e Louise Wilson estarão na Nave, na primeira sala, no Hall e na Sala Polivalente, que é outra sala que passará a ter uma programação mais intensa; a colecção britânica estará na Galeria 1. Depois, claro, haverá uma atenção a outra arte internacional, artistas de outras nacionalidades que nunca foram mostrados em Portugal. Outra linha, essa sim, que não tem estado muito presente e que come?o já em 2010 com a [artista afegã radicada em Los Angeles] Lida Abdul: uma atenção especial ao Médio Oriente. Estamos numa fundação chamada Calouste Gulbenkian: parece-me o lugar certo para dar uma atenção especial a uma cena artística que é fulgurante.


Quando aceita este cargo, aceita-o com que orçamento?

O mesmo que houve no ano passado. Para actividades, para 2010, tenho o mesmo que houve em 2009: cerca de 600 mil euros. Não é magnífico, mas tenho de me congratular que num momento de crise e cortes grandes a administração não tenha feito um corte no CAM.


Uma das coisas a fazer quando não se tem muito dinheiro é que as exposições vão a outros sítios, para dividir custos. A exposição de Jane e Louise Wilson, por exemplo, vai ao Cento Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela, e há a hipótese de em 2012 ir a Copenhaga.


Santiago de Compostela é uma colaboração, já, com Miguel von Hafe Pérez, o novo director português do centro?

Exactamente. Da mesma forma que a exposição [de Maio de 2010 do artista português] Vasco Araújo com [o artista venezuelano radicado em Nova Iorque] Javier Téllez é uma cooperação com o Museu de Arte Contemporânea de Vigo. Neste momento está em Vigo a exposição do [artista espanhol] Jorge Barbi que [em Maio] vem para cá. Depois de Lisboa, o Vasco Araújo e o Javier Téllez vão para Vigo. Isto é o que me interessa, trocas, co-produções. Estou contente de estar a conseguir que as exposições não morram em Lisboa. Gostava que as exposições que o CAM produz fossem vistas noutros lugares, sobretudo internacionalmente.

Porque a visibilidade internacional do CAM tem sido reduzida?

Não sei se diria isso. A questão é que não é fácil fazer este trabalho. Por isso é que praticamente ninguém consegue. Não é fácil pôr uma exposição produzida em Portugal num museu fora daqui.


Por que é que é assim tão difícil?

Porque a maior parte das vezes trabalha-se com programações muito em cima [do momento da sua apresentação]. É preciso trabalhar com as programações bem definidas pelo menos a dois anos. Neste momento tenho 2011 fechado.


Por outro lado, é difícil, porque pode-se falar de globalização mas temos de facto uma posição periférica na Europa, uma natureza geográfica que não facilita. Ainda agora estou a ver o que será a rota da exposição do Josef Albers. Na Europa, Lisboa vai ser a última [cidade]. Como a exposição termina nos Estados Unidos, ali do outro lado do Atlântico, não faz sentido que abra em Lisboa, depois vá a Munique e venha outra vez [nesta direcção] para ir ao Estados Unidos...


Depois, não sei se também faz parte de conseguir este trabalho [à frente de um museu] ter alguma rede internacional [de contactos próprios]. É incontornável isto. E estar numa instituição com uma imagem de seriedade e reconhecimento ético é fundamental em termos internacionais. Uma instituição que num ano está off, noutro não se percebe qual é a programação, é fatal. De facto, o CAM e a Gulbenkian têm uma marca e, portanto, se calhar, desse ponto de vista tenho o trabalho facilitado em termos internacionais.


Qual foi o primeiro pensamento quando lhe propuseram esta direcção?

É um desafio muito interessante.


O CAM, para mim, é uma Bela Adormecida que tem de ser acordada. Iniciámos esta conversa por aí: é a instituição com mais anos a trabalhar com arte moderna e contemporânea [em Portugal]. E é uma referência pessoal: o primeiro contacto que tive com arte contemporânea foi aqui.


Foi assim para quase todos os portugueses até às gerações mais recentes...

E não só. É muito interessante a questão da Galiza: para pessoas da minha idade que viviam na Galiza, Lisboa era mais perto do que Madrid. O primeiro contacto que tinham com a contemporaneidade era na Gulbenkian. Ter uma instituição com essa carga aurática é um desafio positivo. Depois, o CAM tem uma escala de que gosto. Não é um megamuseu com equipas enormes. Não gosto de ser uma directora afastada do dia-a-dia da vida do museu.


Mas há os planos de ampliação do CAM...

A ampliação serve para poder mostrar mais colecção permanente. Em 2010 o que vai acontecer é que a Galeria 1 vai ter em permanência aquilo a que chamo, numa expressão não muito feliz, os highlights [destaques] da colecção, obras que rodam todos os anos. Quem vem ao CAM vai sempre poder ver um Amadeo, um [Eduardo] Viana, uma Paula Rego, uma Vieira da Silva. Um mínimo de história de arte portuguesa do século XX.


Isto é fundamental para as escolas, por exemplo. Um professor que fala sobre estes autores pode chegar ao CAM e mostrá-los. Em 2010, como tivemos a exposição dos anos 1970, mostra-se menos os anos 1970, provavelmente não estará a Helena Almeida nem a Lourdes Castro, mas estará o final dos anos 1980, o Pedro Cabrita Reis, o Julião Sarmento...


A questão era a ampliação...

Mesmo com a ampliação, o CAM nunca será um Stedelijk [de Amesterdão] nem um MoMA [de Nova Iorque]. A ampliação tornará possível haver mais colecção permanente.


Em Portugal, neste momento, é a única mulher à frente de uma instituição museológica de grande visibilidade, uma instituição cuja colecção tem uma muito baixa representatividade de mulheres. Ao longo dos tempos tem assumido um discurso sobre esse tipo de situação. Vai ser uma preocupação, aqui?

Essa falha será ultrapassada gradualmente. Inevitavelmente, sendo eu quem sou, haverá uma presença [feminina] na programação e consequentemente na colecção.


Porquê consequentemente na colecção? O CAM vai produzir peças para as suas mostras e adquiri-las?

Sim. Na exposição da Jane e Louise Wilson haverá cinco peças feitas para o CAM. Gostaria que uma delas ficasse em Lisboa. A Fundação Gulbenkian permite fazer trabalho transversal que noutras instituições é mais complicado. Como há música e espectáculos, temos, por exemplo, uma equipa de audiovisuais fantástica, pessoas na área de carpintaria com muita qualidade. As esculturas da Jane e Louise Wilson vão ser feitas aqui. Noutras instituições isto é mais complicado e oneroso. Tentar ao máximo potencializar o que aqui está. O CAM deve estar em permanente contacto com as outras áreas da fundação, não deve ser uma ilha isolado ao fundo do parque.


Para ser completamente sincera, era o único sítio em Portugal que aceitava dirigir, programar. Já o tinha pensado. Era o único que me entusiasmava. Faz parte da minha memória pessoal. Dentro do que é neste momento a realidade portuguesa era o único museu ou centro de arte que me entusiasmava, portanto, só tenho de estar feliz por estar aqui. Fazer o melhor trabalho que souber nestes cinco anos.