Como é que ele fez aquilo?
No passeio escuro da West 34th Street, Miles dança no centro de uma roda. Chapéu na cabeça, afro em crescimento lá por baixo, põe-se em pose de Jesus Cristo. Primeiro a mão ondula, depois é o antebraço, cotovelo, braço, ombro, cabeça, outro ombro e por aí fora. Vê-se a milhas: é um "b-boy" num fim de noite frio de Novembro, à porta da Hammerstein Ballroom, minutos depois de ter terminado o maior embate de "b-boys" do "mainstream" mundial - o Red Bull BC One. Miles é, de facto, um "b-boy", ansioso por se exibir, dançarino nato que exala o espírito de Nova Iorque. Miles tem quatro anos de idade.
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No passeio escuro da West 34th Street, Miles dança no centro de uma roda. Chapéu na cabeça, afro em crescimento lá por baixo, põe-se em pose de Jesus Cristo. Primeiro a mão ondula, depois é o antebraço, cotovelo, braço, ombro, cabeça, outro ombro e por aí fora. Vê-se a milhas: é um "b-boy" num fim de noite frio de Novembro, à porta da Hammerstein Ballroom, minutos depois de ter terminado o maior embate de "b-boys" do "mainstream" mundial - o Red Bull BC One. Miles é, de facto, um "b-boy", ansioso por se exibir, dançarino nato que exala o espírito de Nova Iorque. Miles tem quatro anos de idade.
Kyle, dois anos mais velho e com crista loira de fazer inveja a muito "punk-rocker", também não teme o asfalto. Quase o beija quando desliza rumo ao chão. É neles, é certamente neles, que KRS-One, o pregador, o MC, pensa quando repete ininterruptamente: "Isto é o verdadeiro hip-hop." Naquela noite de Manhattan, no final só podia haver um. E assim foi: o "b-boy" vencedor do Red Bull BC One, o primeiro a sair vitorioso pela segunda vez na competição, foi Lilou.
Um francês nascido na Argélia de óculos que milagrosamente não caem enquanto se ergue para além das fronteiras da gravidade terrestre, bomba para a asma enquanto o seu oponente dança, "t-shirt" no corpo franzino: "I'm A Muslim, Don't Panik." Foi aquele cujo estilo mais se destacou do dos restantes 15 "b-boys" reunidos no berço do culto de que são praticantes, o que melhor aliou dança, acrobacia e atitude. Porque não se vence um duelo sem atitude. Mesmo tendo entrado num vídeo dos Chemical Brothers ("Midnight Madness") e tendo uma personagem num jogo para a Playstation, "BBoy".
"Nos primeiros ‘b-boys', eu conseguia ver o carácter de cada um. Mas hoje, com o YouTube - embora isso também seja bom -, às vezes são todos iguais", explica Katsu, jurado no BC One e membro da "crew" Mighty Zulu Kingz, do Japão. Zulu Kingz, tributo à Zulu Nation seminal de Afrika Bambaataa, que nos anos 1970 lá criou o tal do "verdadeiro hip-hop", retirando do Bronx parte das armas e dos gangues e colocando no seu lugar "breakdance" e "crews". Tal como, aliás, no início deste milénio nascia o Krumping no bairro de South Central, em Los Angeles, dançando contra os maus caminhos.
Mas isso é história, é multiculturalismo e é também um pouco globalização. Entra em cena Lagaet, o primeiro representante de Portugal no BC One, 21 anos de elasticidade e dança na guelra, membro da Momentum Crew portuense, o primeiro a entrar em disputa no palco do BC One, contra o brasileiro Neguin (tal como na selecção dos 16 nomes para o BC One, não há sorteio, apostando-se no potencial de espectáculo) e frente a duas mil pessoas que em 24 horas esgotaram os bilhetes e que dançam e vibram como um público, mais do que entendido, rendido.
Família hip-hop
Lagaet, com 18 títulos de "b-boying" no currículo, representa Portugal, a sua "crew" ("É a minha família") e a sua ilha. Nasceu na Martinica e o "b-boying" nasceu nele por gozo puro. Por não perceber aquela coisa estrangeira da cultura do hip-hop. Tranquilo, elegante, com um bom malandro a espreitar por trás do profissional, explica que tudo começou há oito anos, na escola, longe de pensar que o "b-boying" se tornaria uma indústria com patrocinadores, agentes, contratos, viagens frequentes da Sibéria à Coreia, de Nova Iorque a Milão.
"Sou da Martinica, um país muito pequeno com 400 mil habitantes. Jogava futebol, como é normal. E chegou aquela moda e a palavra hip-hop, que eu associava a pessoas que se vestem com roupa larga. No meu país, não fazia sentido nenhum. Lembro-me que a primeira vez que os vi dançar foi sempre a gozar. Um deles estava a fazer um ‘freeze', um movimento congelado em equilíbrio sobre uma mão." Aí sim, quis saber como se fazia, mas só para provar que também era capaz.
"Ganhei mesmo o gosto quando vi o ‘power move': os mortais." Quis só aprender um, mas de repente o futebol era coisa de putos e ele era membro de uma ‘crew', viajava, eram os maiores das Caraíbas. "Comecei a sentir-me preso, precisava de ir mais longe, para a Europa, para aprender." Disse aos pais que ia para a universidade em França e em Montpellier estudou pouco, dançou muito, encontrou Max Oliveira, que agora está com ele em Nova Iorque (juntamente com Mix, outro dos Momentum), e foi amizade para a vida. Encantou-se com Portugal e hoje é isto: "Não faço outra coisa: trabalho na escola de dança como gerente, dou aulas, juro batalhas, compito e dou formações de ‘workshop', como fiz agora na Sibéria."
E agora está em Nova Iorque com venezuelanos, ucranianos, coreanos, americanos e franceses, todos a sentir a cidade-berço da sua profissão - sim, são profissionais, têm DVD em nome próprio, andam em digressão, são contratados pela Apple, MTV ou McDonald's. Muito à semelhança do que o resto do hip-hop vive no "mainstream", embrulhando num marketing lustroso e absorvendo mais uma fatia da cultura urbana.
Mesmo em países inesperados. É o caso de Portugal, atesta Lagaet, que acha que os "b-boys" portugueses já encontraram o rumo e começam a perceber que é preciso viajar, globalizar por aí, para obter frutos. Graças às viagens, ao planeamento da Momentum, "todos os dias abro o meu ‘e-mail' e é uma coisa nova", um convite, um plano, sorri.
Mas também é o caso da Coreia, a actual superpotência do "b-boying", e do Japão. O jurado Katsu, 28 anos, começou a treinar sozinho num caixote espalmado nas ruas japonesas porque aos 12 anos viu "Thriller" de Michael Jackson. "Gritei: ‘O QUE É ISTO?! Porque é que ele está a dançar assim?' Vi o ‘moonwalk' e pensei que tinha de o fazer porque muita gente não conseguiria fazê-lo. Depois o musical hip-hop ‘Jam on the Groove' veio a Tóquio, vi o ‘windmill', o ‘headspin' [passes clássicos do ‘b-boying'] e senti-me como quando vi o Michael Jackson: ‘O QUE É ISTO?!' E decidi fazer o mesmo porque não haveria muita gente a conseguir fazê-lo."
Uma cultura do outro lado do mundo, urbana, sim, mas radicalmente diferente da do Japão, conquistava-o, um passe de dança de cada vez, provocando-o como tinha provocado Lagaet na Martinica: "Como é que ele fez aquilo?" Wing, o vencedor coreano do BC One de 2008, intercala: "A cultura, o Governo e o próprio país apoiam os ‘b-boys', agora ser ‘b-boy' é aceite como emprego. Já não é uma vergonha".
Charlie Shin, representante da promotora Cartel Creative, acrescenta que o festival que faz na Coreia do Sul recebe "cerca de dois milhões de dólares" do Governo, tudo para que fomentem o orgulho nacional, para que sejam vistos como os melhores do mundo. À Coreia, o "b-boying" chegou "através da televisão das bases militares norte-americanas durante a guerra, que trouxeram a cultura americana", explica Shin.
"Só quero dançar"
Hoje, esta aventura planetária, multicultural, tem os trejeitos da capoeira de Neguin, a criatividade de Lilou, a brincadeira de Menno (Holanda) ou a suavidade de Cloud (EUA). Seja pelo YouTube ou pelos eventos como o BC One, Battle of the Year ou UK Champs, como elenca Katsu, ou pelo "boom" que a dança teve nos últimos anos - até podemos falar da TV e de "Dança Comigo", ou do "bling-bling", do culto dos egos, do apelo da arena e dos gladiadores que é tão hip-hop - o "b-boying" é quase entretenimento de massas.
Mas enquanto houver a Rock Steady Crew de Crazy Legs - que actuou no BC One -, enquanto houver fóruns "online", enquanto o pequeno Miles dançar na rua (o seu pai disse ao Ípsilon que ele estava simplesmente "a divertir-se"), ou se dançar na Gare do Oriente, nas discotecas da Margem Sul ou de Los Angeles, "o ‘b-boying' [continuará a ser] ouvir com o terceiro ouvido. É uma linguagem que transcende barreiras. Não interessa de onde se é, o que se faz na vida", garante Niek Traa, "b-boy" holandês de seu nome de guerra JustDolt. "Os ‘b-boys' têm a sua própria cultura, a que a adesão de toda a gente é bem-vinda. É isso que a torna tão internacional."
Quanto a Lagaet, que se ficou pela primeira ronda do BC One mas não parou de dançar noite fora, faz o que gosta. "Estou feliz, só quero dançar. Estou a viver o meu sonho", diz. Esta nova geração de "b-boys" ganha e perde com tanta tendência, tanta informação, tanto YouTube. Katsu aconselha-os a "estudar mais" para definirem a sua personagem, para se diferenciarem. Lagaet, no seu português perfeito, anuncia: "Estamos em 2009, temos de fazer a diferença em relação ao nível dos mais antigos. Eu quero complicar, quero conseguir dançar ‘foundation' [as bases da dança, que normalmente são o trabalho de pés e alguns ‘freezes'] de maneira complexa para que se perguntem: ‘Como é que ele fez isto?'"