O pai tirano

Não, "Uma Segunda Juventude" não foi um "fogacho" nem "uma vez sem exemplo". A obra que marcou o regresso ao cinema de Coppola após dez anos sem filmar foi, antes, uma declaração de intenções, um aviso também: liberto das dívidas e das constrições hollywoodianas, o cineasta ia agora fazer os filmes que queria, como queria, quando queria, fora de qualquer lógica industrial e com a sua musa como único Norte. Recriando o sonho independente que a sua geração quis trazer à Hollywood que, em finais dos anos 1960, estava atolada no mínimo denominador comum em nome da maior abrangência possível, "Tetro" confirma a vontade de mergulhar no passado da arte (e não apenas do cinema) para melhor lhe preparar o futuro.

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Não, "Uma Segunda Juventude" não foi um "fogacho" nem "uma vez sem exemplo". A obra que marcou o regresso ao cinema de Coppola após dez anos sem filmar foi, antes, uma declaração de intenções, um aviso também: liberto das dívidas e das constrições hollywoodianas, o cineasta ia agora fazer os filmes que queria, como queria, quando queria, fora de qualquer lógica industrial e com a sua musa como único Norte. Recriando o sonho independente que a sua geração quis trazer à Hollywood que, em finais dos anos 1960, estava atolada no mínimo denominador comum em nome da maior abrangência possível, "Tetro" confirma a vontade de mergulhar no passado da arte (e não apenas do cinema) para melhor lhe preparar o futuro.


Onde "Uma Segunda Juventude" retomava as fantasias sobrenaturais dos anos 1940 e 1950, "Tetro" coloca-se à sombra do grande melodrama familiar. (Em comum a ambos, encontramos a asa protectora da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger - onde "Uma Segunda Juventude" podia remeter para "Uma Questão de Vida ou de Morte", 1946, "Tetro" cita directamente "Os Contos de Hoffmann", 1951, e "Os Sapatos Vermelhos", 1948.) Mas se é verdade que dificilmente nos podemos esquecer do "Padrinho" (e sobretudo as partes I e III), é talvez mais da literatura que "Tetro" se reivindica, ao repescar o velho lugar-comum do escritor boémio que se alimenta da sua própria vida, do artista que fugiu do passado. Aqui, esse escritor é Angie Tetrocini, filho de um "pai tirano" maestro de renome, que corta relações com a família e foge a esconder-se nos bairros boémios de Buenos Aires, onde é "descoberto" pelo irmão mais novo, Bennie, também ele em ruptura com a família mas procurando reencetar a relação de proximidade cortada com a fuga de Angie, que agora se chama Tetro e abandonou a escrita.

Não faltaram as leituras autobiográficas da história de "Tetro", e Coppola, sábio gestor da curiosidade alheia, não desmente nem confirma, esclarecendo apenas que é o mais pessoal dos seus filmes, onde "nada é verdade" mas "tudo aconteceu realmente". Fazendo tangentes à tragédia grega e ao "gótico Americano" de Tennessee Williams, "Tetro" prefere instalar-se num meio-termo em constante desequilíbrio entre o realismo mágico latino-americano e o melodrama barroco e garrido da ópera clássica - e é no doseamento dessas características que Coppola se perde, tornando o novo filme num passo atrás em relação a "Uma Segunda Juventude". No seu pior, sentimos que Coppola está a tentar invocar os grandes mestres do cinema de autor europeu como Fellini e se estampa espectacularmente (a "cor local" dos amigos boémios de Tetro é tão excêntrica que chega a ser risível, os "buracos" narrativos são demasiado óbvios). No seu melhor, contudo (como os vinte minutos finais e quase todas as cenas que envolvem Bennie, Tetro e Miranda), Coppola toca a espaços essa condição operática que procura, consegue fazer ressoar a corda da família que se ama mas não consegue coexistir pacatamente. Não chega lá mais porque está mal servido por Vincent Gallo, que confirma aqui ser mais fachada que conteúdo, mais imagem que substância, incapaz de emprestar qualquer espessura a Tetro para lá do seu número habitual do artista torturado, chutado para canto pela ternura quente de Maribel Verdú e pela revelação de Alden Ehrenreich.

Não é improvável achar que Tetro tem algo de Coppola e que a sua declaração de intenções perto de fim à críptica Alone ("a tua opinião já não me interessa") é exactamente aquilo que o cineasta tem hoje a dizer sobre aqueles que o rodeiam. "Tetro" é o filme de um cineasta que trabalha agora em inteira liberdade e se marimba para o que os outros pensam - e isso é bonito de se ver num veterano como Coppola, ainda disposto a correr os riscos que os seus colegas de geração já há muito deixaram para trás. E, muito francamente, preferimos um veterano que se estampa em busca de outra coisa do que um que se limita a despachar mais do mesmo.

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