De Twin Peaks ao último rosto da pop

Foto
Um anjo caído: Kurt Cobain recriado em "Last Days" de Gus Van Sant

O que tem a série Twin Peaks em comum com os Nirvana? À partida nada. São dois mundos separados. Tal conclusão, porém, não deve impedir que se revejam acasos, coincidências. Hoje, como à época, relativamente esquecidas.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O que tem a série Twin Peaks em comum com os Nirvana? À partida nada. São dois mundos separados. Tal conclusão, porém, não deve impedir que se revejam acasos, coincidências. Hoje, como à época, relativamente esquecidas.

Um pouco de memória então: a acção de Twin Peaks decorre no estado de Washington de onde os Nirvana eram originários. Há uma coincidência temporal entre a aparição da série criada por David Lynch e o princípio da popularidade da banda. A primeira surgiu em 1990 e o grupo de Cobain gravou "Bleach" em Junho de 1989. Sabe-se que o vocalista/guitarrista não só era fã de Twin Peaks, como comparava esta a Aberdeen (a sua cidade natal).

"Fait-divers"? O que é certo é que série e banda trouxeram para o imaginário da cultura visual uma paisagem lúgubre, húmida, pouco solar: um lugar "exótico" entre Portland e Seattle. Mais: nasceram em plena paz pós-Guerra Fria, quando rareavam as grandes causas e os grandes medos, bem como o glamour de outros tempos. Aliás, tanto em Twin Peaks como na música dos Nirvana é fácil descortinar um ambiente malsão, debaixo do qual se escondem segredos e traumas, embora Cobain fosse um tipo menos estranho do que as personagens de Twin Peaks: alguém de carne e osso. Um "redneck" sensível, intelectualmente curioso.

Mas se especularmos à beira do delírio, porque não confrontar o mistério da sua morte com o de Laura Palmer, as más companhias de um com as más companhias do outro? Um pouco de bom senso: avaliar a influência de Lych na obra de Cobain é tarefa absurda. É verdade que o músico, nos últimos anos, foi abandonando o "realismo" visual do rock a favor de uma fantasia de cariz surrealista ("In Utero"), mas o seu lugar foi sempre mais chão, mais musical. Mais flanela coçada e cabelos soltos de que roupas e penteados estilizados como os de Dale Cooper enquanto comia o seu "donut".

Tal não impediu, sublinhe-se, que o cinema de Lynch (mais do que o de Alex Cox, Hal Hartley ou Linklater) tenha funcionado como espelho para o melhor rock independente dos anos 80, aquele que influenciou os Nirvana: os primeiros Sonic Youth, os Big Black e os Butthole Surfers, tudo gente cujas letras lidavam com América de Frank Booth ("Veludo Azul"), a América do pesadelo, das mutilações, dos lugares escuros.

Dupla face

Mas as imagens dos Nirvana existiram para além do cinema. Existiram no palco. Neste caso, num palco onde as fronteiras entre músicos e público se esbatiam, como a fotografia de Charles Peterson, sobre a cena de Seattle, soube mostrar no livro "Touch Me I'm Sick". Ou nas poses ansiosas dos jovens do Noroeste enfiados em roupas em segunda mão e camisas de flanela (na tradição de Neil Young, John Fogerty ou Mike Watt). Imagens assim podem ser encontradas no livro "Grunge", de Michael Lavine, onde subsiste nos olhares dos adolescentes um desejo, um desafio - como se estivessem à espera de alguma coisa.

É possível revisitar esses retratos nas personagens de Gus Van Sant, mas o cineasta esteve sempre mais interessado em criar ficções à volta de marginais, artistas solitários, anjos monossilábicos - como o de "Last Days". E menos sobre "heróis" reais, como o guitarrista e vocalista Cobain que acreditava que o rock ainda podia mudar o mundo; que transformou as edições de 1991 e 1992 do Festival de Reading nos momentos finais do rock enquanto grande manifestação artística e cultural (no horizonte já se ouviam os ritmos do tecno e do hip hop).

A verdade, contudo, é que Cobain teve sempre uma dupla face. De um lado, aparentemente franco, cândido, apaixonado pela música; do outro, pronto a virar contra si (e contra os outros) toda a irrisão possível; o Cobain arauto louro e sincero do "underground" contra o Cobain de cadeira de rodas, vestido de mulher, de olhos pintados. 

Terá sido esta facilidade em criar "personas" que continua a atrair os artistas. Rodney Graham dedicou-lhe em 2000 uma peregrinação feita em slides,  "Aberdeen"; Douglas Gordon juntou-o, em 1996, num auto-retrato, a Andy Warhol e a Marilyn; Elizabeth Peyton fê-lo objecto da sua pintura e Sam Durant "restitui-lhe" a voz numa das suas esculturas.

Compreende-se. O último rosto da pop pertence-lhe. Mesmo depois da morte da Michael Jackson.